Questões sobre o socialismo e a propriedade

Em defesa do socialismo, argumenta-se:

  1. Direitos trabalhistas como salário mínimo, limitação da jornada de trabalho e previdência pública — dentre outros — são conquistas que, historicamente, só foram possíveis graças às lutas dos socialistas. Ora, esses direitos são hoje unanimemente reconhecidos como devidos de fato. Logo, é possível dizer que o socialismo deu certo, ao menos nestes pontos que se incorporaram aos ordenamentos jurídicos ocidentais do pós-Revolução Industrial pra cá. Ainda: se estes pontos eram justos, então a luta por eles era necessária e justa também.
  2. Se «as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres» (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 7), então por que a lei positiva não poderia estabelecer mecanismos, por confiscatórios que fossem, capazes de coagir os abastados a sustentar os desvalidos? Não estaria ela, nisso, apenas aplicando a lei natural?

Responda-se brevemente.

Quanto ao primeiro, não é absolutamente a questão do salário mínimo (e suas assemelhadas) que define o socialista frente o não-socialista. Esta dicotomia é artificial e tem o único intuito de transformar a posição socialista na única aceitável, por meio da atribuição de um rótulo odioso a todas as outras: a redução do não-socialista ao capitalista explorador é simplesmente falsa.

O Magistério da Igreja trata, por exemplo, sobre o salário justo, entre outros lugares na Rerum Novarum (n. 10) e na Quadragesimo Anno (II. 4). Os economistas dirão que estes documentos só falam sensaborias e trivialidades; ora, não poderia ser diferente. São encíclicas e não tratados econômicos, e devem cuidar para que o seu ensino seja suficientemente geral a ponto de poder ser aplicável à natural diversidade dos tempos e dos lugares de que é composta a história humana. Trata-se de princípios e não de modelos políticos; qualquer sistema político que se pretenda válido deve concretizar aqueles princípios.

É por enunciar princípios universalmente válidos que a Rerum Novarum, publicada no séc. XIX, é atual ainda hoje, ao passo que as análises de conjuntura publicadas pela CNBB já saem com cheiro de mofo e ninguém lhes dá maior atenção.

O que define o socialista em face do não-socialista, como diz Pio IX, é uma determinada forma de concepção da sociedade; de fato, o socialismo afirma «que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece» e que o fim da sociedade humana deve ser «a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa» (cf. QA, III., 2). Deste naturalismo e deste individualismo surgem, no atual estágio de degeneração da sociedade, bandeiras como o homossexualismo e o aborto, nas quais com muito mais propriedade se identifica o dito “progressismo social” do que na limitação da jornada de trabalho em 40h semanais.

Em resumo, ninguém é socialista unicamente por querer melhores condições de trabalho, e os bons frutos produzidos pela «questão social» dos quais hoje gozamos devem ser tributados antes aos influxos benéficos da Igreja na História que ao embate materialista entre liberalismo e socialismo.

Quanto ao segundo, o próprio Aquinate responde que «como são muitos os que padecem necessidades e não se pode socorrer a todos com as mesmas coisas, deixa-se ao arbítrio de cada um a distribuição das coisas próprias para socorrer os que passam necessidade» (Summa, ibidem, Resp.) — ou seja, é o particular e não o Estado que deve tomar sobre si o encargo de cuidar dos pobres. Este é um dever moral e não jurídico.

Ainda, se o destino dos bens exteriores é comum, o mesmo não se pode dizer da sua gestão: no que concerne a esta é lícito aos homens possuírem as coisas como próprias, porque os bens se cuidam melhor, mais ordenadamente e de modo mais pacífico se cada um possui o que é seu (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 2, Resp.).

E mais, se é evidentemente lícito que os poderes públicos assumam de alguma maneira e em alguma medida o cuidado dos desvalidos, tal no entanto não se pode dar de modo a impedir ao homem a posse dos bens exteriores, uma vez que esta lhe é natural (cf. Summa, IIa-IIae, q.66, a.1).

Por fim, se se quisesse estabelecer, em determinada sociedade humana, uma comunidade de bens de tal modo que somente a uma pessoa ou a um determinado grupo de pessoas coubesse a distribuição dos seus frutos por todos os membros da sociedade, tal seria legítimo; mas só se poderia fazer voluntariamente e não de modo compulsório, uma vez que a propriedade dos bens exteriores é lícita, como se mostrou, e ninguém pode ser coagido a deixar de fazer o que lhe é lícito.

Resgatando o direito da Igreja de Se pronunciar sobre questões sociais

Em um discurso recente a trabalhadores de siderúrgicas italianas, o Papa Francisco falou o seguinte:

Ouvi alguns jovens operários que estão sem trabalho, e me disseram isto: “Padre, nós, em casa – minha mulher, os meus filhos – comem todos os dias, porque a paróquia, ou o clube, ou a Cruz Vermelha, nos dão de comer. Mas, Padre, eu não sei o que significa levar o pão pra casa, e eu preciso comer, preciso ter a dignidade de levar o pão pra casa”. E este é o trabalho! E se falta o trabalho, esta dignidade fica ferida!

A mensagem faz eco à outra declaração do Papa Francisco que já comentei aqui. Na ocasião, Sua Santidade utilizou “desemprego” e “maiores males modernos” na mesma frase, o que imediatamente levou as pessoas a dizerem que, para o Papa, o mal do século era o desemprego. Solene bobagem. Tanto lá como aqui, o trabalho era visto sob um enfoque espiritual. O materialismo estava e está somente nos olhos de quem lê.

Afinal, a mais nefasta conseqüência do desemprego não é a mera carência material, e sim a «dignidade de levar o pão pra casa» ferida. E este «pão» possui uma dimensão tão espiritual que o próprio Cristo fez questão de incluir uma súplica por ele na Oração que é modelo de todas as orações. Outrossim, quer coisa menos materialista do que a reminiscência permanente daquele longínquo «comerás o pão com o suor do teu rosto» que integra o anátema original? Prover ao próprio sustento e ao da própria família – levar o pão pra casa -, antes de uma contingência fisiológica, é um imperativo metafísico. A teologia tem exigências e conseqüências sensíveis; dizer diferente disso é dar razão, ainda que indireta, aos que propugnam uma separação radical entre religião e vida.

Quando li esta mensagem do Papa Francisco, lembrei imediatamente outra declaração da Igreja sobre assuntos aparentemente materiais, sobre um tema à primeira vista tão estranho às coisas do Céu quanto o salário mínimo. No entanto, foi Leão XIII o Pontífice que lhe dedicou alguns parágrafos na Rerum Novarum. Está lá, no número 27. da grande Encíclica:

Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado.

E Pio XI foi ainda mais além e acrescentou algumas características mais específicas a esta justa remuneração (Quadragesimo Anno, II, 4.):

É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar [as esposas], por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa.

Escusado comentar o quanto o nosso «salário mínimo» legal está aquém dessas exigências estabelecidas – como «uma lei de justiça natural»! – pelo Supremo Magistério da Igreja…

Em suma, há muito em comum entre o «desemprego» sobre o qual fala atualmente o Papa Francisco e o «justo salário» sobre o qual versam as grandes Encíclicas Sociais do passado: ambos são temas à primeira vista «seculares» sobre os quais políticos, economistas, sociólogos e congêneres reivindicam exclusiva competência, com exclusão do parecer moral da Igreja; e ambos são temas que os filhos rebeldes do Catolicismo têm enorme facilidade de instrumentalizar em prol de uma certa “teologia” horizontal e intranscendente que tanto mal fez e continua fazendo à Igreja nos últimos tempos.

Cumpre frustrar os maus intentos de uns e de outros. É preciso defender com clareza, contra os naturalistas modernos, que a Moral tem exigências concretas a fazer inclusive à Economia; e ao mesmo tempo é preciso afirmar com ainda mais clareza a existência de uma doutrina social católica que não é aquela dos teólogos ditos «da libertação». A esquerda tem uma enorme facilidade em se apossar do discurso católico. Contra isso é preciso não negar à Igreja o direito de se pronunciar sobre questões sociais, mas sim anunciar ao mundo os Seus ensinamentos devidamente purificados da parasitagem marxista com a qual eles as mais das vezes são apresentados.

“É prova de uma submissão pouco sincera estabelecer uma oposição entre um Pontífice e outro” – Leão XIII

O blog “Tradição em Foco com Roma” publicou a tradução de uma interessante carta do Papa Leão XIII ao Cardeal Guibert, então arcebispo da França. Buscando o original, encontrei a Lettre de Sa Sainteté a Son Em. Le Cardinal Guibert aqui (a partir da página 12). As admoestações do Papa feitas em 17 de junho de 1885 são bastante atuais e podem servir para lançar luzes sobre a situação atual da Igreja: se é verdade que passamos por uma crise talvez sem precedentes na história da Igreja, não é menos verdadeiro que Cristo instituiu sobre esta terra uma Igreja Indefectível e, por mais que as coisas nos pareçam difíceis, não podemos perder de vista a força daquele vigoroso NON PRAEVALEBUNT que, há tantos séculos, Nosso Senhor decretou na Cesaréia.

É claro que a infalibilidade da Igreja é restrita e não ampla: ela engloba os atos do Magistério Supremo entendidos como tais, e não todo pronunciamento de qualquer prelado. No entanto, o contrário de “ser infalível” não é “errar”, como alguns parecem gostar de concluir em um exercício totalmente heterodoxo de lógica proposicional. É bem verdade que há, em princípio, situações nas quais o católico – mesmo o leigo – tem mesmo o dever de desobedecer às ordens da autoridade legítima; inobstante, transformar uma hipótese extraordinária na regra de fé ordinária é uma interpretação tão perigosamente elástica da doutrina católica que deveria ao menos provocar um certo incômodo naqueles que se sabem feridos pelo Pecado Original. Deveria pelo menos lhes deixar com alguma dificuldade de consciência. Como eu escrevi aqui lá no primeiro ano do Deus lo Vult!:

Sempre é possível inventar exemplos e mais exemplos de situações hipotéticas nas quais o homem estaria realmente dispensado da obediência e ainda nas quais obedecer cegamente seria um pecado; mas quando esta hipótese é aplicada amiúde em situações concretas que não guardam com os exemplos aventados senão uma vaga e forçada semelhança, então nós temos um sério problema: nós temos a repetição do non serviam primordial sob uma nova roupagem. Afinal, aquele que é capaz de “se transfigura[r] em anjo de luz” (IICor 11, 14) também é capaz de dar ao seu brado rebelde uma aparência de virtude.

Abaixo, um excerto da supracitada carta de Leão XIII, com grifos meus. Para uma leitura na íntegra, remeto aos links que foram colocados no início deste post.

* * *

Por certos índices que se observam, não é difícil constatar que, entre os católicos, certamente em razão da infirmeza do tempo, existem os que, pouco contentes com sua situação de súditos que têm na Igreja, crêem poder ter alguma parte em seu governo ou pelo menos imaginam que lhes é permitido examinar e julgar à sua maneira os atos da autoridade. Se isto prevalecesse, seria um grande dano na Igreja de Deus, na qual, pela vontade manifesta de seu divino Fundador, distingue-se no seu pessoal os que são ensinados e os que ensinam, o rebanho e os pastores, entre os quais um é o chefe e o pastor supremo de todos.

Apenas aos pastores foi dado poder de ensinar, de julgar, de corrigir, aos fiéis foi imposto o dever de seguir os ensinamentos, de submeter-se com docilidade ao julgamento e de deixar-se governar, corrigir, conduzir à salvação. Assim é absolutamente necessário que os simples fiéis se submetam de espírito e de coração a seus próprios pastores, e esses com eles ao Chefe e Pastor supremo; é nesta subordinação e dependência que gira a ordem e a vida da Igreja; é nela que se funda a condição indispensável do bem fazer e tudo levar a bom porto. Ao contrário, se ocorre que os simples fiéis se atribuem autoridade, se eles a pretendem como juízes e senhores; se os subordinados, no governo da Igreja universal, preferem ou tentam fazer prevalecer uma diretriz diversa daquela traçada pela autoridade suprema, é uma subversão da ordem; leva-se dessa forma a confusão a muitos espíritos, e sae-se do caminho.

E não é necessário, para faltar a um dever tão santo, fazer ato de oposição manifesta, seja aos bispos, seja ao chefe da igreja, é bastante que tal oposição se faça por meios indiretos, tão mais perigosos quanto mais ocorre a preocupação de escondê-los por aparências contrárias. Desta forma, falta-se a esse dever sagrado desde que, ao mesmo tempo que se manifesta zelo pelo poder e as prerrogativas do Supremo Pontífice, não se respeitam os bispos que a ele estão unidos, não se tem em conta suficiente a sua autoridade, e se interpretam lamentavelmente seus atos e suas intenções sem aguardar o julgamento da Sé Apostólica.

Da mesma forma, é prova de uma submissão pouco sincera, estabelecer uma como que oposição entre um Pontífice e outro. Aqueles que, entre duas direções diversas, repudiam o presente para prender-se ao passado, não dão prova de obediência à autoridade que tem o direito e o deverde guiá-los: e sob um certo aspecto se assemelham aos que, condenados, quisessem apelar ao Concílio futuro ou a um Papa melhor informado.

Sob esse aspecto, o que é necessário fixar é que no governo da Igreja, salvo os deveres essenciais impostos a todos os Pontífices por seu cargo apostólico, cada um deles pode adotar a atitude que julgar a melhor, segundo os tempos e outras circunstâncias. Disto é ele o único juiz; considerando que para isso ele tem não somente luzes especiais, mas ainda o conhecimento de condições e necessidades de toda a catolicidade a que convém que condescenda sua previdência apostólica. É ELE QUE CUIDA DO BEM PARTICULAR [??? – C’est lui qui doit procurer le bien de l’Eglise universelle, auquel se coordonne le bien de ses diverses parties, no original], e todos os outros que são submetidos a esta ordem devem secundar a ação de um diretor supremo e servir ao fim que ele quer atingir. Como a Igreja é uma e um o seu chefe, assim é uno o governo a que todos devem conformar-se.

Apontamentos sobre as Escrituras Sagradas e inerrância bíblica

A propósito de alguns comentários recentes sobre as Escrituras Sagradas feitos aqui no blog, aproveito o ensejo para esclarecer:

– A inspiração do Espírito Santo deu-se nos autores originais e em relação aos textos originais, inexistindo no geral a “inspiração do tradutor” e – com muito mais razão! – uma suposta “inspiração” de traduções apócrifas e desautorizadas das Escrituras Sagradas como o são as traduções protestantes.

– Inexistindo ou sendo difícil o acesso aos originais, o Concílio de Trento (e, repetindo-o, a Divino Afflante Spiritu de Pio XII) afirma «que devem reconhecer-se “como sagrados e canônicos os livros inteiros com todas as suas partes conforme se costuma ler na Igreja católica e estão na antiga Vulgata latina” (Concílio de Trento, Sessão IV, decr. l; Ench. Bibl ., n. 45)» (DAS 1).

– Assim sendo, a inerrância bíblica não se estende a todas as traduções e a todos os manuscritos, mas é característica dos textos originais (por desconhecidos que sejam nos dias de hoje, e ainda que tenham sido perdidos) e, para fins práticos, da Vulgata latina, como ensina o mesmo Pio XII: «esta autoridade preeminente ou autenticidade da Vulgata decretou-a o concílio não principalmente por motivos de crítica, mas antes pelo uso legítimo que dela se fez na Igreja durante tantos séculos; uso que prova estar ela, no sentido em que a entendeu e entende a Igreja, completamente isenta de erros no que toca a fé e aos costumes; de modo que, como a mesma Igreja atesta e confirma, se pode nas disputas, preleções e pregação alegar seguramente e sem perigo de errar» (DAS 14).

– Este lugar proeminente ocupado pela Vulgata não desmerece os textos originais; o estudo deles é não apenas legítimo como também encorajado, mas em estreita colaboração com a Vulgata e jamais em oposição a ela. Ainda Pio XII: «[n]em a autoridade da Vulgata em matéria de doutrina impede, – antes nos nossos dias quase exige – que a mesma doutrina se prove e confirme também com os textos originais, e que se recorra aos mesmos textos para encontrar e explicar cada vez melhor o verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras» (id. ibid.).

– A inerrância bíblica deve ser entendida em sentido absoluto, e não apenas em um “sentido espiritual” (p.ex., que as Escrituras Sagradas apenas não contenham “erros contra a fé”). Assim pontifica Pio XII remetendo a Leão XIII: «Enfim é absolutamente vedado “coarctar a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou”, pois que a divina inspiração “de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja”» (id., 3).

– A esse respeito, peço vênia para uma citação um pouco mais longa de Leão XIII na Providentissimus Deus:

[N]ão é absolutamente permitido restringir a inspiração só a algumas partes da Sagrada Escritura, ou admitir que o mesmo autor sagrado tenha errado. Com efeito não se pode admitir o método dos que resolvem essas dificuldades sem hesitar em conceder que a inspiração divina se aplique às coisas que dizem respeito à fé e aos costumes e [a] nada mais, julgando erradamente que em se tratando do verdadeiro sentido dos trechos escriturísticos, não se deve tanto procurar o que Deus possa ter dito, mas antes sopesar o motivo pelo qual o tenha dito. Com efeito todos os livros, na sua integridade, que a Igreja recebe como sagrados e canônicos em todas as suas partes, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo, e, portanto, é impossível que a inspiração divina contenha algum erro, que ela, pela sua própria natureza, não somente exclui até o mínimo erro, mas o exclui e rejeita tão necessariamente, como necessariamente Deus, verdade suma, não pode, da maneira mais absoluta, ser autor de algum erro.

Essa é a antiga e constante fé da Igreja, definida também com sentença solene pelos Concílios Florentino e Tridentino e, finalmente, confirmada e declarada mais expressamente no Concílio Vaticano [I] que assim decretou, da maneira mais absoluta: “É preciso ter como sagrados e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, como são elencados pelo decreto do mesmo Concílio (Tridentino) e como se encontram na antiga edição [da] Vulgata latina. E a Igreja os tem como sagrados e canônicos, não porque, compostos unicamente pelo talento humano, tenham sido depois aprovados por sua autoridade, e tampouco pelo simples fato de conter a revelação sem erros, mas porque tendo sido escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus como autor”. Por isso não tem valor aqui dizer que o Espírito Santo teria tomado alguns homens como instumentos para escrever, como se algum erro possa ter escapado não certamente ao autor principal, mas aos escritores inspirados. (…) Conseqüentemente deriva que os que admitem que nos lugares autênticos dos Livros sagrados se possa encontrar algum erro, certamente estes ou pervertem a noção católica da inspiração divina ou fazem o próprio Deus autor do erro. Todos os Padres e doutores estavam de tal modo convencidos [de] que as Cartas divinas, assim como foram compostas pelos hagiógrafos, estão absolutamente imunes de todo erro, que não poucos daqueles trechos que parecem apresentar alguma coisa de contrário ou diverso (isto é, quase os mesmos trechos que agora são propostos como objeções sob o nome de ciência nova) procuraram de maneira não menos sutil e religiosamente compô-los e conciliá-los entre si, professando à humanidade que aqueles livros, quer inteiramente, quer nas suas partes singulares, eram igualmente inspirados divinamente e que o próprio Deus que falou por meio dos autores sagrados não pôde absolutamente inspirar algo falto de verdade. Sirva para todos o que o próprio Agostinho escrevia a Jerônimo: “Eu, com efeito, confesso à tua benevolência que aprendi a prestar tal veneração e honra somente aos livros das Escrituras, que já são chamados canônicos, e que creio firmissimamente que nenhum dos seus autores tenha cometido erro algum ao escrever. E se, por acaso, encontrasse neles alguma coisa que parecesse contrária à verdade, não tenho a mínima dúvida de que isso dependa ou do códice defeituoso, ou do tradutor que não interpretou retamente o que foi escrito, ou que a minha mente não conseguiu entender” (PD, 41-42).

– Não obstante, o verdadeiro sentido das Escrituras Sagradas encontra-se nos modos de dizer próprios dos tempos e lugares nos quais foram escritos os diferentes livros sagrados. Ensina Pio XII: «Ora, qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. (…) Nenhum dos modos de falar de que entre os antigos e especialmente entre os orientais se servia a linguagem para exprimir o pensamento, pode dizer-se incompatível com os Livros Santos, uma vez que o gênero adotado não repugne à santidade e verdade de Deus. Advertiu-o já o doutor angélico com a sua costumeira perspicácia por estas palavras: “Na Escritura as coisas divinas nos são apresentadas ao modo usual, humano”. Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo “exceto o pecado”, assim também a palavra de Deus expressa em línguas humanas assemelhou-se em tudo à linguagem humana, exceto o erro» (DAS 20).

– Portanto, «não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de coisas físicas “se atém ao que aparece aos sentidos” como escreveu o Angélico, exprimindo-se “ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo pelos maiores sábios.” De fato “não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor – são palavras de santo Agostinho [-] do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos homens essas coisas – isto é, a íntima constituição do mundo visível – que nada importam para a salvação”. Esse princípio “deverá aplicar-se às ciências afins, especialmente à história”, isto é, refutando “de modo semelhante os sofismas dos adversários” e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura. Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, “se aos copistas escaparam algumas inexatidões na transcrição dos códices” ou “se é incerto o verdadeiro sentido de algum passo”» (DAS 3).

– Por fim, cabe lembrar que «a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12); e, portanto, «não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé» (id. ibid). O Magistério da Igreja permanece a única instância competente para precisar, sem possibilidade de erro, o verdadeiro sentido [de qualquer parte] das Sagradas Escrituras.

Sobre as greves: a Igreja mudou o Seu ensinamento?

A Universidade Federal de Pernambuco acaba de entrar em greve. Sem entrar no mérito desta decisão específica, gostaria de aproveitar o ensejo para falar sobre a “greve” no seu sentido mais amplo, uma vez que o exemplo é amiúde evocado como uma “prova” de que a Igreja “mudou” o Seu ensinamento a este respeito.

Sobre as greves diz Leão XIII na Rerum Novarum:

22. O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. E preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão–de nascer os conflitos entre os operários e os patrões.

A leitura superficial pode se revelar enganosa e, a um leitor menos atento, pode parecer que a Igreja é “contrária às greves” assim, sem mais ressalvas. Ou ainda, caso as pessoas tenham o cuidado de abrir o Catecismo da Igreja Católica, podem se deparar com a seguinte passagem e julgar que, afinal, a Igreja dizia ontem uma coisa e hoje diz o contrário:

§2435 A greve é moralmente legítima quando se apresenta como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado. Torna-se moralmente inaceitável quando é acompanhada de violências ou ainda quando se lhe atribuem objetivos não diretamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum.

E então? A greve é “moralmente legítima” ou é uma “desordem grave”? Vale o que foi dito no século XIX ou vale o que é dito hoje? Na verdade (e aliás como sempre), valem as duas coisas. De que maneira? Muito simples: mudou-se o que se entende por “greve”.

A Igreja sob Leão XIII nunca condenou a greve entendida como o direito de se recusar a trabalhar em condições degradantes. O que a Igreja condenou foi o evento sociológico “greve” da época, que tinha pouco ou nada a ver com as greves atuais: naquela época, era “greve” quando os trabalhadores ocupavam as fábricas, quebravam as máquinas e, se calhasse, matavam o patrão ou os que lhe eram próximos. A greve era um atentado concreto (pelo menos) ao direito à propriedade e (não raro) ao direito à vida. Óbvio, portanto, que tal coisa fosse condenada. Aliás ainda o é.

Igualmente, hoje não é “qualquer greve” que é legítima: ao contrário, são legítimas as greves que «se apresenta[m] como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado», como está no Catecismo. E só é legítima a greve que (ao contrário daquelas historicamente condenadas pela Igreja) não seja “acompanhada de violências”. Mudaram, portanto, as contingências históricas: permanece imutável o ensino moral da Igreja, que (por definição) não se pode mudar.

Confundir realidades distintas por conta do emprego comum de um mesmo termo para designar ambas é sempre um risco. Mas outro risco é o de achar que, com a mudança das realidades contingentes, mudam-se (ou abrandam-se) as condenações da Igreja. Julgar desta maneira é não entender o que aconteceu neste caso da greve (e em outros casos análogos, como o dos juros): as condenações da Igreja não “se abrandaram”, elas permanecem integralmente válidas. O que deixou de existir foi o objeto da condenação: antes havia uma coisa caracterizada por proletários destruindo fábricas e, hoje, existe uma outra coisa que se caracteriza por empregados se recusando a trabalhar. Ambas foram contingentemente chamadas de “greve”, mas é bastante evidente que se tratam de realidades bem distintas. Se alguém resolver quebrar máquinas hoje como se fazia no século XIX, não pode aduzir em sua defesa um alegado “direito de greve” reconhecido tanto pela Igreja quanto pelo direito brasileiro. Igualmente, se algum proletário da época da Revolução Industrial resolvesse então dizer que não ia mais trabalhar enquanto não fosse melhor remunerado, tal situação não seria de modo algum condenável pelas autoridades eclesiásticas da época.

É desse modo, portanto, que deve ser entendida a autoridade moral da Igreja Católica: separando-se as questões de princípio das questões de fato, recaindo a infalibilidade magisterial (e a sua conseqüente irreformabilidade, etc.) sobre as primeiras. Quanto às questões de fato, é preciso ter em mente que as contingências históricas podem mudar e, portanto, pode ser que as condenações de outrora deixem de valer por mera vacuidade contingente do objeto condenável (sem que contudo o objeto deixe de ser condenável). Mas mesmo quanto às questões de fato compete às autoridades da Igreja dar a orientação definitiva. Ninguém pode levianamente afirmar que certas condenações do passado não são mais válidas: na verdade, as condenações do passado são sempre e para sempre válidas. O que pode acontecer, repita-se, é que não exista mais o objeto anteriormente condenado; mas até para a emissão desse juízo de fato é mister estar em delicada consonância com o Magistério da Igreja.

Pedido pela beatificação da Princesa Isabel

Eu vou remeter a dois textos d’O Possível e o Extraordinário: “Quem foi a Princesa Isabel?” e “Prólogo da Beatificação da Princesa Isabel”. Destaco apenas a seguinte frase (do primeiro texto): «A Princesa Isabel herdou da mãe dela o catolicismo ultramontano e era devota de Santa Isabel da Hungria e Santa Isabel de Portugal!»

Era católica devota: eis a importante característica da personalidade da princesa Isabel que, não obstante, é-nos sistematicamente ocultada nas aulas de História do Ensino Médio. Sobre a importância deste fato nos fala o Cônego Manfredo Leite (apud segundo texto acima citado): «é mister reconhecer que o manancial onde se lustrou toda essa perfeição moral de d. Isabel, e onde ela hauriu essas energias para as fecundidades da sua bondade e da sua generosidade, foi incontestavelmente a pureza dos princípios cristãos, aos quais tanto se afeiçoou e com os quais se identificou sua larga existência».

Afinal de contas, é somente com o Cristianismo que se coloca a igualdade fundamental entre os homens, uma vez que «já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3, 28). E, portanto, se por um lado o Apóstolo manda que os servos obedeçam aos seus senhores (cf. Cl 3, 22), por outro lado escreve “de próprio punho” a um senhor para pedir a liberdade de um escravo (cf. Fl 19). Na verdade, é com o florescimento do Cristianismo que se extingue a escravidão tão largamente difundida durante a Antiguidade. Apenas mil anos depois, com o Renascimento, é que esta prática voltará a ser praticada.

Nada mais natural, portanto, que a Princesa que aboliu a escravidão no Brasil fosse filha da Igreja – da mesma Igreja que, p.ex., durante a Idade Média criou a Ordem de Nossa Senhora das Mercês para libertar os cristãos cativos que caíam sob o jugo dos sarracenos. Nada mais natural, portanto, que o Papa Leão XIII tenha enviado em 1888 uma rosa de ouro para a Princesa Isabel pela promulgação da Lei Áurea. Nada mais natural que fosse o Cristianismo a força motriz por trás da abolição da escravatura no Brasil.

O pedido é pela beatificação de Dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, a Isabel do Brasil, nossa Princesa Isabel. Foi entregue a Dom Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro, com a seguinte súplica: «solicitamos a Vossa Reverendíssima, a nomeação de um prelado da vossa Arquidiocese para ser o postulador desta causa, que certamente permitirá aos brasileiros conhecerem melhor e a amar mais aquela que muito fez pelo bem do nosso País. Não temos dúvida, de que o acesso aos documentos, às fontes históricas, revelarão uma vida edificante que muito motivará aos brasileiros e de modo especial aos fiéis católicos, a perseverarem na esperança de seguir o caminho de verdade e vida proposto por Nosso Senhor Jesus Cristo, via certa da salvação. E que a Virgem Maria Santíssima, Mãe de Deus e Rainha do Céu, interceda por esta causa, para o bem de todos» – Amen! Que a Virgem Imaculada, padroeira do Brasil, interceda por esta nobre causa. E, se for para a maior glória de Deus, que a última princesa imperial desta Terra de Santa Cruz possa ser honrada nesta pátria com a glória dos altares.

As desorientações pastorais e doutrinárias da CNBB

Mostraram-me que a CNBB havia divulgado orientações sobre as eleições. Para ser mais preciso, “[u]ma nota intitulada “Votar Bem” com dez orientações sobre a participação dos fiéis nas próximas eleições foi divulgada nesta quinta-feira, 1, pelos 50 bispos do Regional Sul 1 da CNBB (estado de São Paulo), que participaram da 73ª Assembleia dos Bispos do Regional”.

Fui ver a nota. Nada surpreendentemente, ela apresenta em sua virtual totalidade um tom esquerdizante e naturalista, apenas com alguns surtos (mínimos) de catolicidade – mas mesmo assim tíbios o bastante para serem, na melhor das hipóteses, inócuos. São, na verdade, desorientações. Mais confundem do que ajudam.

O exemplo mais claro disso que estou falando pode ser visto da seguinte maneira: é óbvio que a Igreja não tem (e nem pode ter) candidato político. Mas a Igreja pode e dever dizer quem NÃO é um candidato aceitável. Ora, nas citadas orientações, qual a única ocasião em que é dada uma orientação negativa? É justamente quando, no ponto 6, diz-se que “[c]andidatos com um histórico de corrupção ou má gestão dos recursos públicos não devem receber nosso apoio nas eleições”.

Ou seja, segundo a Regional Sul 1 da CNBB, a única coisa que é inaceitável na política brasileira a ponto de merecer uma “desrecomendação” pública e expressa é… a má gestão dos recursos públicos! E o aborto? Quem apóia aborto pode receber o apoio dos católicos nas eleições? Na nota, isso não está dito com a ênfase necessária. Orienta-se apenas que se “veja” (sim, o verbo é esse mesmo!) “se os candidatos e seus partidos estão comprometidos com a justiça e a solidariedade social, a segurança pública, a superação da violência, a justiça no campo, a dignidade da pessoa, os direitos humanos, a cultura da paz e o respeito pleno pela vida humana desde a concepção até à morte natural”. Só no final de uma longa e enfadonha lista é feita menção ao aborto, e mesmo assim sem nem mesmo usar a palavra exata.

E o Gayzismo? Pode-se dar o voto a gayzistas? De novo, a nota não diz quase nada. Fala-se, muito genericamente, no “respeito à família”. “Ajude a promover, com seu voto, a proteção da família contra todas as ameaças à sua missão e identidade natural”. De novo, como na questão do aborto, não há a recomendação negativa que existe para a “má gestão dos recursos públicos”. Parece que, para a CNBB, a primeira e mais importante coisa que deve ser olhada é se o candidato possui “ficha limpa”. O resto, é plena discordância legítima. Votar em quem tem “histórico de (…) má gestão dos recursos públicos” é o único crime que não pode ser cometido, o único pecado cívico contra o Espírito Santo que não tem perdão. O resto, é coisa de pouca monta, é diversidade legítima. “Veja” se seu candidato é abortista, “ajude” a defender a família…

Sugiro que se catolicize este lixo naturalista emanado pela Conferência. Sim, católicos, votem apenas em quem possui a ficha limpa!

Seu candidato já foi terrorista? Ficha suja! Não vote nele! O seu candidato já desviou recursos públicos para a promoção da imoralidade na Parada da Vergonha Gay? Ficha suja! Má gestão dos recursos públicos! Não vote nele. O seu candidato já batalhou pela liberação do aborto no Brasil? Ficha suja! Não vote nele. Já autorizou o uso de dinheiro público para o assassinato de crianças inocentes? Ficha suja! Má gestão dos recursos públicos! Não vote nele!

Só assim os católicos poderão exercer de maneira consciente a sua cidadania. Senhores bispos, custa falar as coisas da maneira que o povo entenda?

* * *

Como se não bastasse a desorientação pastoral que consta na tal nota, a primeira frase que se lê nela é uma grosseira heresia. Em negrito e itálico, é dito que “o poder político emana do povo”, em frontal contradição à carta de São Paulo aos Romanos, onde o Apóstolo diz que “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13, 1).

Esta tese liberal e revolucionária de que o poder emana do povo já foi expressamente condenada pela Igreja. Por exemplo, pelo Papa Leão XIII, na Encíclia Libertas (o texto é longo, mas vale a pena ser lido porque é profético):

17. E, com efeito, o que são os partidários do Naturalismo e do Racionalismo em filosofia, os fautores do Liberalismo o são na ordem moral e civil, pois que introduzem nos costumes e na prática da vida os princípios postos pelos partidários do Naturalismo. — Ora, o princípio de todo o racionalismo é a supremacia da razão humana, que, recusando a obediência devida à razão divina e eterna e pretendendo não depender senão de si mesma, se arvora em princípio supremo, fonte e juiz da verdade. Tal é a pretensão dos sectários do Liberalismo, de que Nós falamos: não há, na vida prática, nenhum poder divino ao qual se tenha de obedecer, mas cada um é para si sua própria lei. Daí procede essa moral que se chama independente, e que, sob a aparência da liberdade, afastando a vontade da observância dos preceitos divinos, conduz o homem a uma licença ilimitada.

É o que, finalmente, resulta disto, principalmente nas sociedades humanas, é fácil de ver; porque uma vez fixada essa convicção no espírito de que ninguém tem autoridade sobre o homem, a conseqüência é que a causa eficiente da comunidade civil e da sociedade deve ser procurada, não num princípio exterior ou superior ao homem, mas na livre vontade de cada um, e que o poder público dimana da multidão como sendo a sua primeira fonte; além disso, tal como a razão individual é para o indivíduo a única lei que regula a vida particular, a razão coletiva deve sê-lo para a coletividade na ordem dos negócios públicos; daí o poder pertence ao número, e as maiorias criam o direito e o dever.

Leão XIII, Libertas Praestantissimum, grifos meus

O que eu grifei, e que o Papa condena, é exatamente o que, com quase as mesmas palavras, a CNBB afirma hoje! Se fossem católicos ignorantes, poder-se-lhes-ia desculpar; mas os pastores da Igreja iniciando um documento com uma erro doutrinário crasso já condenado pelo Magistério há muito tempo, é demais. Exsurge, Domine! Quare obdormis?

A viúva e a Virgem

Quia hodie nomen tuum ita magnificavit, ut non recedat laus tua de ore hominum, qui memores fuerint virtutis Domini in aeternum (Jd 13, 25a).

Hoje a Igreja celebra a festa da Assunção, em Corpo e Alma, da Virgem Santíssima ao Céu. As palavras em epígrafe, retiradas da epístola da missa (tridentina) de hoje, foram dirigidas a Judite muitos anos antes do nascimento de Cristo. Mas elas são, no entanto, o eco vetero-testamentário de outras palavras que – estas, sim! – nós conhecemos muito bem: ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes (Lc I, 48b). Judite é – nas palavras do Papa Leão XIII – a “ilustre heroína em quem era figurada a Virgem Maria” (Encíclica Superiore Anno, 3).

Fazendo este paralelo entre a notável filha da Sinagoga e a gloriosa Mãe da Igreja, diz-nos ainda Leão XIII uma outra coisa muito interessante: Judite é aquela “que conteve a impaciência dos judeus, os quais, na sua estultícia, queriam a seu arbítrio fixar a Deus o tempo para socorrer a cidade” (id. ibid). A história é interessante: os assírios estavam em guerra contra os judeus, e Holofernes, general dos exércitos dos assírios, estava cercando Betúlia, cidade judia. Após o cerco ter se apertado, quando os judeus não tinham mais água, cogitaram se entregar e levaram as suas lamúrias a Ozias, chefe da cidade, ao que ele respondeu: “[t]ende bom ânimo, irmãos, e por estes cinco dias esperemos a misericórdia do Senhor. Talvez se aplaque a sua ira e dê glória ao seu nome. Mas se, passados estes cinco dias, não nos vier socorro, faremos o que vós dissestes” (Jd 7, 23b-25).

Judite, viúva, que “tinha muito temor de Deus e não havia ninguém que dissesse dela uma palavra em desfavor” (Jd 8, 8b), indigna-se com este proceder e censura os anciãos da cidade: “[q]ue palavra é esta, com a qual concordou Ozias, de entregar a cidade aos assírios, se dentro de cinco dias vos não viesse socorro? E quem sois vós, que tentais o Senhor? (…) Vós fixastes um prazo à misericórdia do Senhor e ao vosso arbítrio lhe assinastes o dia” (Jd 8, 10b-11. 13). O resto da história é bem conhecido: a valente viúva sai da cidade sitiada, vai ao encontro do acampamento inimigo, engana os assírios e, quando tem oportunidade, corta a cabeça de Holofernes e a leva de volta a Betúlia, inflamando assim o ânimo dos judeus ao mesmo tempo em que espalha o terror sobre as tropas assírias, que fogem quando os soldados de Israel precipitam-se sobre elas.

Mas meditemos um pouco sobre a “impaciência dos judeus” e que é, em última instância, a impaciência de toda a raça humana. A tentação de que o socorro nos venha quando e como queremos espreita-nos dia e noite, e é preciso ter cuidado para não sucumbirmos diante dela – para não fazermos as coisas do nosso jeito. Árduo trabalho o de encontrar a vontade de Deus nas coisas das nossas vidas! Não fosse por Judite, como saber se não era da vontade do Altíssimo que Betúlia se entregasse? O que mais angustia na história é ver que o clamor do povo judeu diante de Ozias parece-nos mais sensatez do que estultícia. Tinham resistido. Tinham sido fiéis. No entanto, estavam à míngua. Por que não mudar as disposições iniciais, que tinham falhado tão miseravelmente…?

Resposta difícil! E eu arriscaria dizer até mais: humanamente impossível. Na verdade, precisamos – tal como os judeus daquela época – de alguém que contenha a nossa impaciência e faça, por nós, o que nós próprios não podemos fazer. Que nos dê a vitória quando tudo pareça estar perdido. Que não nos permita agir por conta própria, por mais que a situação se nos apresente sem saída. Precisamos de uma Judite. E Deus, em Sua infinita misericórdia, deu-nos Alguém que é muito maior do que Judite, Alguém junto a qual a ilustre viúva é menos que sombra. Deu-nos o Altíssimo a Sua própria Mãe.

Deu-nos a Virgem Santíssima, Aquela que esteve de pé diante da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, que soube esperar os três dias nos quais o Seu Divino Filho esteve no sepulcro, sem jamais desesperar. Diante do drama da Paixão de Cristo, as guerras judaicas parecem insignificantes: o que é uma cidade sitiada cujo povo passa sede, perto do filho de Deus morto no túmulo frio? Dir-se-ia o mundo inteiro sitiado pelas hostes do inferno, e as almas sedentas da Graça de Deus sem terem onde A encontrar. Mas a Virgem Santíssima não desesperou. Acheguemo-nos a esta Mulher admirável e, aos Seus pés, despejemos as nossas inquietudes e impaciências: se uma viúva salvou o povo judeu dos assírios, temos aqui conosco uma Virgem que é maior do que Judite; não poderá Ela nos salvar? O que são os problemas de hoje diante do corpo sem vida de Deus pendente de uma Cruz? Aquela que pôde sustentar a Igreja nascente enquanto Nosso Senhor descia aos infernos, acaso não poderá sustentar a Igreja de hoje na crise que Ela atravessa?

Que seja em nosso favor Aquela que trouxe ao mundo o Salvador do mundo, que trouxe em Seu seio Aquele que nem mesmo os Céus puderam conter, que venceu sozinha todas as heresias do mundo inteiro, que o próprio Deus coroou como Rainha dos Céus e da Terra. Que seja em nosso favor Aquela que, sob o júbilo de todas as cortes celestes, foi assunta aos Céus em corpo e alma. Que seja em nosso favor a Bem-Aventurada e Gloriosa Sempre Virgem Maria, pois sem Ela pereceremos sem dúvida alguma e, com Ela, nada nos poderá abalar. Assumpta est Maria in Caelum, alleluia – o Regina in Caelum assumpta, ora pro nobis.

O amor à verdade e o ódio à mentira

– Depois disto, portanto, repara se é necessário que, além desta qualidade [sempre apaixonados pelo saber na sua totalidade], haja outra na sua natureza, se [os filósofos] quiserem ser tais como os descrevemos.
– Qual?
– A aversão à mentira e a recusa em admitir voluntariamente a falsidade, seja como for, mas antes odiá-la e pregar a verdade.
– É natural – disse ele.
– Não só é natural, meu amigo, mas é imperioso que uma pessoa que seja por natureza enamorada preze tudo aquilo que se aparentar ou relacionar com a coisa amada.
– Exatamente.
– Ora, poderá encontrar-se algo de mais relacionado com a sabedoria do que a verdade?
– Como poderia ser? – perguntou ele.
– É possível que uma mesma criatura seja ao mesmo tempo amiga da sabedoria e da mentira?
– De modo algum.
[Platão, “A República”, Livro VI (484a-d); Editora Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 180]

A verdade e a aversão à verdade vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga.
[Tertuliano, “Apologia”, cap. VIII]

O Gênero Humano, após sua miserável queda de Deus, o Criador e Doador dos dons celestes, “pela inveja do demônio,” separou-se em duas partes diferentes e opostas, das quais uma resolutamente luta pela verdade e virtude, e a outra por aquelas coisas que são contrárias à virtude e à verdade. Uma é o reino de Deus na terra, especificamente, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo; e aqueles que desejam em seus corações estar unidos a ela, de modo a receber a salvação, devem necessariamente servir a Deus e Seu único Filho com toda a sua mente e com um desejo completo. A outra é o reino de Satanás, em cuja possessão e controle estão todos e quaisquer que sigam o exemplo fatal de seu líder e de nossos primeiros pais, aqueles que se recusam a obedecer à lei divina e eterna, e que têm muitos objetivos próprios em desprezo a Deus, e também muitos objetivos contra Deus.

Este reino dividido Sto. Agostinho penetrantemente discerniu e descreveu ao modo de duas cidades, contrárias em suas leis porque lutando por objetivos contrários; e com sutil brevidade ele expressou a causa eficiente de cada uma nessas palavras: “Dois amores formaram duas cidades: o amor de si mesmo, atingindo até o desprezo de Deus, uma cidade terrena; e o amor de Deus, atingindo até o desprezo de si mesmo, uma cidade celestial” [De civ. Dei, 14, 28 (PL 41, 436)]. Em cada período do tempo uma tem estado em conflito com a outra, com uma variedade e multiplicidade de armas e de batalhas, embora nem sempre com igual ardor e assalto.
[Papa Leão XIII, Humanus Genus, 1-2]

Muitas pessoas não entendem o que é o catolicismo, não entendem o que é a Igreja, não entendem qual o papel que compete aos católicos que são soldados de Cristo na Igreja Militante, não entendem o valor da intransigência nem a dupla perspectiva sobre a qual precisa ser encarado o amor. É de se lamentar que, entre essas pessoas, contem-se não poucos “católicos”, que passam a sua vida sem se esforçar para fazer aquilo que lhes compete fazer ou – pior ainda – perseguindo os católicos que se esforçam para serem menos indignos do nome de “cristãos” que lhes foi dado no seu batismo. Esforcemo-nos um pouco para, à luz da religião cristã, analisarmos melhor cada uma dessas coisas.

O catolicismo é a religião verdadeira com exclusão de todas as outras, é a Sã Doutrina que o próprio Deus legou aos seres humanos, ensinando-lhes tudo o que eles precisavam saber sobre Si para chegarem ao conhecimento de Deus e, por conseguinte, à Salvação. Não se trata, pois, de um fruto da investigação humana, de uma filosofia elaborada pelos maiores gênios da humanidade, mas – ao contrário – da Revelação do próprio Deus que, como é a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar. O catolicismo é a única religião verdadeira, capaz de religar o homem pecador a Deus infinitamente santo.

A Igreja é a Guardiã infalível destas verdades que – repetimos – foi o próprio Deus que revelou aos seres humanos e, por conseguinte, é isenta de todo erro. A Igreja é instituição divina, é a única obra encontrada neste mundo que foi realizada não por mãos humanas, mas pelo próprio Deus. É uma espécie de milagre permanente, farol seguro a iluminar a História mostrando aos homens de todos os tempos e lugares o único caminho verdadeiro – estreito, como disse Nosso Senhor, mas verdadeiro sem dúvidas, pela Sua própria autoridade divina – que os homens precisam seguir se quiserem conhecer verdadeiramente ao Deus Criador dos Céus e da Terra.

Os católicos são os filhos da Igreja, a quem Deus concedeu a imerecida graça de conhecerem os Seus desígnios e as verdades sobre Ele que Lhe aprouve revelar, e são também os soldados de Cristo, i.e., aqueles a quem compete o singularíssimo papel de guardar a Verdade Revelada e fazê-lA conhecida de todos os homens, pois todos os homens têm necessidade absoluta d’Ela, para serem salvos. Têm portanto este duplo papel todos aqueles que foram chamados à dignidade de filhos de Deus pelo Batismo: o de anunciarem o Evangelho e o de defenderem a Sã Doutrina da Salvação, defenderem a Igreja, defenderem o catolicismo, de  todos os ataques que – desde que o mundo é mundo – os inimigos da Religião Verdadeira dirigem aos filhos de Deus.

A intransigência católica é, portanto, uma espécie de legítima defesa da Verdade ameaçada pelo erro, é a única atitude coerente diante de uma Doutrina que se sabe certa e sem mistura de erro algum, que não foi produzida por homens falíveis mas entregue aos homens pelo próprio Deus infalível. Uma tal Doutrina deve, necessariamente, ser defendida de todos os erros, deve ser guardada com a máxima diligência, cuidando zelosamente para que, n’Ela, não se introduzam elementos falsos nem Lhe sejam retirados verdadeiros. A Verdade é intrinsecamente intrasigente, por uma questão de princípios lógicos os mais elementares, que dizem que duas coisas contraditórias não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Sabendo-se, pois, que a Doutrina Católica é verdadeira – porque, repetimos, Ela foi-nos entregue pelo próprio Deus que, sendo Ele mesmo a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar – não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que Ela seja contaminada com doutrinas espúrias de autenticidade duvidosa.

De tudo isto, portanto – e aqui encaixamos todas as citações que foram postas em epígrafe -, segue-se que o amor à Verdade precisa ser encarado também sob o aspecto do ódio à mentira. Não ama verdadeiramente a Deus quem, ao mesmo tempo, é amigo dos inimigos de Deus; não tem verdadeiro amor à Verdade aquele que não A defende dos erros, colocando-A em pé de igualdade com os mais diversos delírios e opiniões. O católico, cristão militante, membro da Igreja de Nosso Senhor, defensor intransigente da Sã Doutrina revelada por Deus, tem uma espada de dois gumes que deve manejar com maestria para cumprir com o seu papel: o amor à Verdade e o ódio à Mentira. O amor à Igreja e o ódio à anti-Igreja. O amor à Cidade de Deus e o ódio à Cidade dos Homens. O amor aos filhos da Mulher e o ódio aos filhos da Serpente.

Eis, pois, postos os princípios que devem nortear a atitude dos católicos em todos os âmbitos de suas vidas. O amor verdadeiro não é um amor “frouxo”, romantizado e incoerente como o pregam não poucas pessoas nos nossos dias. O amor precisa ser verdadeiro, precisa desejar o bem da pessoa amada e detestar tudo o que lhe pode provocar mal. O amor à Verdade exige o ódio à Mentira – um não pode existir verdadeiramente sem o outro. E, considerando tanto quanto foi dito, considerando que a História é um campo dividido ao meio onde combatem entre si os filhos de Deus e os filhos da Serpente – como a Igreja sempre ensinou -, fica evidente o tamanho da responsabilidade que os católicos têm. Devem defender a Deus, trabalhando diligentemente para que o Evangelho da Salvação seja cada vez mais conhecido pelos homens que d’Ele necessitam. Devem arrancar almas à Satanás, brandindo corajosamente os argumentos católicos contra as falácias das almas iludidas pela astúcia do Demônio, a fim de derrotar a insídia diabólica e possibilitar, com a graça de Deus, uma conversão. Devem se pôr na brecha das muralhas da Igreja, defendendo-A valorosamente dos ataques a Ela dirigidos por tantos quanto militam nas hostes do Príncipe das Trevas. Devem, em suma, portarem-se como cristãos autênticos.

Esta luta – em defesa da Verdade, pela (verdadeira) instauração do Reino de Deus sobre a terra – é a mais importante e a mais fundamental de todas as lutas, porque os problemas que afligem o mundo moderno são apenas sintomas do problema de fundo, do problema capital, que é de natureza religiosa. Não tenhamos dúvidas disso: o Evangelho de Nosso Senhor é o único remédio verdadeiro a ser ministrado à humanidade enferma. Acreditemos n’aquilo que disse Platão há mais de dois milênios: “tendo a verdade por corifeu, não creio que se possa dizer que um coro de vícios segue atrás dela. […] Mas que vem atrás dela uma maneira de ser sã e justa” [op. cit., p. 186]. Confessemos com destemor esta verdade evidente, também repetida por Santo Agostinho e lembrada pelo grande Papa Leão XIII:

“Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
[Santo Agostinho, apud Leão XIII, Immortale Dei, 27]

Esforcemo-nos, pois, com o auxílio da Virgem Santíssima, Aquela que venceu sozinha todas as heresias do mundo inteiro, para sermos menos indignos das honras que nos foram conferidas por ocasião do nosso Batismo. Elevemos bem alto o estandarte de Cristo Rei, carregando em nossas vidas o Evangelho de Jesus Cristo, sendo testemunho vivo do poder do Crucificado. Militemos com destemor pela Igreja de Nosso Senhor, a fim de que a Verdade triunfe sobre os erros e todos os homens possam conhecer a Verdade que liberta, a Sã Doutrina da Igreja, a Fé Católica e Apostólica, para a maior glória de Deus.