Melhor ser ateu sincero que católico hipócrita?

A rapidez e a veemência com as quais se espalhou o boato (surgido há algumas semanas) de que o Papa teria dito que é “melhor ser ateu do que católico hipócrita” revela algo de muito perturbador a respeito do nosso senso moral. Aparentemente as pessoas consideram mais importante a coerência entre as idéias que alguém professa e o estilo de vida que ele leva do que o valor inerente àquelas idéias. É como se o criminoso hipócrita fosse de algum modo pior do que o criminoso altivo e convencido da justeza dos seus crimes — possivelmente porque, sendo ambos criminosos, a este último ao menos não se acrescenta o defeito da hipocrisia.

Tal concepção, conquanto pareça estar subjacente ao senso comum contemporâneo, não faz o menor sentido. Primeiro porque o valor das idéias repousa na sua coerência interna, na sua verdade intrínseca e não na capacidade de o seu propalador viver de acordo com elas. Afinal de contas a mesma idéia pode ser apresentada de maneiras diversas e por pessoas diferentes, e é perfeitamente possível que algumas dessas pessoas vivam-na com mais sinceridade do que outras. Isso só nos permite fazer (e no máximo!) um juízo de valor sobre estas pessoas, sobre o grau de sua convicção a respeito daquilo que falam; jamais no entanto sobre o conteúdo da sua mensagem.

Isso quer dizer, por exemplo, que o valor da mensagem cristã (para ficar naquilo que é talvez o maior pretexto dos ímpios para não darem crédito ao Cristianismo) não pode ser buscado nos eventuais defeitos de caráter dos pregadores do Evangelho. Os mensageiros podem eventualmente ser muito hipócritas e muito cretinos, sem que isso no entanto macule minimamente o valor da mensagem que eles portam. Se alguém me diz, por exemplo, que é errado mentir, este conselho será tão mais valioso quanto maiores forem os proveitos que eu possa obter pondo-o em prática (na obtenção da confiança dos outros, na paz de consciência e na amizade com Deus, por exemplo). O fato de alguém seguir ou deixar de seguir um conselho que dá é totalmente irrelevante para se saber se se trata de um bom ou mau conselho.

E isso sempre foi muito óbvio para todas as pessoas. Sempre se soube que a hipocrisia era um defeito da pessoa que era hipócrita, e não da idéia que ela comunicava. A rigor, o que existem são pessoas hipócritas e não idéias hipócritas. Aquela história de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” nos diz que a pessoa que assim nos interpela está errada — não que o que ela nos diz esteja errado. Da eventual incoerência do mensageiro não nos é permitido inferir a incoerência da mensagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Mas existe ainda um segundo motivo pelo qual esta confusão entre a (aparente) falta de sinceridade do pregador e a inveracidade da doutrina pregada não faz sentido. É que os seres humanos são essencialmente limitados e, portanto, o que parece hipocrisia pode ser simplesmente uma etapa provisória de um processo de crescimento pessoal.

Afinal de contas, somente duas pessoas são capazes de uma coerência radical e absoluta entre aquilo em que acreditam e o que fazem: os santos perfeitos e os completamente degenerados. Para todos os outros seres humanos o que existe é uma espécie de ambivalência moral, onde às vezes agimos em desarmonia com as nossas convicções e onde o domínio de nossa vontade (ainda) não atingiu o mesmo patamar da iluminação de nossa inteligência. Afinal — desgraçados de nós! –, podemos perfeitamente saber o que é correto sem no entanto conseguir agir corretamente em todos os instantes de nossas vidas.

Mais até: essa ambivalência, além de perfeitamente normal, é necessária a qualquer processo de crescimento. Afinal de contas, para que alguém possa melhorar é preciso que primeiramente saiba em quê precisa ser melhor: o conhecimento dos próprios defeitos e o reconhecimento do valor das virtudes que lhe faltam geralmente precede a obtenção dessas virtudes — que só se dá ao longo do tempo e via de regra ao dispêndio de muito sangue, suor e lágrimas. Ou seja: antes de fazer o certo (e até mesmo para que se possa fazer o certo, ou ao menos fazê-lo melhor do que já se faz) as pessoas precisam saber o que é certo mesmo que (ainda) não o vivam.

Tal é porventura hipocrisia, fingimento, insinceridade? Ao observador externo pode ser que assim se apresente, uma vez que os dilemas morais interiores só são do conhecimento daquele que os padece. Isso, no entanto, não deveria importar, por conta do que já se disse: primeiro porque as idéias têm valor a despeito dos hipócritas que as defendam, e segundo porque aquilo que parece hipocrisia em outrem pode ser apenas uma sua limitação sincera.

De volta à frase sobre o ateu e o católico, é preciso dizer que ela, do jeito que foi divulgada, é completamente falsa e irracional. Só existe uma maneira de encontrar lógica nela: se entendermos que é melhor (talvez se devesse até dizer é menos ruim) ser ateu sincero, por ignorância, que católico hipócrita por malícia. Quando menos porque se forem ambos para o Inferno o católico malicioso vai sofrer maiores penas que o ateu ignorante — aliás o Inferno é via de regra mais severo para os que possuem a Fé Verdadeira mesmo. O que o católico hipócrita tem de errado é a sua hipocrisia e não o seu catolicismo; do mesmo modo, o que talvez se possa louvar no ateu sincero é a sua sinceridade, jamais a sua descrença.

Os elogios que esta “declaração do Papa” recebeu nos dizem uma coisa muito séria: que as pessoas parecem achar melhor ter idéias erradas e medíocres, desde que se viva em conformidade com elas, do que as ter corretas e exigentes e não ser capaz de se portar integralmente à sua altura. Na inevitável ambivalência humana entre o que se é e o que se deve ser, entre o real e o ideal, as pessoas parecem mais dispostas a diminuir as exigências morais que a sair da própria zona de conforto e mudar de vida; mais propensas a envilecer os ideais que a converter a própria realidade. Com uma tomada de posição assim medíocre e mesquinha não é de espantar que vivamos imersos em males que tanto ultrapassam as nossas forças. Não ter coragem de lutar para se fazer melhor e, por conta disso, optar deliberadamente por ser um degenerado é uma das coisas mais ignóbeis de que a pusilanimidade humana é capaz.

Sem isso a vela da ciência tremeluz e bruxuleia

Terminei há uns dias a leitura tardia de O mundo assombrado pelos demônios com uma certa simpatia pelo Sagan. Ele me pareceu alguém sinceramente convencido de suas idéias: alguém honestamente convicto de que a ciência somente — e somente a ciência — é capaz de melhorar o mundo e responder às angústias últimas do ser humano sobre quem somos e de onde viemos. De certa maneira, parece que ele realmente acha que os cientistas são uma espécie de casta sacerdotal (embora provavelmente ele rejeitasse a terminologia) capaz de obter resultados melhores na evolução do ser humano do que foram capazes os outros cleros que a precederam.

A minha simpatia é provavelmente devida à sensação — que perpassa toda a obra — de que ele quer acertar e, mais que isso!, que ele realmente justifica de maneira correta mesmo as posições equivocadas que adota. Os capítulos iniciais sobre os extraterrestres são talvez o exemplo mais eloquente disso: não importa, diz o Sagan, se ele particularmente acredita ou não em vida inteligente extraterrena, o que interessa é que não há indícios seguros de sua existência. E para além disso, as afirmações das alegadas vítimas de abdução não devem ser liminarmente excluídas, mas sim analisadas criteriosamente: é analisando-as que ele conclui por explicações alternativas.

Não importa tanto que explicações sejam essas, mas sim o raciocínio que ele usa — traçando um paralelo entre as abduções extraterrestres contemporâneas e os assaltos medievais de demônios noturnos: incubi e succubi. Com isso ele conclui que os dois fenômenos são parecidos demais para receberem explicações diferentes. E, como as antigas possessões são falsas, as modernas abduções o são também igualmente.

[É aliás curioso que ele avente a hipótese de que os relatos históricos de demônios sexuais tenham sido, na verdade, a forma que os medievais encontraram para descrever, dentro do seu ambiente cultural, a ação de extraterrestres fazendo experiências com seres humanos. Mas o que é ainda mais curioso é que ele não faça o raciocínio inverso — e sequer lhe passe pela cabeça enxergar influências demoníacas nos que hoje dizem ser importunados por seres de outro planeta.]

Mas o interessante aqui é o que se esconde por trás dos olhos luzidios dos marcianos. Sob a comparação entre demônios e extraterrestres está firmemente estabelecido o pressuposto de que a realidade é uma só e, portanto, deve ser explicável à luz de uma cosmovisão abrangente e coerente. Por um lado, nenhum aspecto da realidade deve ser posto de lado por um pensamento que se pretenda científico; por outro lado, não é razoável multiplicar explicações díspares para fenômenos análogos entre si. Só isso já coloca o Sagan em um patamar superior aos materialistas da ATEA e congêneres com os quais é por vezes tão monótono cruzar espadas. Ele não é um solipsista: é alguém com uma profunda admiração pelo ser.

Através das páginas do livro é possível perceber que Sagan crê firmemente que a realidade existe independente do que pensemos a respeito dela e independente da maneira como gostaríamos que ela fosse. Após ler o livro, fica a sensação de que faltou apenas um passo (um passo pequeno!) para que ele entendesse que a realidade existe e é como é mesmo a despeito de eventuais impropriedades dos instrumentos — como a ciência — mediante os quais nos vem o conhecimento do mundo. Afinal de contas, a ciência cartesiana é um recorte da realidade — mais ou menos como, por exemplo, mutatis mutandis, a visão, conquanto importantíssima, é também um recorte, e simplesmente não faz sentido dizer que a música de Beethoven não existe pelo fato (tecnicamente exato) de que os nossos olhos não a podem ver.

A realidade existe, a realidade é uma só, a realidade é como é independente da nossa vontade: ouso dizer que tudo isso é dado por pressuposto pelo astrofísico americano. Mas parece que ele pensa que a ciência é capaz de açambarcar toda a realidade; ou, pelo menos, que as parcelas da realidade que estejam fora das fronteiras da ciência não mereçam tanta atenção, não sejam capazes de adquirir uma validade intersubjetiva.

Contudo o mesmo Sagan reconhece os limites da ciência quando insiste (e o faz reiteradas vezes ao longo do livro) na necessidade do cultivo do aspecto ético também entre os cientistas, do pensamento crítico como instrumento para investigar também questões éticas. Ora, e o que é ética? Das duas, uma: ou é uma coisa que tem validade para além das preferências subjetivas dos diversos atores sociais, ou é algo que ninguém sabe e nem pode saber o que é. Se fosse este último caso, então a prédica por ética na ciência e em prol do bem da humanidade seria um puro clamor vazio. Por outro lado, se é possível aos seres humanos concordarem a respeito do que é certo e o que é errado, então é possível chegar a consensos que não derivem de experimentos laboratoriais.

Em suma, o livro, em seus aspectos substanciais, poderia perfeitamente ter sido escrito por um cristão convicto: o desejo pela verdade, o deslumbramento diante da ciência (por exemplo, é tocante o capítulo onde ele descreve como Maxwell descobriu que a luz é uma radiação eletromagnética; e Maxwell era abertamente protestante), a preocupação com distinguir o que é certo daquilo que faz as pessoas se sentirem bem. Tudo isso é bom e é justo, e mais: tudo isso é essencialmente cristão e somente no Cristianismo encontra a sua realização plena. Sagan morreu dois anos antes de S. João Paulo II publicar a sua magistral Fides et Ratio, e tenho pouca esperança de que o cientista se convertesse à Religião verdadeira após a leitura da encíclica pontifícia; mas creio que ele seria muito capaz de apreciar, por exemplo, esta passagem, que vai ao encontro de muito o que ele escreveu no seu livro sobre a ciência como vela no escuro:

«Todos os homens desejam saber», e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: «Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado». Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.

Fides et Ratio, 25

Todos os homens desejam saber. Quem o disse foi o Estagirita, séculos antes de S. João Paulo II o repetir em uma encíclica sobre Fé e razão. Mil e quinhentos anos depois, S. Tomás acrescentou que «a natureza, objecto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina» (FR, 43). A despeito dos fracassos pessoais do Sagan, é possível conciliar a Fé e a Razão: sem isso a vela da ciência tremeluz e bruxuleia, e não é capaz de vencer a escuridão que porfia por engolfá-la.

Somente na harmonia entre a Fé e a Razão é possível conhecer a verdade toda, em todos os seus aspectos — inclusive os éticos — e somente assim é possível alcançar um verdadeiro progresso para os indivíduos e as nações. E isto precisa ser defendido com toda a diligência, e ensinado às nossas crianças e aos nossos crentes e aos nossos ateus. Estou convencido de que esta, sim, é a melhor maneira de fazer frente à escuridão provocada pelos demônios que assombram o mundo onde vivemos — escuridão contra a qual o Sagan obteve apenas uma vitória parcial e incompleta.

Os burros, os mal-intencionados e os convertidos à Fé Católica

Um leitor do blog perguntou aqui se o fato de ele não alcançar a verdade histórica do Cristianismo fazia com que ele não fosse «uma pessoa honesta». A pergunta é excelente porque reflete um equívoco infelizmente comum aos dois lados da relação, tanto religiosos como descrentes.

Como todo grande equívoco, ele radica em uma grande verdade: neste caso, que o ser humano é capaz de Deus. Afinal, o Todo-Poderoso, Ser Perfeitíssimo, simplesmente não poderia exigir das Suas criaturas o culto a Ele se o próprio conhecimento deste culto e desta necessidade lhes fosse de todo impossível. Seria uma incoerência atroz. Uma vez que os homens precisam da Fé para se salvarem, uma vez que a Fé é por definição um ato livre — a Fé é essencialmente aquele ato de vontade mediante o qual a inteligência movida pela graça aquiesce às verdades reveladas — e uma vez que a responsabilização pelos próprios atos pressupõe e exige a liberdade de agir ou deixar de agir, a conclusão de que o homem tem que rejeitar a Fé para se condenar impõe-se de modo bastante consistente a quem considera todas essas coisas.

Ora, o ato de Fé é um ato complexo, uma vez que envolve as duas potências da alma humana: envolve a inteligência, que apreende a verdade da Fé, e envolve a vontade, que livremente dá crédito — acredita — a esta verdade. Parece, portanto, que para rejeitá-la é preciso vulnerar a vontade, a inteligência ou ambas.

Acontece que ninguém rejeita verdadeiramente aquilo que não leva a sério: é uma queixa bastante feita pelos incrédulos. Do homem médio contemporâneo não se pode propriamente dizer que ele rejeite, digamos, a existência de duendes ou do Saci-Pererê. Essas coisas não entram no seu universo de conhecimento como se fossem coisas reais, mas ao contrário: carregam inerentemente a nota da fantasia e do lendário. Não existe, aqui, um juízo valorativo a respeito da veracidade ou falsidade da informação: o próprio conhecimento é já apreendido com a sua nota de “fantasioso”, “mítico”, “não-verdadeiro”. E é sob esta clave que alguns ateus, segundo dizem, enxergam o Deus Todo-Poderoso.

Ora, eu naturalmente concedo que algumas pessoas possam imaginar o Criador nestes termos; concedo até que, em alguns casos, elas o façam sem malícia. O que não dá para conceder, de maneira alguma, é que tenham alguma razão nesta idéia. E é aqui que entra a história do burro ou do mal-intencionado: semelhante compreensão é tão estapafúrdia, tão distante da realidade, tão incompatível com o que ensina quer a teologia natural, quer as doutrinas religiosas, que aderir a ela — parece — só é possível se o fulano for muito burro ou estiver com muita má vontade.

Contudo, isto é um reducionismo que se deve evitar, tanto porque é impreciso (pelas razões que serão expostas mais embaixo) quanto porque é contraproducente (por razões óbvias: a pessoa apodada de burra ou mal-intencionada não costuma se mostrar muito receptiva a ouvir o que o seu interlocutor tem a dizer). É sim verdade que a Fé Católica, como ato para cuja concretização convergem a inteligência e a vontade, é alcançável a todo ser humano que esteja com as adequadas disposições intelectuais e volitivas. Contudo — e aqui está a raiz do problema –, nem toda dificuldade intelectual é sinônimo de burrice e nem todo problema da vontade significa que o sujeito está mal-intencionado.

O pe. Leonel Franca tem um excelente livro sobre o assunto (“A psicologia da Fé”), onde ele disserta sobre o que a Doutrina Católica convencionou chamar de praeambula fidei — que são aqueles assuntos alcançáveis à inteligência natural e reconhecíveis por todos os seres humanos, independente de eles terem Fé ou não, e que distingue completamente o Deus Todo-Poderoso do Saci-Pererê acima referido. Afirma o prelado que os obstáculos à Fé são de duas naturezas: de ordem intelectual e de ordem moral, i.e., respectivamente da ordem do conhecimento e da ordem da vontade. E compreender as coisas sob esta ótica muda radicalmente o assunto.

A questão não é meramente de nomenclatura: burrice e má intenção são substantivos de conotação pejorativa e, mais do que isso!, que implicam num certo juízo de censura sobre quem detém essas características. No caso da burrice talvez não se o perceba tanto, mas no da intenção má esta característica é evidente: o sujeito que está mal-intencionado é pessoalmente responsável pela prática deliberada de um ato reprovável. Já um obstáculo não é assim: aqui o termo é mais neutro, e a diferença terminológica reflete uma diferença de realidade muito importante. A pessoa pode fingir que não entende o Cristianismo, sim, mas essa não é a única fonte possível da incredulidade. Um sujeito pode deter muito honestamente uma gama de conhecimentos equivocados, e pode fazê-lo com bem pouca (ou até mesmo nenhuma) culpa própria particular. Pode, por conta disso, levar um determinado estilo de vida — as coisas que nós fazemos são condicionadas por aquelas nas quais acreditamos — incompatível com as exigências da Fé, e o primeiro impulso de preservar sua visão de mundo particular é perfeitamente humano e saudável. Tudo isso são obstáculos à crença; nem tudo é igualmente reprovável; e decerto os modos de superar os diversos obstáculos à Fé são bastante diferentes entre si.

Em suma, nem todo não-católico é pessoalmente desonesto. Pode acontecer — e ouso imaginar que é esta a maior parte dos casos — de ele partir de premissas incompatíveis com as do Catolicismo e, mediante métodos de inferência perfeitamente honestos, chegar a conclusões incompatíveis com as da Igreja. Obviamente, há premissas corretas e premissas equivocadas; mas a questão da veracidade ou falsidade dos pressupostos básicos de nossas visões de mundo é um pouco mais complicada do que o reducionismo “você é burro ou mal-intencionado” induz a acreditar. Sim, todo ser humano é chamado por Deus à Fé Católica, e é portanto capaz de responder-Lhe; sim, aquilo que impede o ser humano de oferecer ao Deus Onipotente o seu obséquio da inteligência e da vontade que caracteriza o ato de fé é um obstáculo, quer intelectual, quer moral; sim, o nosso papel deve ser, sempre!, o de fazer o que estiver a nosso alcance para retirar as barreiras que impedem os nossos próximos de viver a liberdade dos filhos de Deus. Mas não é possível subsumir igualmente toda descrença à deficiência mental de quem é um completo parvo ou à perversidade moral de quem se recusa a aceitar o que sabe ser verdadeiro. O papel de todo cristão, repita-se, é levar todas as almas à Fé. E, para fazê-lo, é fundamental que as coisas sejam compreendidas e apresentadas como de fato são — sem reducionismos fáceis, nem maniqueísmos cômodos.

O ateísmo não passa de um arremedo de religião

Li n’O Antagonista a tradução de alguns trechos do primeiro editorial do ano da revista francesa Charlie Hebdo. Devemos todos nos lembrar: no dia 07 de janeiro de 2015, a redação do semanário foi metralhada por terroristas islâmicos.

Um ano após o ataque, a revista lança mais uma vez uma capa provocativa e um editorial raivoso. E o interessante aqui é encontrar, na pena do atual diretor do jornal, o mais irracional fanatismo religioso — do mesmo tipo que o sr. Laurent Sourisseau se esmera por projetar nos seus desafetos. A sua honestidade (quiçá involuntária) chega a ser tocante: em um rasgo de proselitismo, afirma que «as convicções dos ateus e dos laicos podem mover ainda mais montanhas que a fé dos crentes» e, com o fervor expectante de um religioso afrontando os infiéis, profetiza que «[n]ão serão eles [os autores do atentado] a assistir à morte de Charlie. Será Charlie a vê-los morrer.» É uma pena que ele não tenha a coragem de retratar os seus verdadeiros desafetos e, ao invés disso, tenha preferido usar, na capa de Charlie, a figura do Deus cristão ocidental e não a de Maomé. Mas os atos humanos são produtos de suas convicções mais íntimas — é outra forma de dizer «ex abundantia enim cordis os loquitur»… –, e de uma crença medíocre como o ateísmo de Charlie Hebdo é de se esperar que não venha, mesmo, de ordinário, senão atitudes medíocres.

Tudo isso, trazido aqui como exemplo, autoriza-nos a expandir a investigação a respeito do fenômeno irreligioso e concluir que o ateísmo, na verdade, não passa de um arremedo de religião. Afinal de contas, é uma cosmovisão cuja assertividade não é passível de demonstração empírica, com a qual se consente mediante argumentos de razoabilidade e de cuja adesão decorre certa tomada de posição frente aos grandes problemas da humanidade — de coisas mais abstratas como “qual o sentido da vida?” até questões mais concretas e que interessam a todos os membros da sociedade, como “o que é o certo e o errado?” ou “que crenças devem ser ensinadas às nossas crianças?”.

Esmiuce-se, para fins didáticos, a definição acima dada:

i) Trata-se de uma cosmovisão, i.e., uma visão integrada de mundo, pretensamente completa, capaz de responder inclusive às questões fundamentais da espécie humana que sempre estiveram sob o encargo das religiões. O mundo é o que é por conta do Big Bang e da evolução das espécies, a consciência é produto de reações bioquímicas no cérebro etc.

ii) Trata-se de algo, ainda, que não se pode demonstrar empiricamente. A proposição “Deus não existe” não pode ser provada em laboratório — que é o único meio de prova que a cosmovisão ateísta admite. A adesão a tal afirmativa, portanto, é, no sentido mais rigoroso do termo, uma crença, i.e., uma opinião, uma confiança, uma doxa.

iii) A esta doxa aquiesce-se mediante um raciocínio indireto: os que alegam que Deus existe não são capazes de provar a Sua existência, se Deus existisse e fosse Omnibenevolente não deveria haver mal no mundo, há uma quantidade muito grande de deuses, a maior parte dos quais patentemente falsos, então o mais provável é que todos sejam falsos mesmo, et cetera.

iv) Desta cosmovisão, finalmente, por uma razão de necessidade de coerência, decorrem posicionamentos exteriores frente às grandes questões da humanidade. Assim, como não existe um Deus para servir de ponto de referência para o Bem e o Mal, o fundamento ético precisa ser buscado em outro lugar — no consenso social, por exemplo. Por outro lado, como o conhecimento é melhor do que a ignorância, há um impulso natural para que o ateu esclarecido deseje banir a ignorância religiosa do mundo. Ainda: como toda cosmovisão é excludente, os ateus pretendem que à sua doxa somente seja socialmente concedido o status de “verdadeira” — e as outras religiões sejam todas consideradas indistintamente superstições. Os exemplos facilmente se multiplicam.

Ora, o paralelismo com as religiões tradicionais é notável; as religiões são i) visões de mundo que pretendem explicar a realidade de modo holístico, ii) cujos postulados não são passíveis de demonstração empírica, mas que por isso mesmo iii) fundamentam-se em argumentos de razoabilidade (do tipo “todo efeito pede uma causa proporcionada” ou “a ordem no Universo exige uma Inteligência ordenadora”, por exemplo) dos quais iv) decorre um determinado comportamento socialmente exigido (por exemplo, a opinião de que a sua crença é a única verdadeira e todas as outras são falsas, que se manifesta na busca por privilégios especiais para ela — como o direito do seu ensino oficial nas escolas).

Sob essa ótica, e ao contrário do que o sr. Sourisseau insinua, o problema que se coloca não é a opção entre o “ateísmo esclarecido” e a “religião irracional”. Muito ao contrário, a verdadeira questão é: dentre todas as respostas possíveis ao problema de Deus — nas quais se incluem o paganismo, o islamismo, o judaísmo, o hinduísmo, o cristianismo, o espiritismo, etc., e o ateísmo –, qual é a mais coerente? Qual das cosmovisões explica mais adequadamente a realidade? Qual é a que produz os melhores frutos? Qual a que torna os seres humanos mais íntegros, mais justos, mais felizes? Qual, enfim, a melhor entre elas? Sem dúvidas cabe muita discussão a respeito de qual o critério deste melhor; o que não dá, no entanto, é para continuar fingindo que o único critério aceitável é o raciocínio circular do “apenas o ateísmo liberta das antigas superstições, porque tudo aquilo que se refere ao sobrenatural é supersticioso”. À luz desta fundamentação, aliás, a cosmovisão ateísta se afigura a mais pobre de todas.

Papa Francisco põe a imprensa a serviço de Cristo

A carta que o Papa Francisco enviou recentemente ao Eugenio Scalfari já começa a dar frutos. Foi publicada na edição de hoje do La Repubblica (original aqui, em inglês aqui; em português só encontrei esta tradução do Fratres in Unum) uma entrevista «exclusiva» que o fundador do jornal realizou com o Vigário de Cristo.

Foi o próprio Papa quem o convidou: «mercoledì non posso, lunedì neppure, le andrebbe bene martedì?» “Sim”, respondeu o ateu, «va benissimo». E lá se foram os dois veneráveis anciãos conversar sobre a Fé e sobre os problemas do mundo atual.

Problemas cuja expressão máxima o Papa identifica, logo de saída, com a falta de transcendência do mundo moderno: «si può vivere schiacciati sul presente?» “É possível viver esmagado pelo presente”, sem passado e sem futuro? Aqui o «desemprego» da juventude é mais acídia do que questão trabalhista e, a «solidão» da velhice, mais desespero do que carência emocional. Uma vez que se elimina Deus do mundo, uma vez que o materialismo é erigido como norte da vida humana, os velhos estão encurralados diante de um abismo que conduz ao nada e os jovens não se sentem motivados a trilhar o caminho que conduz a este crepúsculo inglório que eles já hoje enxergam nos seus pais e avós. Os dois extremos são, assim, parte de um só e mesmo problema: se a vida caminha inexoravelmente para a velhice e esta não tem sentido, então o próprio «caminho» não tem sentido. A vida se transforma numa estrada estúpida que conduz a lugar nenhum: é natural que muitos não tenham portanto sequer vontade de a trilhar. Não têm as coisas que dão sentido à vida, «e il guaio è che non li cercano più». “E o problema é que sequer as procuram mais”, como disse o Papa Francisco.

Ele não quer fazer proselitismo: «[o] mundo é cruzado por vias que se aproximam e se separam, mas o importante é que elas levem ao Bem». Grifo: levem, verbo conjugado no subjuntivo, que expressa desejo, dever, e não levam, no presente do indicativo, como se se tratasse já de um fato consumado. No original italiano, «portino», para não deixar dúvidas. É óbvio que as vias não necessariamente conduzem, assim em ato, ao Bem; mas é importante que elas conduzam para Ele. A história de nossas vidas não necessariamente nos há de levar para Deus. Mas, se existe algum Fim Último na História, o que importa é que as nossas histórias concretas conduzam a Ele. É esta a missão da Igreja. É esta a contribuição concreta que Ela pode dar à triste situação poucas linhas atrás delineada.

Para explicá-lo melhor, o Papa parafraseia Sto. Tomás: “Cada um de nós tem uma visão do bem e do mal. Temos que encorajar as pessoas a caminhar em direção ao que elas consideram ser o Bem”. No original italiano: «Noi dobbiamo incitarlo a procedere verso quello che lui pensa sia il Bene». É o mesmíssimo ensinamento que o Aquinate expõe de maneira lapidar na Summa: «hay que decir sin reservas que toda voluntad que está en desacuerdo con la razón, sea ésta recta o errónea, siempre es mala» (I-IIae, q. 19, a. 5, resp.). E se é evidente que Santo Tomás não é um relativista, tampouco o é o Papa Francisco. Ele sabe muito bem que, embora nem sempre desculpe (cf. id. ibid., a.6), a consciência – mesmo errônea – sempre obriga; e portanto é mister incentivar a segui-la. Simplesmente não há outro caminho.

Porque o papel da Igreja obviamente não é obrigar as pessoas a agirem contra a própria consciência, e sim levá-las a uma verdadeira conversão, uma metanóia, uma “mudança de mente”, de consciência, a fim de que façam o que é certo não como uma imposição exterior, mas em harmoniosa obediência ao mais íntimo do seu ser. Para isso precisam encarar a Fé Católica não como um conjunto desconexo de normas e proibições, mas como um encontro com uma Pessoa: Jesus Cristo. E para isso é preciso à Igreja “ir ao encontro” delas, usando uma expressão cara ao Papa Francisco, a fim de que possa mostrar-lhes o Bem a que elas almejam. Para isso é preciso «conhecer um ao outro, ouvir um ao outro e melhorar o nosso conhecimento do mundo ao nosso redor», como ele falou ao Scalfari nesta entrevista, e como já o repetiu tantas outras vezes de outras formas ao longo do seu pontificado.

E a conversa prossegue: Igreja, santos, mística, graça. Alfineta o Sumo Pontífice: «Mesmo o senhor, sem o saber, poderia ser tocado pela graça». O ateu diz que não acredita em alma. «[M]as você tem uma», riposta com maestria o Vigário de Cristo. O ateu sente o chão faltar-lhe aos pés e corta a conversa: «Santidade, o senhor disse que não tem a intenção de tentar me converter e não acho que o senhor conseguiria». E o Papa: «Questo non si sa», “isto não se sabe”, não dá para saber.

O Papa Francisco então pergunta no que crê o velho ateu. Ele responde: «Acredito no Ser, que está no tecido do qual surgem as formas e o corpos». Insiste o Vigário de Cristo: «Mas você pode definir o que você chama de Ser?». E a resposta do Scalfari é digna de ser reproduzida na íntegra, em português e no original italiano, para que se tenha uma noção do quão confusa é a única cosmogonia a que foi capaz de chegar um intelectual ateu após longos 89 anos de vida:

Ser é uma fábrica de energia. Energia caótica, mas indestrutível e caos eterno. As formas emergem da energia quando ela atinge o ponto de explosão. As formas têm as suas próprias leis, os seus campos de magnetismo, os seus elementos químicos, que combinam aleatoriamente, evoluem e eventualmente são extintos, mas a sua energia não é destruída. O homem é provavelmente o único animal dotado de pensamento, ao menos, no nosso planeta e no sistema solar. Disse que ele é guiado por instintos e desejos, mas eu acrescentaria que ele também contém dentro de si uma ressonância, um eco, uma vocação de caos.

[L’Essere è un tessuto di energia. Energia caotica ma indistruttibile e in eterna caoticità. Da quell’energia emergono le forme quando l’energia arriva al punto di esplodere. Le forme hanno le loro leggi, i loro campi magnetici, i loro elementi chimici, che si combinano casualmente, evolvono, infine si spengono ma la loro energia non si distrugge. L’uomo è probabilmente il solo animale dotato di pensiero, almeno in questo nostro pianeta e sistema so-lare. Ho detto è animato da istinti e desideri ma aggiungo che contiene anche dentro di sé una risonanza, un’eco, una vocazione di caos.]

Aqui a entrevista praticamente termina. Diz o Papa, em tom condescendente: «Está certo. Não quero que você me faça um resumo de sua filosofia e o que você me disse é o suficiente». Um pouco antes das afabilidades finais, uma última coisa disse o Papa Francisco:

Demos um passo à frente em nosso diálogo. Observamos que na sociedade e no mundo em que vivemos o egoísmo tem aumentado mais do que o amor pelos outros, e que os homens de boa vontade precisarão trabalhar, cada qual com os seus pontos fortes e experiência, para garantir que o amor aos outros aumente até que seja igual e possivelmente exceda o amor por si mesmo.

Na redação que lhe conferiu o fundador do La Repubblica, este é o clímax da entrevista, o ponto de chegada ao qual ela conduz. E um jornal secular estampando na primeira capa uma reportagem onde se fala de deveres morais, de santos, de mística, de graça, e que termina conclamando as pessoas a se esforçarem por amar mais ao próximo do que a si próprias é uma vitória e tanto do Sumo Pontífice. Pela primeira vez em muito tempo, talvez a primeira vez desde que eu me entendo por gente, um Papa pautou o tom das reportagens sobre ele ao invés de ser pautado por elas. Bravo, bravissimo! Que Deus abençoe o Papa neste terreno pantanoso em que ele se move com tão assombrosa desenvoltura. Que os inimigos dele sejam confundidos e dispersados diante desta Rocha imponente contra a qual não prevalecerão as portas do Inferno. Que, olhando para ele, o mundo creia e se coloque aos pés do Crucificado. A fim de que (re)encontre o caminho. A fim de que seja salvo.

Outro Papa escreve a outro ateu

À semelhança do que o Papa Francisco fez recentemente, Bento XVI também escreveu uma carta a um ateu italiano. Piergiorgio Odifreddi é matemático e escreveu um livro – Caro Papa, ti scrivo – onde expõe as suas opiniões no formato de uma missiva ao Bispo de Roma que, hoje emérito, dignou-se dirigir-lhe uma resposta. A íntegra da carta assinada por Bento XVI tem 11 páginas, algumas das quais foram publicadas pelo La Repubblica. O Marcio Campos traduziu-lhe alguns trechos e os colocou no Tubo de Ensaio. Destaco somente um:

[S]e o senhor quer substituir Deus com “a Natureza”, fica uma questão: quem, ou o que é essa Natureza. O senhor não a define em nenhum ponto; ela aparece, então, como uma divindade irracional que não explica nada. Queria, então, acima de tudo deixar claro que na sua religião da Matemática ficam de fora três temas fundamentais da existência humana: a liberdade, o amor e o mal. Eu me surpreendo com o fato de o senhor, em uma única tacada, destruir a liberdade, que foi e é um valor fundamental da época moderna. O amor, em seu livro, não aparece; e mesmo sobre o mal não há nenhuma informação. Independentemente do que as neurociências digam ou deixem de dizer sobre a liberdade, no drama real de nossa história ela está presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece informação alguma sobre o mal. Uma religião que despreze essas perguntas fundamentais se esvazia.

E, como eu já tive a oportunidade de dizer outras vezes no Deus lo Vult! [p.ex. aqui], simplesmente dizer que não há causas ou atribuí-las a entes indefinidos (a “Natureza”, o “Acaso”, etc.) não é explicar rigorosamente nada. É na verdade o contrário mesmo de uma explicação: é um atestado de ignorância, é se esquivar a enfrentar as perguntas para as quais, por vias complementares, Filosofia e Religião sempre se empenharam em buscar respostas. Que certas pessoas imaginem poder calar dúvidas históricas do ser humano à força de repetir «não sei» é um evidente indício de decrepitude da razão, e não de florescimento intelectual.

Mas o mais engraçado dessa história é a genial perspicácia da nossa classe jornalística, rasa como um pires barato. A foto abaixo é a abordagem que o recifense Jornal do Commercio fez hoje sobre o assunto:

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Não vou nem mencionar a obviedade estampada na manchete (raios, o que eles esperavam que o Papa dissesse?!). Destaco o seguinte trecho, já no penúltimo parágrafo: «os textos [a carta anterior do Papa Francisco e esta agora de Bento XVI] mostram que o papa e o papa emérito têm a mesma opinião sobre determinados assuntos e alimentam especulações de que estejam trabalhando em conjunto».

Em nenhum momento parece ter passado pela cabeça do autor deste período que a «opinião» de ambos sobre Deus e o ateísmo é a mesma porque, ora bolas, todos os dois são católicos. O fato de ambos seguirem uma mesma religião parece não ser suficiente para explicar o curiosíssimo fato de todos os dois pensarem a mesma coisa a respeito do ateísmo. Ao invés disso, a opinião mais provável, a dar crédito ao Jornal do Commercio, é que os dois Papas «estejam trabalhando em conjunto»!

Eis o “senso crítico” que a mídia anda formando. A expressão não poderia ser mais exata: o senso adquirido por quem se acostuma a ler essas coisas é «crítico» como o estado de quem se encontra com uma doença terminal. Talvez já tenha até morrido há muito tempo e ainda não saiba. Que tempos…!

A «carta aos que não crêem» do Papa Francisco

O Papa Francisco escreveu uma curiosa «carta aos que não crêem», da qual é possível encontrar uma tradução em espanhol aqui. Não se trata de nenhum documento magisterial, mas simplesmente de uma carta pessoal do Papa Francisco ao Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, 89 anos, laicista ferrenho, promotor do aborto e do divórcio na Itália. É interessante a preocupação com os ateus que o Papa demonstra: não é a primeira vez que o Sumo Pontífice se refere diretamente a eles. Se não perdi as contas, é a terceira.

A primeira vez foi ainda em maio, e comentei sobre o assunto aqui. Na ocasião, o Papa falou que Cristo havia derramado o Seu Preciosíssimo Sangue também pelos ateus, e que também estes tinham o dever de fazer o bem. Foi numa de suas homilias improvisadas na capela da Domus Sanctae Marthae, cujo texto em italiano se encontra aqui.

A segunda vez foi na Carta Encíclica Lumen Fidei, e quando eu li tive a clara impressão de que o Papa se referia à sua meditação de 22 de maio que provocara alguma perplexidade entre crentes e não crentes. Esclarecendo agora de modo sistemático o que dissera de improviso em uma missa ferial, o Papa afirmou o seguinte:

Configurando-se como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem captar, já vivem — sem o saber — no caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar directrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio da escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem que a presença de Deus ainda a tornaria maior. Santo Ireneu de Lião refere que Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já O procurava «com o desejo ardente do seu coração» e «percorria todo o mundo, perguntando-se onde pudesse estar Deus», até que «Deus teve piedade daquele que, sozinho, O procurava no silêncio». Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor [LF 35].

A terceira vez, por fim, foi nesta recente carta ao Scalfari, sobre a qual ZENIT publicou também um interessante artigo (em espanhol) aqui. Não obstante ela valha uma leitura na íntegra, há duas passagens dignas de menção nesta carta; primeiro, quando o Papa afirma que «[e]l pecado, aún para los que no tienen fe, existe cuando se va contra la conciencia»; segundo, quando ele diz que «no hablaría, ni siquiera para quien cree, de una verdad «absoluta», en el sentido de que absoluto es aquello que está desatado, es decir, que sin ningún tipo de relación».

Quanto à primeira, é importante salientar, sim, que é pecado agir contra a própria consciência, e este é o fundamento para a possibilidade de salvação dos não-católicos que, em estado de ignorância invencível, seguem aquilo que, em consciência, parece-lhes correto. É isso, em suma: peca quem age contra aquilo em que acredita, mesmo que acredite em mentiras.

Sempre tive sinceras dúvidas quanto à possibilidade de existir uma consciência inculpavelmente mal-formada a ponto de ser incapaz de reconhecer a Deus; no entanto, a existência de fato desta peculiaridade é bem pouco importante para o estabelecimento dos princípios. Estes dizem que todo mundo tem a obrigação de seguir os ditames da Lei Natural, nos quais está incluído o dever de buscar e servir a Deus. Agir contra a Lei Divina é sempre objetivamente pecaminoso, por óbvio, mas a responsabilidade moral subjetiva de quem viola um preceito específico desta Lei pode ser atenuada dependendo da sua capacidade de reconhecê-la como o que ela é. Portanto, a descrença é desculpável se e somente se o descrente não tiver condições de crer. Ela me parece claramente desculpável nos loucos que não possuem o uso da razão; e em pessoas inteligentes e supostamente instruídas, é possível que o seja? Não sei e isso, graças a Deus, cabe a Deus julgar e não a mim. Sobre isto, basta o que a Igreja já disse: «quem será tão arrogante que seja capaz de assinalar os limites desta ignorância, conforme a razão e a variedade de povos, regiões, caracteres e de tantas outras e tão numerosas circunstâncias? (Pio IX, Alocução Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort)».

Quanto à segunda, vale lembrar que «verdade», segundo a definição dada por Santo Tomás (Summa, Prima Pars, Q. 16, A. 1, resp.) é a adequação entre objeto e entendimento, ou seja, entre o que a coisa é de fato e o que eu considero que a coisa é. Portanto, a verdade é uma relação, exatamente como diz o Papa Francisco. Com isso ele certamente não quer advogar um relativismo no qual cada um possui a sua própria “verdade” – ao contrário, ele diz expressamente que «[e]sto no quiere decir que la verdad es subjetiva y variable, ni mucho menos» -, mas ao contrário: quer colocar a Verdade ao alcance do homem, quer pontuar o homem como “capaz” da Verdade. Porque, afinal de contas, se Ela fosse «sin ningún tipo de relación», o homem não poderia relacionar-se com Ela, não poderia encontrá-La. A Verdade é o Amor, «Deus é Amor» e portanto Deus é a Verdade, e assim a possibilidade do homem encontrar a Deus precisa ser estabelecida como um pré-requisito para qualquer diálogo com aqueles que não crêem. É isso o que o Papa Francisco procura fazer.

O Papa preocupa-se com os ateus sim, sem dúvidas, porque também eles são destinatários do amor de Deus, e a vida é difícil e sem sentido para aqueles que não crêem. É o amor ao Evangelho que move o Papa a aproximar-se dos que estão longe do redil do Senhor; oxalá ele consiga arrastar uns quantos incrédulos à liberdade da Fé! Por este santo propósito, nós rezamos com toda a Igreja: «Oremos pelos que não crêem em Deus, para que, pela rectidão e sinceridade da sua vida, cheguem ao conhecimento do verdadeiro Deus». Ou na antiga fórmula latina:

Orémus et pro iis qui Deum non agnóscunt,
ut, quæ recta sunt sincéro corde sectántes,
ad ipsum Deum perveníre mereántur.

Omnípotens sempitérne Deus, qui cunctos hómines condidísti, ut te semper desiderándo quærerent et inveniéndo quiéscerent, præsta, quæsumus, ut inter nóxia quæque obstácula omnes, tuæ signa pietátis et in te credéntium testimónium bonórum óperum percipiéntes, te solum verum Deum nostríque géneris Patrem gáudeant confitéri. Per Christum Dóminum nostrum.
R. Amen.

A Jornada da Juventude não-católica

Três milhões de peregrinos nas ruas é um contingente expressivo de pessoas, que por sua própria natureza não é passível de ser tratado com indiferença. Não dá para simplesmente fingir que aquela multidão de gente não está lá. Era natural que a JMJ, portanto, influenciasse também a vida de pessoas que não são católicas. O que elas têm a dizer sobre a Jornada?

Trago alguns exemplos. O site do Pe. Paulo Ricardo publicou um interessante texto sobre a «Jornada Mundial da Juventude que comoveu os evangélicos»; enquanto certos pastores xingavam muito no Twitter, outros filhos de Lutero munidos de um grau maior de boa vontade comoviam-se com esta gigantesca manifestação de Fé Católica e, em certo sentido, uniam-se aos que transformaram o Rio de Janeiro em um gigantesco campo da Fé. Por exemplo, a foto abaixo correu as redes sociais:

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É claro que nem todos os protestantes estavam imbuídos destes santos desejos de unidade entre os cristãos; outros aproveitaram o encontro para fazer o seu proselitismo herético e inclusive atrapalhar os católicos (*) que queriam ver o vigário de Cristo. Mas a própria existência destes espíritos de porco serve para tornar mais admirável os gestos de apoio que recebíamos espontaneamente de muitos de nossos irmãos separados. Que o Deus Altíssimo leve em consideração a sua boa vontade e lhes conceda as graças necessárias para chegarem um dia à plena união com a Igreja de Cristo, pela qual as suas almas anseiam mesmo que – por vezes – sem o perceber.

[(*) Houve inclusive um deles que, portanto um bandeirão amarelo gigantesco, colocou-se rente à grade que demarcava o espaço de passagem do Papamóvel, impedindo muitos católicos que estavam atrás de verem a passagem do Sucessor de São Pedro. Na quinta-feira, o desgraçado estava bem à minha frente. Pensando que se tratava simplesmente de um católico sem noção que estava querendo ver o Papa, eu próprio (e muitos outros) nos esforçamos por conter os gritos de “baja la manta!” que ameaçavam evoluir para atitudes efetivas de desobstrução do espaço à nossa frente. Soubesse que o canalha era um herege que havia se colocado entre o Papamóvel e os católicos com o fito explícito e deliberado de impedi-los de ver a passagem do Romano Pontífice, tinha eu próprio “bajádole la manta” para que ele aprendesse a não aporrinhar de maneira tão cretina a manifestação pacífica da fé alheia.]

Durante a semana da Pré-Jornada, quando nós voluntários já estávamos no Rio, éramos parados amiúde nas ruas por pessoas que simplesmente nos parabenizavam pelo que estávamos fazendo, mesmo que não estivéssemos fazendo nada a não ser andar por aí com os sinais distintivos da JMJ. Nem todas eram católicas, e elas às vezes faziam questão de nos dizer. Eu particularmente não recebi nem presenciei um único sinal de hostilidade durante estes dias; muito pelo contrário até. Uma senhora, que se apresentou como evangélica, chegou inclusive a nos oferecer a casa dela para hospedar voluntários ou peregrinos que porventura estivessem precisando. Tinha acabado de nos conhecer na rua. Fez questão de nos dar o seu telefone e ainda pediu desculpas porque não ia poder ficar em casa, uma vez que tinha que trabalhar, mas disse que nós podíamos ficar à vontade porque ela, com muito gosto, colocava o que tinha à nossa disposição. Ora, tamanha hospitalidade é extremamente admirável! Dona Joelma, que Deus lhe retribua a generosidade. A senhora verdadeiramente nos comoveu com a simplicidade do seu exemplo de amor ao próximo, mesmo aos desconhecidos e diferentes.

Mas nem só os protestantes se permitiram admirar a Jornada. Outras pessoas a elogiavam até por razões não-espirituais. O testemunho abaixo, por exemplo, foi outro que correu a internet. O Dr. Rodolfo Hartmann é professor universitário e juiz federal; a julgar por sua página no Facebook, não parece católico, ao menos não católico praticante. Podia perfeitamente ser um ateu ou agnóstico. No entanto, escreveu o seguinte pequeno texto sobre a JMJ, que faço questão de copiar aqui na íntegra porque é bonito o bastante para merecer um pouco mais de durabilidade do que o Facebook é capaz de lhe proporcionar:

Moro em Copacabana. Fiquei praticamente 4 dias em prisão domiciliar. Grande parte do comércio estava fechada e o que funcionava tinha fila que não acabava. Era difícil sair de carro e era impossível correr ou caminhar na praia. Nem academia funcionou. Vi 5 filmes em 3 dias (a última vez que fiz isso devia ter uns 15 anos). Simplesmente ficou mais cheio do que no réveillon e por mais dias. Mas não escrevo para criticar, pelo contrário. Essa JMJ poderia repetir todo ano aqui em Copacabana. Nesses dias, não vislumbrei desrespeito, sujeira, sedução barata ou mesmo uso de substâncias ilícitas e abuso de álcool. Simplesmente, eu observava as filas e ninguém furava. Carros que eventualmente passavam não eram socados. Não vislumbrei agressões. Também não vi lata ou sujeira no chão. Não tinha gritos e sim cantorias. Peregrinos com as suas bandeiras. Ficou muito cheio, é verdade. Os sanitários disponibilizados eram poucos. Mas, independentemente da fé pessoal de cada um, o que eu vi foram jovens e adultos em uma celebração saudável. E vão embora daqui felizes. E deixaram muitos aqui felizes. Eu curti essa meninada. :)

E, é claro, os meios de comunicação social seculares não puderam ignorar um evento desta magnitude. Muita coisa se escreveu sobre aqueles dias; a maior parte delas eu não pude ler, ocupado que estava em acompanhar in loco o desenvolvimento da JMJ. Mas foi gratificante retornar para casa e ler no El País – no El País conhecido por seu anticlericalismo! – uma matéria procurando explicar por que o papa Francisco fascina tanto os jovens. E não pude conter um sorriso ao ler estas palavras:

Em tempos de descrença geral, enquanto grupos de adultos fazem ritos aqui na rua para “desbatizar-se” ou exibir seu ateísmo, uma boa surpresa é que centenas de milhares de jovens de tantos países e línguas diferentes se apaixonaram por um papa que lhes pede que se despojem da casca do supérfluo para sentir a vibração do que permanece e vale a pena saborear.

Sim, é impressionante como o Papa consegue (e com tanta facilidade) angariar a simpatia de tantos. Para mim, isto é um claro sinal da sede de transcendência – da sede de Deus! – da qual padece o mundo moderno, ainda que não tenha coragem de a admitir. Que não seja somente entusiasmo vazio. Que esta boa vontade concedida ao Vigário de Cristo possa fazer essas pessoas – ao menos algumas dessas pessoas – abrirem o seu coração à Doutrina Católica da qual o Sucessor de Pedro é porta-voz. Rezemos pelo Papa Francisco! A fim de que ele consiga se utilizar desta extraordinária popularidade da qual goza no mundo atual para confirmar na Fé estes tantos que o admiram mesmo sem entender ao certo o porquê.

As impressões do Boff sobre a Lumen Fidei

O Leonardo Boff não gostou da primeira encíclica do Papa Francisco. Claro que ele não poderia gostar, uma vez que é bem conhecido o orgulhoso desprezo do ex-frade por tudo aquilo que é católico. O seu texto, contudo, é espantoso: analisando-o, parece que o “teólogo” sequer leu a Lumen Fidei que desde o primeiro parágrafo se propõe a desqualificar. Vejamos:

A Encíclia (sic) não traz nenhuma novidade espetacular que chamasse a atenção da comunidade teológica

Certamente é bem difícil conceber algum tipo de “novidade espetacular” que pudesse ser possível em um texto sobre a Fé da Igreja, que é a mesma ontem, hoje e sempre! No entanto, «[a] fé como escuta e visão» (LF 29-31) é um dos pontos mais ricos do texto pontifício, que aborda o assunto sob um prisma que eu não me recordo de ter encontrado em documentos eclesiásticos. O Papa diz que a Fé é simultaneamente ouvir e ver, o que transcende a Revelação vetero-testamentária (cuja expressão máxima se encontra no Sh’ma Yisrael – «ouve, ó Israel») e só encontra a sua plenitude na Encarnação de Cristo, que é a Palavra do Pai, que pode ser vista e ouvida e até mesmo tocada: «Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus» (LF 31). A beleza da imagem escapa completamente aos olhos remelentos do caquético ex-franciscano.

É um texto dirigido para dentro da Igreja. Fala da luz da fé para quem já se encontra dentro no mundo iluminado pela fé.

Aqui o absurdo chega às raias da falsificação intelectual pura e simples. A introdução da Encíclica coloca a questão em termos absolutamente não-crentes: começa analisando justamente «a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé» (LF 2) e diz que «urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor» (LF 4). E ainda: «a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões» (LF 6). Não há sombra de «reflexão intrasistêmica» aqui, como se fosse um texto auto-referenciado e que só servisse para sedimentar católicos hermeticamente isolados de um mundo sem Fé.

E mais: os capítulos II e IV têm um evidente apelo para os que não crêem. Aquele por colocar a Fé como uma modalidade de conhecimento; este, por advogar com veemência os influxos benéficos da Fé para a vida em sociedade. Leiam-se os seguintes excertos – trago só dois – e digam honestamente se é possível dizer que esta Encíclica não tem nada a dizer para os que não têm Fé:

  • A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência [LF 34].
  • Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade [LF 54].

Ainda, o número 35 da Encíclica fala sobre «A fé e a busca de Deus» e tenciona explicitamente «oferece[r] a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões» (id. ibid.).

E ainda vem o Boff me dizer que se trata de um texto que somente fala da Fé Católica para os que já são católicos! Ele tem certeza de que está falando da Lumen Fidei?

[O texto t]em dificuldade em aceitar um dos temas mais caros do pensamento moderno: a autonomia do sujeito e o uso que faz da luz da razão.

Evidentemente nenhum sujeito tem “autonomia” alguma frente à realidade das coisas: se minha conta bancária está negativa, é claro que eu não posso evocar a minha “autonomia intelectual” para afirmá-la cheia de dinheiro e com isso saldar os meus credores. Mas o «uso que [o indivíduo] faz da luz da razão» perpassa todo o documento, e é exatamente isto que o Papa em diversos pontos evoca em favor da Fé. Por exemplo, citando Sto. Agostinho, afirma que «a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão» [LF 33]. E ainda: «a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu » pequeno e limitado» [LF 25].

Esta afirmação [«“sem a verdade a fé não salva” (n.24)»] é problemática em termos teológicos

Em termos teológicos, o Boff é que é problemático. Aliás, problemático é eufemismo: ele é errado mesmo.

pois toda a Tradição, especialmente, os Concílios tem afirmado que somente salva “aquela verdade, informada pela caridade” (fides caritate informata).

Sim, e isso é repetido pela própria Lumen Fidei logo no seu início: «Fé, esperança e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão com Deus» (LF 7). De onde raios o Boff tirou que a Encíclica defenderia uma Fé separada da Caridade?

Mas se constata na Encíclia uma dolorosa lacuna que lhe subtrae (sic) grande parte da relevância: não aborda as crises da fé do homem de hoje, suas dúvidas, suas perguntas que nem a fé pode responder: Onde estava Deus no tsunami que dizimou milhares de vida ou em Fukushima? Como crer depois dos massacres de milhares de indígenas feitos por cristãos ao longo de nossa história, dos milhares de torturados e assassinados pelas ditaduras militares dos anos 70-80? Como ainda ter fé depois dos milhões de mortos nos campos nazistas de extermínio? A encíclica não oferece nenhum elemento para respondermos a estas angústias.

Custa acreditar que este parágrafo possa ter sido escrito, pois a Lumen Fidei reserva, sim, e explicitamente, um trecho para falar do sofrimento do mundo:

A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. [LF 57]

E este eu tenho certeza de que o Boff o leu, porque dois parágrafos antes ele citou a «lâmpada que guia os nossos passos na noite». Parece que, para o ex-franciscano, a resposta do Papa Francisco não é suficiente. Gostaria, então, de conhecer a relevante contribuição teológica que o Leonardo Boff tem a dar para o problema do mal no mundo, que seja melhor do que os textos magisteriais sobre o assunto resumidos nas linhas acima da Lumen Fidei.

Na verdade, o grande problema do Boff é com as partes «fortemente doutrinárias» do documento do Papa Francisco. O que provoca calafrios no velho boffento é ler a Doutrina Católica explícita com desconcertante clareza em vários pontos da Encíclica, como p.ex. quando o Papa diz com todas as letras que «[s]em verdade, a fé não salva» (LF 24); ou que «a teologia é impossível sem a fé» (LF 36), que ela «partilha a forma eclesial da fé» (id. ibid) e que «não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos» (id. ibid.); ou ainda que a Fé «é uma só» e por isso deve ser confessada «em toda a sua pureza e integridade» (LF 48), e isso de tal modo que «danificar a fé significa danificar a comunhão com o Senhor» (id. ibid.). É isso que o Boff não suporta. O que, para nós católicos, tem um quê de positivo: afinal, se o Boff não gostou da Encíclica, isso significa que ela é realmente boa. E que portanto deve ser bem lida, meditada e posta em prática.

Indicações ligeiras: protestos, ATEA e JMJ

– A popularidade de Dilma e o Nordeste. «O Nordeste foi o grande laboratório do populismo do PT. Por meio de programas, como, por exemplo, Bolsa Família, que transfere muito pouco dinheiro para famílias pobres da região. Não houve na região nenhum programa de maciço incentivo à industrialização, a formação de mão de obra qualificada e fatores semelhantes. Com isso, o Nordeste se transformou na grande fonte de votos do PT e dos seus candidatos. Não é de se admirar que na pesquisa apresentada pelo Instituto Datafolha, Dilma tenha 45% das preferências dos votos nessa região».

– Quem paga? «Novo e oportuno exemplo dessa inversão vem agora do sr. Tarso Genro, que atribui a “grupos pagos de extrema direita” as depredações ocorridas em várias cidades do Brasil. Esse grotesco arremedo de intelectual e escritor sabe perfeitamente bem que os atos de violência ocorreram sobretudo nos primeiros dias, quando havia praticamente só radicais de esquerda nas ruas – estes sim, pagos pelo sr. George Soros e pelo Foro de São Paulo –, muito antes de que qualquer cristão, conservador ou patriota fosse “melar”, como disseram os esquerdistas, o tão bem planejadinho tumulto destinado a forçar um “upgrade” do processo revolucionário comunista».

– Vereadores do PT e PSOL pagam fiança em delegacia de Fortaleza para libertar agitadores presos em protesto. «Segundo informa o jornalista Roberto Moreira em seu blog, o vereador petista Ronivaldo Maia disse que o pagamento da fiança que libertou os agitadores, foi em solidariedade aos manifestantes. O parlamentar afirmou que foi acertado que haveria uma cota entre alguns vereadores para reembolsar o que fora pago por ele».

– A ATEA e a apologia ao assassinato de religiosos cristãos. E, por enquanto, ninguém denunciando isso para a Polícia Federal. Será um cristianismo masoquista? «Eles citam a imagem de um personagem que “irá caçar os que produzem a miséria e o atraso, ninguém escapará”. Os dizeres ainda incluem: “Uma nova era começou, e ela veio para ficar.” Tecnicamente, tudo normal, não fosse o fato da ATEA selecionar uma página em específico (e somente essa) onde o tal personagem mata um pastor que também é deputado federal, fazendo clara alusão a Marco Feliciano. No contexto de uma página de disseminação de ódio contra religiosos, fica evidente a mensagem da ATEA: “cristão bom, é cristão morto”».

Sobre as atrações na Jornada Mundial da Juventude. «Como já disse antes não contra que os artistas seculares participem do evento religioso, até acho muito bom para mostrar a todos que é possível viver a fé católica sem estar em um ambiente religioso. Sim, é possível ser ator e ser católico (Jim Caviezel é um exemplo disso), ser cantor e ser católico (Harry Connick Jr. e Elba Ramalho hoje mostram isso), ser advogado e ser católico (eu me incluo nessa), e tantos outros casos. A questão não está na sua atividade profissional ou ambiente, mas em seu testemunho de vida».