As feridas que precisam ser curadas

Não obstante o excelente trabalho que a Canção Nova vem fazendo (já há alguns anos!) com a tradução dos discursos, homilias, audiências gerais e tudo o que envolve o Santo Padre, há uma pequena crítica que precisa ser feita. No último dia 18 de outubro, no encerramento do Sínodo dos Bispos, o Papa Francisco pronunciou uma extraordinária homilia. Quase que imediatamente, com a celeridade que lhe é própria, a Canção Nova publicou a versão em português do texto que, por ter sido a primeira, foi provavelmente a única a que muitos católicos tiveram acesso. No entanto, a tradução apresentada pela comunidade estava truncada em um ponto – justamente um dos mais bonitos do texto! -, o qual não foi (acabei de consultar) ainda corrigido até o presente momento. As mensagens que enviei através do site ficaram sem resposta.

Foi um erro muito simples, certamente de deleção involuntária de um par de linhas, que no entanto tornou o trecho da mensagem pontifícia obscuro e lhe tirou parte considerável da sua força. A versão que está no site da Canção Nova – assim desde a semana subsequente ao pronunciamento papal – é a seguinte:

cancaonova-francisco

E a versão correta e oficial, que atualmente já consta no site da Santa Sé, é a seguinte (destaquei, em azul, o texto que foi inadvertidamente cortado na tradução pioneira da Canção Nova):

Momentos de consolação, graça e conforto, ouvindo os testemunhos das famílias que participaram no Sínodo e compartilharam connosco a beleza e a alegria da sua vida matrimonial. Um caminho onde o mais forte se sentiu no dever de ajudar o menos forte, onde o mais perito se prestou para servir os demais, inclusive através de confrontos. Mas, tratando-se de um caminho de homens, juntamente com as consolações houve também momentos de desolação, de tensão e de tentações, das quais poderíamos mencionar algumas possibilidades:

— uma: a tentação do endurecimento hostil, ou seja, o desejo de se fechar dentro daquilo que está escrito (a letra) sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o espírito); dentro da lei, dentro da certeza daquilo que já conhecemos, e não do que ainda devemos aprender e alcançar. Desde a época de Jesus, é a tentação dos zelantes, dos escrupulosos, dos cautelosos e dos chamados — hoje — «tradicionalistas», e também dos intelectualistas.

— A tentação da bonacheirice destrutiva, que em nome de uma misericórdia enganadora liga as feridas sem antes as curar e medicar; que trata os sintomas e não as causas nem as raízes. É a tentação dos «bonacheiristas», dos temerosos e também dos chamados «progressistas e liberalistas».

— A tentação de transformar a pedra em pão para interromper um jejum prolongado, pesado e doloroso (cf. Lc 4, 1-4) e também de transformar o pão em pedra e lançá-la contra os pecadores, os frágeis e os doentes (cf. Jo 8, 7), ou seja, de o transformar em «fardos insuportáveis» (Lc 10, 27).

— A tentação de descer da cruz, para contentar as massas, e não permanecer nela, para cumprir a vontade do Pai; de ceder ao espírito mundano, em vez de o purificar e de o sujeitar ao Espírito de Deus.

— A tentação de descuidar o «depositum fidei», considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores ou, por outro lado, a tentação de descuidar a realidade, recorrendo a uma terminologia minuciosa e uma linguagem burilada, para falar de muitas coisas sem nada dizer! Acho que a isto se chamava «bizantinismos»…

As razões, enfim, pelas quais estou dedicando tanto espaço a esmiuçar essa banalidade são duas:

i) eu considero bastante sério o trabalho de tradução da Canção Nova, já o recomendei aqui no Deus lo Vult! e em outros foros, acompanho-o com freqüência e a muito (senão à maior parte) das notícias corriqueiras envolvendo o Sumo Pontífice eu tenho acesso mediante o citado portal; por isso, uma má tradução nele apresentado tem o desagradável efeito de esconder, dos seus leitores habituais, a mensagem correta (eu próprio só percebi essa falha por puro acaso, quando alguém, no Facebook, chamou-me a atenção para a versão em outro idioma que estava diferente), o que tenho certeza de não ser o objetivo da comunidade; e

ii) a passagem é verdadeiramente magnífica para responder à questão – com tanto açodamento debatida nos últimos meses! – da comunhão dos divorciados recasados, e o faz com imagens fortes extremamente eloquentes: o que seria uma tal autorização senão tratar os sintomas «e não as causas nem as raízes»? O que seria semelhante mudança de disciplina senão capitular diante da tentação demoníaca e, por não suportar o calor do deserto, dar ouvido a Satanás e buscar transformar, por conta própria e à revelia da vontade de Deus, as pedras em comida?

Esta é a resposta que a mídia laica não faz a menor questão de divulgar – perceberam o quanto ela ficou pianinha depois do fim do Sínodo? -, esta é a mensagem que nós, por outro lado, temos a obrigação de difundir. Satanás ronda à nossa volta, ávido por nos fazer chamar o mal de bem, o justo de injusto, as pedras de pães…! É importante lhe darmos um rotundo e sonoro “não!”. É importante divulgarmos a Doutrina da Igreja, quando ninguém mais parece interessado em lhe dar a conhecer.

A mídia quer que a Igreja troque a doutrina de Cristo pelas demandas imorais modernas; qual Satanás, insta-A a transformar as pedras em pão para Lhe matar a fome – para acabar com o sofrimento dos que tiveram o seu matrimônio destruído… – e a cobrir as feridas purulentas ainda, escondendo-as, apenas para as tirar de vista, por não lhes conseguir suportar a fealdade. Ora, tal a Igreja não pode jamais aceitar, e é da mais alta importância que todos o saibam com clareza. Para que escutem Aquela somente que possui palavras de Vida Eterna. Para que – trocando a voz da Igreja pela do mundo – não morram de gangrena ao abafar as próprias feridas abertas, não quebrem os dentes ao morder as pedras que têm junto a si.

Quando o Matrimônio é a solução para o concubinato

Não me lembro agora quem foi aquele sábio contemporâneo que disse, certa vez, que os jornalistas eram as pessoas mais desinformadas que ele conhecia. A veracidade da sentença é passível de ser confirmada à mais banal e corriqueira observação da realidade; é incrível como este ramo de atividade humana – responsável justamente pela propagação da informação – pode contar com tantas e tantas pessoas absolutamente ineptas em suas fileiras.

Uma matéria recente do Estadão fala que o “Papa realiza casamento de casais que já moram juntos e têm filhos”. O primeiro parágrafo, dando o tom de toda a matéria, dispara que o Papa Francisco «celebrou o casamento de 20 casais neste domingo [14/set], alguns dos quais já vivem juntos e tem filhos, no mais recente sinal de que o pontífice argentino quer que a Igreja Católica seja mais aberta e inclusiva».

Custa crer que exista alguma pessoa na face da terra que ignore que a Igreja, desde que é Igreja, casa casais. [Na verdade, quem celebra o Matrimônio são os nubentes e não o sacerdote que o assiste, como o sabe qualquer catequizando adolescente; mas seria demais exigir esse nível de refinamento de quem se espanta com o fato de casais que «já vivem juntos e tem (sic) filhos» casarem…] Custa crer que alguém enxergue nessa coisa banal e prosaica um sinal de que a Igreja deseje ser «mais aberta e inclusiva».

Ora, desde que o mundo é mundo, a Igreja regulariza as situações de fato que encontra. As pessoas que podem se casar são, apenas e justamente, os casais que ainda não estão casados! Um absurdo inaudito, digno de manchetes, seria se fosse diferente. Se um homem e uma mulher vivem juntos maritalmente e não estão ainda casados – nem, óbvio, estão impedidos de casar por algum matrimônio prévio, por votos religiosos ou por qualquer outra razão -, então é lógico que a situação deles regulariza-se, da maneira mais simples possível, com a celebração do seu casamento. Isso sempre foi assim e qualquer pessoa com um mínimo de vivência eclesial sabe disso. No fato da Igreja casar casais que ainda não estão casados não se encontra nenhum sinal de “inclusividade”, no péssimo sentido que esta palavra tem na novilíngua contemporânea, mas sim da catolicidade da Igreja que, sempre, convida a Si todos os homens e anseia por congregar a todos no Seu seio.

Aqui, nos sertões do nosso Nordeste, uma das coisas que frei Damião fazia com suas missões [cf. “Em defesa da Fé”] era, justamente, ajustar o casamento dos que viviam amancebados. Ou seja: trata-se de prática extremamente “reacionária”, no sentido de que se preocupa com as formas tradicionais [= o matrimônio religioso] em preferência às novas configurações de fato [= o amor livre]. Na verdade, casar pessoas que já vivem juntas e têm filhos não é “incluir” essa realidade marginal – o concubinato – na Igreja Católica, mas precisamente o contrário: é arrancar o homem à mancebia para reintroduzi-lo nas práticas santas da religião católica, é elevar a amásia e concubina a cônjuge e esposa legítima. É, em suma, dizer que não se aceita que os casais simplesmente “vivam juntos e tenham filhos”, mas que, além disso, é imperioso que eles contraiam matrimônio válido e lícito diante da autoridade religiosa competente. Trata-se, evidentemente, de [mais] uma condenação do concubinato, e não de uma sua “inclusão” na Igreja.

Uma Igreja “aberta e inclusiva”, na mentalidade moderna, seria uma Igreja que permitisse o sexo fora do casamento, que aceitasse o casamento gay ou permitisse que divorciados tornassem a casar. Ora, não consta que as pessoas que recentemente se casaram diante do Papa Francisco tivessem algum impedimento canônico; não eram gays mas, muito ao contrário, casais de verdade, com filhos próprios inclusive; e o fato mesmo do Papa exigir-lhes o casamento é, por si só, sinal evidente de que faltava algo à situação de «vive[re]m juntos» em que já se encontravam. Muito ao contrário, portanto, de ser um “sinal” dessa realidade apocalíptica pela qual anseiam em vão os bárbaros modernos, o recente gesto do Papa Francisco foi uma reafirmação da Doutrina Católica: longe de ser uma realidade social dotada de valor, o concubinato é um mal que deve ser sanado – se possível, com o Matrimônio. E o Papa quis passar clara e abertamente essa mensagem para o mundo. E esta verdade é suficientemente inclusiva para valer para todos os homens.

A grama é verde e o sol brilha lá fora

Acho que foi no Facebook que eu vi recentemente alguém glosando um dito de Chesterton. Dizia o grande polemista inglês que haveria de chegar o tempo em que teríamos que provar aos nossos interlocutores que a grama era verde. E o comentarista facebookiano sentenciava que este fatídico dia enfim chegara.

As últimas manchetes sobre a família que li me provocaram uma sensação curiosa. Por um lado, as coisas lá ditas são de uma obviedade atroz; por outro, provoca-nos uma certa sensação de inesperado encontrá-las, ali, expostas assim em toda a sua clareza. Como se vivêssemos em tempos onde certas coisas óbvias se esforçam por serem mantidas escondidas, e de repente um raio de sol indomável encontra uma fresta para adentrar na sala que alguém se esmera por manter escura à força de grossas e pesadas cortinas.

Primeiro, alguém diz que a prostituição se encontra em processo de extinção. A notícia – que soa à primeira vista alvissareira – parece chocar-se com a nossa percepção imediata dos costumes degenerados do mundo ao nosso redor; mas a leitura do texto deixa claro que não se trata propriamente de uma extinção, e sim de uma metamorfose. A idéia do texto é a de que o sexo tornou-se tão fácil e tão banal que em breve não haverá mais razão para se lhe atribuir um preço de mercado e se lhe sujeitar a anacrônicas regras de comércio. É como se fosse uma versão em micro-escala da idéia comunista de fim do comércio por meio da distribuição universal dos bens de consumo, tendo no caso o sexo por commodity.

Lembro-me do “Admirável Mundo Novo” e da idéia lá retratada – incutida à força de condicionamentos hipnóticos desde a mais tenra infância nos habitantes daquela Londres futurista – de que o sexo é livre e ninguém tem o direito de se negar a ninguém. A imagem da sociedade descrita no livro é talvez a mais ilustrativa do fim do comércio sexual nos moldes em que trata o artigo acima; pode-se até constatar que a diferença entre ela e a em que vivemos hoje é mais de grau do que de essência. No entanto, ninguém hesita em classificar o romance de Huxley como uma distopia. E realçar o modo tão similar com que uma prática é socialmente aceita no nosso mundo evoluído e no pesadelo futurista é, de alguma maneira, trazer à luz um interessante paralelo entre a sociedade que estamos construindo e aquela onde nenhum de nós deseja chegar.

Depois eu encontro esta sentença entre aspas: “Divórcio eleva pobreza e afeta estabilidade”. Ninguém quer elevar a pobreza, é óbvio. Todo mundo quer que as pessoas sejam estáveis, é evidente. No entanto, parece que não há uma única pessoa – nem mesmo a responsável pela afirmativa categórica em apreço – que some dois e dois e chegue à conclusão de que o divórcio deve ser portanto combatido, quando menos por conta desses seus efeitos sociais deletérios que ninguém ousa chamar nem mesmo de indiferentes.

Contudo, existe o dogma de que o divórcio é uma conquista da humanidade, é um direito que deve ser defendido a ferro e a fogo; mesmo que às custas do aumento da pobreza e da menor estabilidade das famílias. Essa última parte não se diz às claras, para que não restem patentes os absurdos a que pode conduzir o peculiaríssimo raciocínio dos nossos formadores de opiniões – daqueles que vêm a público afirmando saber os rumos que devemos tomar para alcançarmos um mundo mais moderno, uma sociedade mais evoluída ou qualquer outro chavão destituído de significado do tipo. Mas dessa vez a manchete jornalística estampou em letras garrafais o que todo mundo se esforça por esconder. Dessa vez deu para ver claramente através da janela o rufião pateticamente escondido atrás da cortina.

Chego por fim a esta manchete luminosa: «Papa vê imagem de Deus em casamento entre homem e mulher». Na mídia secular, nos grandes portais de notícias brasileiros. Assim falou Pedro: «a imagem de Deus é o casal conjugal». E ainda: «Não apenas o homem, não apenas a mulher, mas ambos».

Inacreditavelmente, a matéria saiu sem a histeria costumeira. Sem nenhum comentário ideológico a mais do que notar discretamente que o Papa falou tudo isso «[s]em mencionar as novas formas de casamento entre dois homens ou duas mulheres». E fazer esse comentário prestou até um grande serviço à causa do óbvio, pois fez resplandecer – por contraste – a particularidade da instituição familiar sobre as tais «novas formas de casamento» tão ao gosto dos ideólogos hodiernos. Em um mundo onde se interpreta ausência como discriminação e onde qualquer discurso precisa se encher de irritantes e redundantes masculinos e femininos sob pena de ser conivente com o machismo patriarcal e opressor da sociedade judaico-cristã, a catequese do Papa Francisco – convenientemente iluminada pela lembrança jornalística de que as duplas gays não mereceram ser elevadas pelo Vigário de Cristo ao mesmo patamar sociológico onde se vê a imagem de Deus – rescende assim a uma agradável “heteronormatividade”, para pegar o termo emprestado aos bárbaros. Ficou bonito, mais uma vez.

A lufada de ar fresco nos pegou de surpresa e nos revigorou. O mundo se tornou de repente mais belo e mais esperançoso. Percebemos, de súbito, que a grama é verde e o sol brilha lá fora. E isso faz toda a diferença sim.

O “problema” dos casais recasados I: comunhão espiritual e comunhão sacramental

Não existe nenhum problema com os ditos “casais em segunda união” serem privados da comunhão eucarística. Ou, olhando a questão por outro ângulo, há sim: o problema é a naturalidade com a qual, hoje em dia, encaram-se o adultério e a bigamia. Isso, sim, salta aos olhos e choca, isso é escandaloso, isso deveria provocar-nos repulsa e inspirar-nos lágrimas de reparação pela facilidade com que Nosso Senhor é ofendido. Que aos pecadores públicos sejam negados os sacramentos de vivos é a conseqüência mais óbvia da Doutrina Católica. Que a julguem “dura demais” e procurem por todos os meios desfigurá-la, este é o verdadeiro problema que merece toda a nossa atenção.

Em recente pronunciamento preparatório para o Sínodo dos Bispos que tratará sobre o tema da Família, diante do Papa e dos cardeais reunidos em consistório, o cardeal Kasper fez um discurso que ganhou grande repercussão na mídia. Li primeiro sobre ele aqui e trechos mais amplos da fala do cardeal podem ser encontrados aqui. Algumas conclusões a que parece conduzir o raciocínio do Kasper são tão escandalosas que merecem alguns contrapontos, os quais espero fazer firmes e claros.

Antes de qualquer coisa, é digno de nota que o cardeal, que começou a sua alocução afirmando não ter respostas e sim somente perguntas, tenha vindo com “soluções” tão concretas (e equivocadas, como veremos) para o “problema” dos casais recasados. Há diferenças entre um questionamento verdadeiro e uma pergunta retórica, que podem até confundir as massas mas não escapam aos ouvidos atentos. Por exemplo, o seguinte excerto não contém um questionamento sério, e sim uma pergunta retórica cuja resposta já se encontra implícita na própria formulação do período:

Efectivamente, quien recibe la comunión espiritual es una sola cosa con Jesucristo. […] ¿Por qué, entonces, no puede recibir también la comunión sacramental?

A resposta implícita – à qual o sofista experiente fatalmente conduz o ouvinte incauto – é óbvia: não há nenhuma razão para que uma pessoa que já é «uma só coisa com Jesus Cristo» não possa receber a Comunhão Sacramental. Existe, portanto, uma absurda contradição na praxis da Igreja que precisa ser corrigida o quanto antes. Afinal de contas, se alguém pode tornar-se um só com Cristo, que autoridade terrena poderia negar-lhe a Sagrada Eucaristia?

O sofisma grosseiro por detrás desse raciocínio é ocultar a enorme diferença existente entre a presença real e substancial de Nosso Senhor nas espécies eucarísticas e a Sua presença espiritual na qual o fiel se coloca por meio da oração. É eliminar por completo a diferença existente entre as orações individuais dos fiéis e os Sacramentos – sinais sensíveis e eficazes da Graça – instituídos por Cristo e ministrados por Sua Igreja. É colocar em pé de igualdade a subjetividade da alma que reza e a objetividade da Graça conferida ex opere operato pelos Sacramentos da Nova Aliança. É, em suma, subverter por completo toda a teologia sacramental católica.

É verdade que Deus também confere a Sua Graça por meios desconhecidos aos homens, e que Ele não está de nenhuma maneira preso aos Sete Sacramentos. Mas é igualmente verdade que o modo como se dá a Graça dos Sacramentos é distinto e especialíssimo. Ninguém pode ordinariamente estar certo da pureza de sua contrição perfeita; mas qualquer penitente pode ter certeza de que, quando o padre pronuncia o Ego te absolvo, o perdão de Deus é efetivamente concedido. Um protestante em ignorância invencível pode perfeitamente estar em estado de Graça; mas como esse juízo não pode ser feito senão por Deus, não é lícito participar-lhe a Santíssima Eucaristia. O Batismo de Desejo pode tornar um catecúmeno apto a entrar no Reino dos Céus, mas não lhe permite receber a unção do Santo Crisma.

Os exemplos se poderiam multiplicar à vontade, mas creio que já tenha ficado claro o que quero dizer: os Sacramentos, por sua própria natureza de sinais sensíveis, exigem certas condições igualmente sensíveis para que possam ser ministrados. As “disposições interiores” sozinhas não bastam: ao pagão é preciso que esteja batizado para receber a absolvição sacramental, por mais pungente e contrito que seja o seu arrependimento, e ao pecador (principalmente ao público!) é necessário que esteja confessado para que possa receber a Sagrada Comunhão, por maior que possa ser a sua união espiritual com Nosso Senhor.

Deus é sempre livre para conferir a Sua Graça. Já os homens, dispensadores d’Ele, não têm a mesma liberdade divina para ministrar os Sacramentos de um modo distinto daquele que o próprio Deus estabeleceu. A (chamemo-la assim) Graça sensível só pode ser ministrada sob circunstâncias objetivamente definidas; em particular, a Comunhão Eucarística só pode ser conferida aos católicos que se encontram em estado de Graça, não o subjetivo, mas o objetivo: o estado em que se encontra o fiel que, havendo pecado mortalmente após o Batismo, tenha confessado arrependido cada uma de suas faltas graves e recebido de um sacerdote a absolvição sacramental. Esta organicidade vital dos Sacramentos não pode ser rompida, e neste itinerário sacramental não é lícito tomar atalhos.

Não é portanto verdade que se negue a Graça de Deus a – p.ex. – um pecador impenitente que se aproxime da Mesa Eucarística. Na verdade, é ele próprio quem A nega a si mesmo, primeiro pelo seu pecado, depois pela recusa a valer-se dos meios instituídos por Cristo para a obtenção do perdão. O caminho para se aproximar dos Sacramentos é público e bem conhecido por todos. Quem se recusa a percorrê-lo na íntegra é o único responsável se não obtém aquilo a que esse caminho conduz.

A “reforma histórica” do Papa Francisco (II) – Os casais divorciados

Dando continuidade ao que já comecei a escrever aqui anteriormente, um outro tema eclesiástico passível de «reforma» com conseqüências que só posso considerar nefastas é a situação dos casais católicos que vivem em «segunda união».

O problema é muito grave; Bento XVI não teve receios de o classificar como «una vera piaga» dos tempos modernos (“uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo”, na tradução controversa que está no site do Vaticano). É uma «praga», sim, mas é também e principalmente uma chaga, uma ferida, que é a tradução mais exata do «piaga» italiano.

Digo que é uma «chaga» porque é uma situação indiscutivelmente dolorosa para os envolvidos, que contam com bem poucas opções: ou esperam a morte do primeiro cônjuge, ou abandonam a sua segunda família (que muitas vezes se trata da família de fato), ou recorrem aos tribunais de nulidade.

Aguardar a morte do cônjuge verdadeiro é uma “solução” que, na prática, não se trata de solução nenhuma. Primeiro porque não há nada que se possa fazer concretamente aqui (assassinar o cônjuge, além de ser um evidente pecado contra o Quinto Mandamento, ainda é, segundo o Direito Canônico, impeditivo para a contração de novas núpcias). Segundo porque condicionar a saúde da própria alma à morte de alguém com quem já se relacionou no passado é no mínimo mesquinho, e não raro monstruoso e doentio. Terceiro porque devem ser bem poucos os casos que são “resolvidos” desta maneira, uma vez que o mais natural é que ambos os cônjuges levem uma vida mais ou menos longa e, portanto, é de se esperar que o bafo frio da Morte só rompa os liames do Sagrado Matrimônio quando constituir uma nova família não tenha mais o vicejo atraente com o qual a idéia se apresentava quando ainda se era relativamente jovem.

Abandonar a/o amante é sem dúvidas a solução mais radicalmente correta: o ímpeto de «mudar de vida» é a conseqüência mais óbvia que se espera de alguém que passe a ter consciência de estar vivendo em pecado grave. Trata-se de uma opção heróica cujo valor não pode ser minimizado: de forma alguma! No entanto, as coisas no mundo real muitas vezes não são assim tão simples. Como falei, por vezes acontece da «segunda união» ser a união de fato: os esposos podem estar já juntos há anos, décadas talvez, podem já ter patrimônio comum e (mais grave) filhos, para os quais a separação dos pais não tem um efeito menos daninho do que um divórcio para os filhos legítimos de um casal regularmente casado

[É preciso registrar aqui uma segunda modalidade de «abandonar a/o amante»: trata-se do que o próprio Bento XVI expôs na seguinte passagem da Sacramentum Caritatis: «Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio». Trata-se, em suma, de manter em tudo a vida familiar já estabelecida, à exceção das práticas sexuais. Infelizmente, a “invisibilidade” deste sacrifício (uma vez que, de fora, nada muda na vida do casal) e o alto grau de heroísmo que ele exige (mais ainda do que o abandono puro e simples, uma vez que a coabitação, mesmo «como irmão e irmã», comporta uma ocasião de pecado objetiva nada negligenciável) tornam-no tremendamente difícil e impopular para resolver um problema generalizado como este que estamos aqui abordando.]

Sobram os «tribunais de nulidade», sobre os quais Bento XVI falou na exortação pós-sinodal anteriormente citada:

Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico, a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que «é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis».

Eu morro de medo de tribunais de nulidade, ou melhor, da popularização dos tribunais de nulidade. E isso porque a (enorme!) distinção entre nulidade e anulação é muito difícil de ser assimilada pelas massas. Exteriormente, visivelmente, para a imensa maioria das pessoas uma declaração de nulidade em nada se distingue de uma certidão de divórcio: trata-se de um documento que permite à pessoa “casar de novo”.

Mais ainda: pela minha experiência, dado o estado de miséria religiosa em que se encontra atualmente a maior parte dos católicos, estou intimamente convencido de que o número de Matrimônios nulos atinge facilmente a casa dos 50%. Ora, se os Tribunais Eclesiásticos dessem uma Certidão de Nulidade para cada Matrimônio que de fato é nulo, isso bastaria para que as taxas de nulidade católica se igualassem às de divórcios nos Cartórios Civis! Que golpe mais duro se poderia dar no Matrimônio que a Igreja prega ser «indissolúvel»?

Em uma das crônicas compendiadas no “Claro Escuro” de Gustavo Corção, ele fala que há casais para os quais seria justificável o divórcio. Não obstante, mesmo a estes casais o divórcio não deveria ser concedido, porque o Matrimônio é uma instituição cuja importância transcende os casais concretos: estes deveriam permanecer casados para dar exemplo e testemunho da indissolubilidade matrimonial aos demais casais do mundo. Mutatis mutandis, penso que o mesmíssimo se aplica aos casos de nulidade matrimonial: nem todos os casamentos nulos deveriam receber uma certidão de nulidade, porque a irrevogabilidade dos juramentos prestados diante do altar de Deus é um bem a ser preservado acima dos interesses dos particulares, por legítimos que estes sejam.

É portanto com temor e apreensão que eu vejo uma certa «popularização» dos tribunais de nulidade como se estes fossem “a Solução” para os casais recasados, quando para mim é óbvio que a verdadeira solução só pode ser impedir que “católicos” irresponsáveis simulem sacramentos na Igreja de Deus. Enquanto não se quiser enfrentar este problema com a seriedade que ele exige, ulteriores tentativas de consertar erros passados só vão aumentar ainda mais aquela «chaga» que Bento XVI deplorava na Sacramentum Caritatis.

Como vimos, Bento XVI já clamava por «tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais [de nulidade] cada vez mais acessível aos fiéis», e isso já me dava um frio na espinha. O Papa Francisco parece determinado a pôr isso em prática. Na entrevista realizada no vôo de volta a Roma após a JMJ, ao ser perguntado sobre este assunto, o Sumo Pontífice deu a seguinte resposta:

Este é um tema que sempre pedem. A misericórdia é maior do que aquele caso que o senhor põe. Eu creio que este seja o tempo da misericórdia. (…) Mas os próprios ortodoxos – e aqui abro um parêntese – têm uma prática diferente. Eles seguem a teologia da economia, como eles dizem, e dão uma segunda possibilidade, permitem-no. Mas eu acho que este problema – e fecho o parêntese – deve ser estudado no quadro da pastoral do matrimônio. E, para isso, temos duas coisas: primeira, um dos temas a consultar a estes oito cardeais do Conselho dos Cardeais, com quem nos reuniremos nos dias 1, 2 e 3 de outubro, é como avançar na pastoral do matrimônio, e este problema será lançado lá. E uma segunda coisa: esteve comigo, quinze dias atrás, o secretário do Sínodo dos Bispos, para ver o tema do próximo Sínodo. O tema seria antropológico, mas olhando-o de um lado e de outro, indo e vindo, encontramos este tema antropológico: a fé como ajuda no planejamento da pessoa, mas na família para se debruçar depois sobre a pastoral do matrimônio. Estamos a caminho de uma pastoral do matrimônio um pouco mais profunda. E este é um problema de todos, porque há muitos, não? Por exemplo – digo apenas um – o cardeal Quarracino, meu predecessor, dizia que para ele metade dos matrimônios são nulos. Mas dizia isso, porquê? Porque casam-se sem maturidade, casam-se sem notarem que é para toda a vida, ou casam-se porque socialmente se devem casar. E com isso tem a ver a própria pastoral do matrimônio. E também o problema judicial da nulidade dos matrimônios: isso deve ser revisto, porque os Tribunais eclesiásticos não são suficientes para isso. É complexo o problema da pastoral do matrimônio. Obrigado!

A referência à epikéia ortodoxa, mesmo feita entre parênteses, é significativa e angustiante. Os cismáticos orientais não acreditam na indissolubilidade matrimonial; permitem segundas (e terceiras… e quartas…) núpcias em alguns casos, ao arrepio da Lei de Deus. Obviamente, eu não penso que o Papa vá introduzir esta praxis herética no Ocidente, mas há uma maneira muito simples de seguir-lhe o espírito mesmo respeitando a Doutrina e o Direito: basta estimular os católicos a pleitearem a nulidade do seu primeiro Matrimônio nos Tribunais Eclesiásticos! Doutrinariamente perfeito, canonicamente impecável, pastoralmente desastroso. Se já é difícil às pessoas acreditarem na santidade do Matrimônio, quando se passarem a realizar na Igreja segundas núpcias à mesma proporção que “recasamentos” civis nos Foros de Justiça aí é que o número de matrimônios inválidos vai aumentar ainda mais!

Quem quer que passe os olhos sobre as notícias atuais percebe que a questão dos divorciados na Igreja está na ordem do dia. Ainda não se sabe exatamente o que o Sumo Pontífice vai dispôr para a Igreja; mas dessa “reforma histórica” pode muito bem vir algo de muito, muito ruim. Rezo para que o Espírito Santo ilumine o Vigário de Cristo e ele me surpreenda positivamente neste assunto: porque, se a Igreja continuar no caminho que vem há anos ensaiando, a terrível chaga do divórcio na sociedade contemporânea só vai se tornar maior, mais purulenta e mais difícil de ser sanada.

Miscelânea: manuscritos, Beleza, divórcios, senso comum, ateísmo

– A descoberta de uma Bíblia de 1500 anos, dizem, «preocupa [o] Vaticano». Por quê? Por se tratar de um «original» (sic) do «Evangelho de Barnabé» que, entre outras coisas, teria previsto «a vinda do profeta Maomé, mostrando a verdade da religião do Islã» (!).

Como é possível que um manuscrito «do século V ou VI» possa ser o «original» de Barnabé se este viveu no século I da Era Cristã é um mistério que está para muito além da capacidade de entendimento dos meros mortais. Afora esse prodígio verdadeiramente portentoso, contudo, não há nada de novo na descoberta. O Evangelho de Barnabé (inclusive com a suposta profecia sobre o Islã) já é conhecido. A única coisa digna de nota aqui é a data: a dar crédito às notícias, o manuscrito recém-descoberto seria de um século antes do próprio nascimento de Maomé. A julgar pelo que já se sabe do livro, contudo, isto seria claramente impossível. Provavelmente estamos diante de mais uma falsificação, com a qual não é necessário desperdiçarmos o nosso tempo.

* * *

– O culto à feiura no mundo revolucionário – merece (e muito) uma leitura. «Tragicamente, nosso mundo não reconhece sequer o que é o feio. Já dissemos que a beleza é aquilo que quando visto agrada e, portanto, o lógico seria que o feio fosse aquilo que quando visto desagrada. Mas olhem para a nossa sociedade, na qual o que agrada é o macabro, o esquisito, o torto e o deformado; na qual, por muitos anos, a peça mais popular de cinema — número um durante semanas — foi um filme sobre um canibal. São o mal e o feio que agora deleitam. Bem-vindos ao bravo novo mundo: o que em outra época teria sido chamado de mau agora é qualificado como bom, e o que era considerado feio é agora considerado bonito».

Nestes tempos em que mesmo a nossa arquitetura sacra é destituída do mais elementar senso estético, encontrar um padre defendendo o valor da Beleza é um verdadeiro refrigério. Ouçam-no! No meio do turbilhão de valores em que vivemos, é a Beleza que salvará o mundo.

* * *

– Este texto do Ad Hominem conclama à leitura de “Claro Escuro”, de Gustavo Corção. Faço coro ao pedido; a coletânea de artigos do grande jornalista foi uma das leituras mais prazerosas e instrutivas sobre o assunto que eu já fiz na minha vida. O transcurso dos anos não foi capaz de mitigar o impacto que as palavras de Corção ainda hoje provocam em mim; ainda hoje, leio-o com o deslumbramento de quem estivesse lhe pondo os olhos pela primeira vez. Não são todos os autores os que são capazes desse prodígio.

Para exemplificar isto que estou tentando dizer, trago apenas um excerto do excerto trazido pela Day Teixeira, enfaticamente recomendando aos meus leitores que procurem a íntegra da obra:

Assim como se abrem os olhos [da criança] para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.

Sensacional.

* * *

– “A filosofia do senso comum”, na Revista Vila Nova. Dentre os quatro «elementos fundamentais do senso comum» que Chesterton coloca como premissas necessárias à compreensão das coisas ao nosso redor, destaco um:

2. Todo homem em sã consciência, acredita não somente que este mundo existe, mas também que ele tem importância. Todo homem acredita que há, em nós, um tipo de obrigação de nos interessarmos por esta visão da vida. Não concordaria com alguém que dissesse, “Eu não escolhi esta farsa e ela me aborrece. Fiquei sabendo que uma senhora idosa está sendo assassinada no andar de baixo, mas eu vou é dormir”. O fato de que há um dever de melhorar coisas não feitas por nós é algo que não foi provado e não se pode provar.

E este «dever de melhorar coisas não feitas por nós» é talvez um dos elementos mais indispensáveis à vida em sociedade. No entanto, que importância se lhe dá hoje em dia…? De tanto serem cerceadas as investigações sobre a sua gênese, talvez um dos maiores desafios atuais seja limitar o efeito social deletério dos que, de tanto se desinteressarem por essas coisas, chegam a negar a sua própria existência.

* * *

«Na primeira condenação no Brasil por discriminação contra religiosos, a justiça condenou este ano a rede de televisão Bandeirantes depois que um de seus apresentadores afirmou que o assassinato de uma criança só podia ter sido cometido por ateus, também acusados por ele “da guerra, da peste, da fome e de tudo o mais”».

Trata-se de uma matéria do Diário de Pernambuco sobre o ateísmo, e a condenação à qual ela se refere é a que o Datena sofreu por conta de denúncia da Atea. Já a conhecia, mas ainda não atentara para o fato de que o ateu foi beneficiado pela lei que proíbe a «discriminação contra religiosos». De fato, no relatório da referida sentença, há o seguinte:

Este atuar, no entendimento do autor, extrapola os limites da liberdade de expressão, estando tipificado penalmente no artigo 20, parágrafo 2°, da lei 7.716-89.

E o que é que diz o Art. 20 da 7716/89? Simplesmente tipifica o crime de «[p]raticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional». Ora, como ateísmo evidentemente não é “raça”, “cor”, “etnia” e nem “procedência nacional”, segue-se que a única discriminação que o apresentador da Bandeirantes pode ter cometido é a de «religião». Quando lhes convém, os ateístas aparentemente não têm nenhum problema em serem contados entre os religiosos.

Não deixa de ser irônico. Quando nós dizemos que o ateísmo é claramente uma posição religiosa com no máximo tanto valor quanto qualquer outra religião da humanidade, começa a chover ateísta protestando. No entanto, quando a religião ateísta se sente ofendida em cadeia nacional, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos não se faz de rogada e passa a exigir que seja aplicada em seu favor uma lei que proíbe o preconceito de «religião».

Curtas: divórcio no Brasil, medidas pró-vida, Dom Evaristo Arns e o esvaziamento das igrejas, erro médico salva bebê

Brasil tem recorde de divórcios em 2011. «O número de divórcios chegou a 351.153, um crescimento de 45,6% em relação a 2010, quando foram registrados 243.224».

A razão? Naturalmente, o afrouxamento das exigências para o divórcio. «Conforme a pesquisa, um dos fatores foi a mudança na Constituição Federal em 2010, que derrubou o prazo para se divorciar, tornando esta a forma efetiva de dissolução dos casamentos, sem a etapa prévia da separação».

Pode-se argumentar que estas pessoas já não estavam vivendo um “casamento de verdade” mesmo, e que o fim do prazo legal para o divórcio só fez diminuir a burocracia necessária para regulamentar de direito uma situação que já existia de fato. Data venia, discordo. Casamento tem muito mais a ver com responsabilidade do que com os cônjuges “sentirem-se bem”, “amarem-se romanticamente” ou qualquer outro critério subjetivo do tipo. O casamento existe enquanto não se desiste dele; e conferir facilidades à desistência conjugal, longe de meramente regulamentar uma situação de fato, é contribuir positivamente para o fim do casamento – e, por conseguinte, para a banalização de um dos pilares necessários à vida em sociedade.

* * *

– É antiga, mas merece dois tostões: “Proibir o aborto está longe de ser uma medida pró-vida”. «Eu nunca vou chamar de “pró-vida” alguém que faz piquete contra o programa Planned Parenthood e que faz lobby contra as leis relacionadas ao controle de armas regido pelo senso comum».

O que dizer? São comparações descabidas em cima de comparações descabidas! Ninguém é a favor da destruição ambiental ou do morticínio por armas de fogo. As bandeiras são pelo (verdadeiro!) desenvolvimento sustentável, que resguarda a primazia do homem na escala de valores da natureza, e pelo exercício do direito à legítima defesa, que dá a cada um a capacidade de proteger a si próprio e aos seus. Ao contrário, o aborto é a destruição direta de um ser humano. Causa espécie que existam pessoas incapazes de distinguir entre um espantalho e uma reivindicação literal!

Bem característico da qualidade argumentativa do texto é este período aqui: «O respeito pela santidade da vida, se você acredita que ela começa no momento da concepção, não pode terminar no nascimento». Oras, em primeiro lugar, ninguém “acredita” que a vida começa na concepção. Nós sabemos, com sólido e inabalável fundamento científico e filosófico, que a união dos gametas masculino e feminino produz um novo ser, distinto da mãe e pertencente à espécie humana. Isto é um fato, não uma coisa na qual se “acredita”. Se os “pro-choice” defendem que certos seres humanos são mais passíveis de proteção do que outros, que assumam abertamente as suas posições. Mas não venham querer jogar fatos objetivos e incontestes para o cômodo terreno das crendices e opiniões.

Em segundo lugar, é bastante óbvio que ninguém que é contra o aborto afirma que os cuidados com o ser humano devam terminar no momento do nascimento: isto é só mais um espantalho grosseiríssimo do sr. Thomas Friedman. Mas para quem tem o admirável dom de escrever um texto falacioso do primeiro ao último parágrafo, tal sofisma deve brotar com a naturalidade de um cacoete involuntário e incontrolável. Talvez ele nem perceba; mas isso, embora possa talvez escusá-lo da patifaria intelectual, não transforma esta tagarelice em argumento que deva ser levado a sério.

* * *

– Dom Evaristo Arns admite que suas homilias esvaziavam a igreja. Simplesmente faço coro [p.s.: ao trecho abaixo que é d’O Catequista, e não de D. Arns]:

O crescimento das igrejas evangélicas se deu, em grande parte, graças ao bla-bla-blá marxista dos padres da Teologia da Libertação. O fiel ia pra paróquia querendo ouvir palavras de vida eterna, e, em vez disso, tinha que aturar um sermão enfadonho contra o “capetalismo”, sobre os oprimidos etc. (tudo muito teórico e distante da realidade do povo, pra variar). Um belo dia, cedendo ao convite de um amigo crente, o sujeito resolvia dar uma passadinha no culto, e o que ele via? Um pastor falando das coisas de Deus, falando de Cristo, explicando as coisas da Bíblia… Opa, finalmente!

E aí, entre uma paróquia transformada em filial do partido comunista e uma igrejola cheia de gente histérica, mas que, ao menos, ainda lembra que Jesus existe, com quem vocês acham que o povo simples fechava?

Estes resultados são tão deprimentes quanto previsíveis. O povo simples tem sede de Deus e, portanto, não se deixa engabelar facilmente pelo materialismo grosseiro e estéril da Teologia da Libertação. Foram às seitas protestantes para beber água suja, sim, mas muitas vezes forçados pelas circunstâncias eclesiásticas católicas – onde nem sequer água barrenta lhes davam. Foram à pocilga comer o farelo dos porcos porque, para vergonha nossa, nas paróquias só lhes davam pedras para comer.

* * *

Erro médico salva bebê prematuro. Há «um código ético seguido pelos hospitais do Reino Unido que diz que os médicos não devem se esforçar para manter vivos esses bebês prematuros». E então aconteceu o seguinte:

Mas Maddalena sobreviveu, e, quando foi pesada, a balança marcou 1 libra (aproximadamente 453 gramas), número considerado razoável que fez com que os médicos decidissem agir para mantê-la viva. Acontece que a bebê pesava, na verdade, apenas 382 gramas, e uma tesoura esquecida em cima da balança havia aumentado seu peso. Se não fosse por isso, provavelmente eles teriam seguido o código e deixado os esforços de lado.

Ela sobreviveu e agora já está em casa. Um amigo perguntou que espécie de código de ética é este que proíbe os médicos de se esforçarem para salvar a vida de bebês prematuros; a perplexidade dele é plenamente justificável. É o tecnicismo colocado acima do mais elementar respeito à vida humana frágil e indefesa! E ainda querem nos fazer acreditar que estamos evoluídos. Ao contrário, parece-me bastante óbvio que o progresso moral não acompanhou o extraordinário desenvolvimento técnico que alcançamos. E é claro que a técnica é uma coisa muito boa, mas ela é um meio que se deve orientar ao bem do ser humano. Afinal de contas, se isto for esquecido, de que nos serve a técnica? Mais vale um médico sem perícia e sem tecnologia preocupado em salvar uma criança prematura do que um que, embora possua excelentes habilidades e tecnologia de ponta, prefira deixar um bebê frágil morrer sem cuidados! E a saúde moral de qualquer sociedade está fortemente relacionada ao quanto ela percebe que esta proposição é evidente.

“Amor, casamento, divórcio” – Gustavo Corção

Mas o divorcista — seja dito em sua homenagem — não percebe essa contradição; e não a percebe justamente porque renunciou, de antemão, usar aquilo com que se evidenciam as contradições. Para ele, como já disse, o casamento é casual, essencialmente irrefletido, e não pode deixar de ser assim uma espécie de loteria onde pesa mais a sorte do que a razão. Dizem por exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de noivado, conhecer perfeitamente a pessoa com quem se delibera fundar uma família.

Concedo que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até mais longe. Se é preciso conhecer perfeitamente o outro em todos os seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para atender às flamas do mais impaciente amor, deveríamos estipular que os noivos esperassem a provecta idade dos senadores.

O que é evidente, nesse pessimista irracionalismo, é que a incapacidade de conhecer o outro, se destrói o casamento indissolúvel, destrói também o divórcio. Porque o divórcio se baseia justamente nessa idéia insensata de que, num certo ponto da vida conjugal, a gente esgota completamente o conhecimento do outro, a ponto de lhe recusar a mínima possibilidade de recuperação.

Gustavo Corção,
“Amor, casamento, divórcio”

“Uma só carne”

Eu naturalmente não acompanhei os debates – em meados do século passado – travados nesta Terra de Santa Cruz e que culminaram com a recepção do divórcio no ordenamento jurídico brasileiro. Li, a posteriori, um excelente livro do Gustavo Corção chamado “Claro Escuro”, que era uma coletânea de artigos de jornais publicados ao longo dos meses nos quais aconteceram os tais debates. E, dentre as crônicas saídas da pena do ilustre escritor católico, uma delas se referia de modo mais claro ao título do livro.

Argumentava o Corção que havia sem dúvidas alguns casais que tinham de tudo para dar certo, como também havia alguns outros casais que visivelmente não poderiam dar certo de jeito nenhum. Mas também havia – a esmagadora maioria – uma multidão enorme de casais que poderiam tanto dar certo como falhar miseravelmente na grande aventura de formação de uma família. E era exatamente com esta multidão, vivendo neste claro-escuro, que a legislação positiva deveria se preocupar – no caso, não oferecendo a “via fácil” da dissolução do vínculo conjugal, a qual poderia fazer com que alguns casais (que dariam certo se tentassem mais um pouco) fossem induzidos a desistir diante das primeiras adversidades.

Porque a entidade familiar tem uma grande importância social e, como disse alguém recentemente (acho que o Ramalhete), se na alegria é fácil aos cônjuges ficarem juntos as coisas não são tão simples assim na tristeza – e, aqui, um pouco de senso de responsabilidade favorecido pela legislação positiva é muito bem vindo. Não me recordo se o Corção falava isto no “Claro Escuro”, mas falo eu: a aprovação do divórcio provocou, talvez acima de tudo, o enorme mal de criar uma cultura de que “se-não-der-certo-separa”, com uma conseqüente desvalorização da Família nos moldes em que ela sempre foi entendida (e como a Igreja sempre a defendeu). A partir desta mentalidade, os bravos e corajosos desbravadores de um mundo novo que se aventuravam para além das fronteiras da casa materna com a missão bem determinada de criar raízes sólidas e edificar na História uma árvore frondosa que pudesse contribuir com rebentos saudáveis para a sociedade e para a Igreja transformam-se agora em jovens irresponsáveis (independente da quantidade de anos que porventura carreguem nas costas) preocupados apenas em “sentirem-se bem” e em gozarem uma “felicidade” confundida com prazer momentâneo.

A imagem é forte, mas não vejo como ela possa ser menos verdadeira. Afinal de contas, quando se fala em “célula-mater da sociedade”, quantas são as pessoas que identificam isto com uma família – e, com isso, estamos falando de um homem e uma mulher unidos em ordem à geração e educação dos filhos e integralmente voltados um para o outro até que a morte os separe? Quantas são as pessoas que entendem as graves responsabilidades que disto decorrem?

A lei do divórcio criou uma cultura de pusilânimes. E talvez um dos mais eloqüentes exemplos disto que eu vi nos últimos tempos tenha sido este texto da sra. Regina Navarro, onde ela faz uma apologia da infidelidade conjugal e defende que “a monogamia não funciona muito bem para os ocidentais”. Que é na verdade uma reescrita daquela “A Maçã” de Raul Seixas, sendo – tanto uma quanto a outra – uma utopia sem sentido de que é possível “amar” sem que o amor seja uma doação íntegra da totalidade do ser, ou de que é possível separar “amor” de “fidelidade”, ou de que o amor não ande sempre e necessariamente de braços dados com a responsabilidade.

A cultura pró-divórcio pavimentou a estrada para que barbaridades como esta ganhassem livre trânsito. Contra os devaneios de articulistas e artistas de rock, contudo, permanecem incólumes os exemplos da história, o testemunho da reta razão humana e aquelas palavras das Escrituras Sagradas conforme a qual o homem e a mulher “serão uma só carne”. E, contra esta verdade insofismável, passarão músicas e artigos; os vinis estarão pendurados em decorações de festas estilo “anos setenta” e os jornais estarão embrulhando o peixe do fim da feira, mas haverá ainda aqueles que defendam a capital importância da Família monogâmica e indissolúvel. Porque certas convicções são inegociáveis. Certas palavras não passarão.