A pandemia e as igrejas fechadas

A Quaresma é um dos tempos mais ricos e mais marcantes da Liturgia da Igreja. A cada ano a Igreja reserva este tempo litúrgico para, primeiro, exercitarmos as virtudes cristãs ao longo das semanas seguintes ao fim do Carnaval; segundo, acompanharmos de maneira mais intensa as últimas horas de Cristo no Sagrado Tríduo Pascal; e, terceiro, celebrarmos jubilosos a Vigília do Sábado Santo, a fim de que cantemos com toda a Igreja a festa da Páscoa, a Ressurreição, que se pode muito bem dizer — parafraseando aquilo que S. João Paulo II disse da Eucaristia — que é a fonte e o ápice do ano litúrgico da Igreja.

Ora, a Quaresma é um tempo de graças espirituais cujo desabrochar depende do comprometimento do católico em buscar viver bem aquele tempo. Os tempos litúrgicos não são como as estações do ano, cujos efeitos se fazem sempre sentir independente do que as pessoas façam. O calor do verão decorre do só fato de estarmos no verão; e mesmo uma pessoa que nem saiba que é verão, ainda assim vai sentir o calor próprio da estação. Mas com a Quaresma não é assim: as graças espirituais abundantes deste tempo — que são os efeitos próprios deste tempo litúrgico — só se fazem sentir àquelas pessoas que, conscientes de estarem atravessando o tempo quaresmal, esforçarem-se para bem vivê-lo. Não basta estar exposto à Quaresma, é preciso viver a Quaresma.

Pois bem. Acontece que a Quaresma se vive, claro, por meio do esforço pessoal — do jejum, da oração e da esmola –, mas também, e principalmente, por meio da vivência eclesiástica: da frequência aos sacramentos e da participação ativa da vida litúrgica. E é uma coisa verdadeiramente deplorável, inaudita em dois mil anos de Cristianismo, ignominiosa, ultrajante, que clama aos céus vingança, é um acinte e um escárnio que os católicos estejam, por conta de um coronavírus, desde a metade da Quaresma privados de assistir as Missas e de receber os Sacramentos.

A atual pandemia da COVID-19 revelou as coisas mais podres, mais mesquinhas, mais mundanas das autoridades eclesiásticas. Como é possível que se tenha pacificamente aceitado fechar as portas dos templos — e isso no mundo todo! — sine die, de maneira radical, abrupta e a absoluta, privando o povo da participação litúrgica e do auxílio dos sacramentos? No meio da Quaresma! Estamos agora em pleno Tríduo Santo e as missas In Coena Domini foram celebradas sem o povo provavelmente pela primeira vez desde que foram codificadas! Amanhã à noite será a Vigília Pascal e os católicos, trancados em suas casas, não irão se congratular pela vitória de Cristo sobre a morte! A Páscoa será celebrada em privado. Como foi possível chegarmos a este ponto?

Nem se diga que iremos nos reunir à distância, valendo-nos dos meios de comunicação, fazendo orações domésticas e comunhão espiritual. Em primeiro lugar, todo católico já faz, ordinariamente, oração doméstica e comunhão espiritual: é claro que já rezamos nas atividades quotidianas — ao dormir e ao despertar, antes das refeições, dos estudos, do trabalho etc. –, já incluímos nos nossos dias espaços para a meditação, para o exame de consciência, para as leituras piedosas, já excitamos o desejo de nos unirmos espiritualmente a Nosso Senhor Sacramentado. Isso não é uma coisa surgida agora e que nos esteja sendo oferecida como sucedâneo da vida eclesial; isso é já parte integrante da vida espiritual católica e que, absolutamente, não supre a necessidade da participação litúrgica.

Em segundo lugar, uma coisa não tem nada a ver com outra: não existe oposição entre a oração particular e as cerimônias eclesiásticas públicas e estas não podem ser substituídas por aquelas, porque a publicidade é da essência do Catolicismo. A Igreja é visível! Faz parte da constituição substantiva da Igreja Católica os Seus elementos materiais, externos, sensíveis, e isto por determinação divina. Igreja é Ekklesia, é assembleia, é conjunto de pessoas reunidas em sua segunda casa — paróquia, paroikía, “casa” (oikia) “ao lado” (par) — para se auxiliarem mutuamente em seu caminho rumo à Pátria definitiva, à Jerusalém terrestre. Não existe uma “igreja espiritual” e nem é possível cogitar de uma eclesialidade composta de templos fechados e famílias isoladas, relacionando-se pelas redes sociais. Mas o que é isso? Passamos anos criticando o “catolicismo de internet” para, agora, começarmos a pregar cerimônias transmitidas pelo Instagram e pelo Youtube?

Finalmente, em terceiro e mais importante lugar, existem os Sacramentos! Os Sacramentos, que são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus, que nos são necessários à vida de graça e, em última análise, à nossa salvação, não podem ser conferidos senão pessoalmente! Bênção papal transmitida pela internet, posto que valiosíssima, não tem o condão de perdoar os pecados como só a confissão auricular pode fazer. A comunhão espiritual realizada diante de uma Missa que se assiste pelas redes sociais, conquanto piedosa e salutar, não produz os efeitos próprios da recepção da Eucaristia — como o aumento da graça santificante e o perdão dos pecados veniais. Com esta loucura de fechamento de igrejas e suspensão dos sacramentos, o que acontece é que as almas estão privadas dos canais ordinários de transmissão da graça de Deus. Ora, a Igreja possui, ao lado do poder-dever de ensinar e do poder-dever de governar, o poder-dever de santificar: o munus sanctificandi. E este múnus se exerce pela celebração da Liturgia, sim (que graças a Deus continua acontecendo, embora em privado), mas se exerce também pela administração dos sacramentos ao povo cristão. E com os católicos trancados em casa, com os sacerdotes isolados, com as cerimônias (somente as mais importantes, decerto) apenas transmitidas pela internet… como anda a administração dos sacramentos? As confissões, as comunhões, as unções dos enfermos…? Por quanto tempo mais as autoridades eclesiásticas vão insistir nesta anomalia diabólica e ultrajante?

É Sexta-Feira Santa e Nosso Senhor foi arrancado à convivência dos Seus discípulos, pelas mãos dos ímpios, para ser crucificado. E, hoje, paradoxalmente, Nosso Senhor Sacramentado também é arrancado às almas fiéis sequiosas por recebê-Lo — arrancado pelas próprias autoridades eclesiásticas que são as legítimas dispensadoras da graça de Deus. Amanhã será a Páscoa da Ressurreição e também não poderemos comer a Carne e beber o Sangue d’Aquele que ressuscitou dos mortos para nos dar a Vida Eterna. Até quando esta insensatez?

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

13 comentários em “A pandemia e as igrejas fechadas”

  1. Salve, Jorge! Oremos pra que essa conspiração maligna tenha fim e os pastores possam recuperar a fortaleza pra restabelecer a liberdade dos filhos de Deus

  2. Mas até o Sumo Pontífice está celebrando sem o povo. Não estariam lhe seguindo o exemplo e as recomendações, ainda que tácitas.

  3. A Itália chegou a ter mim mortos por dia. Cuiabá, quando suspendeu as missas, não tinha sequer um caso confirmado de coronavírus. Não se pode aplicar o mesmo remédio radical e extraordinário para todas as situações.

  4. Quanto egoísmo… pessoas passando fome, perdendo empregos, fechando empresas, etc. e vocês só pensam nas igrejas? Lendo isso que cada vez mais desejo um Estado Laico de verdade… arrogância ao extremo…

  5. Que a gente pense nas igrejas é pura inferência sem pé nem cabeça sua.

    Este aqui é um blog religioso e, portanto, que nele se escrevam textos abordando a questão das igrejas é coisa perfeitamente natural. Se quiser escrever o seu próprio texto sobre o assunto que desejar, abra o seu próprio sítio na internet e sinta-se livre para fazê-lo.

  6. Saudações Jorge!
    Belo e oportuno artigo, mas prepare o “lombo”, pois você vai receber pancada de tudo que é lado…
    No entanto, acho, como bem disse em recente entrevista D. Athanasius Schneider, a conduta da Igreja em face da epidemia de coronavírus revelou uma “perda da visão sobrenatural”, particularmente entre os membros da hierarquia – alguns dos quais, apesar da vigilância para combater o COVID-19, “permitiram tranquilamente que o vírus venenoso dos ensinamentos e práticas heréticos se espalhasse entre o seu rebanho”, observou.

    Dom Schneider ainda exortou os padres a se lembrarem de que são “o primeiro e mais importante pastor de almas imortais”, chamados por sua vocação sacerdotal a dar a vida pelas suas ovelhas. Eles devem imitar a Cristo, que disse: “Eu sou o bom-pastor. O bom-pastor expõe a sua vida pelas ovelhas. O mercenário, porém, que não é pastor, a quem as ovelhas não pertencem, quando vê que o lobo vem vindo, abandona as ovelhas e foge; o lobo rouba e dispersa as ovelhas. O mercenário, porém, foge, porque é mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom-pastor. Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem a mim” (Jo 10, 11-14). Se um sacerdote toma de maneira razoável todas as precauções de saúde necessárias e usa discrição, ele não deve obedecer às diretrizes de seu bispo ou do governo para suspender a missa pelos fiéis. Tais diretrizes constituem uma mera lei humana; no entanto, a lei suprema da Igreja é a salvação das almas. Os padres em tal situação precisam ser extremamente criativos para prover aos fiéis, mesmo para um pequeno grupo, a celebração da Santa Missa e a recepção dos sacramentos. Tal era o comportamento pastoral de todos os sacerdotes que foram confessores e mártires por ocasião das perseguições.

    Bem Jorge, diante destas sábias e sensatas palavras de Dom Schneider, e também suas, percebemos que até o ato de comungar nas mãos denota uma tremenda falta de fé, pois o corpo e o sangue de Cristo são imunes, necessariamente, a qualquer vírus, a qualquer chaga!
    “Homem fraco na Fé, porquê duvidaste?”
    E assim, pouco a pouco, os nossos Bispos, que deveriam ser exemplo de fé, moral e retidão para todo o povo católico, vão nos conduzindo com essa tibieza alarmante…
    Diante disso, só nos resta rezar, o que não é pouco! Por isso, oremos…
    Coragem…e parabéns pelo artigo!!

  7. Que saudade dos seus textos, Jorge. Volte a escrever com mais frequencia, por favor.

  8. Excelente texto… Penso assim, mas ao mesmo tempo, fico pensando no problema do vírus chinês ser transmitido facilmente no contexto de aglomerações…. E como não se sabe quem manifestará sintomas…

  9. Eu estou nesse dilema desde o início do tal confinamento, e ainda tenho praticamente só dúvidas, e quase nenhuma resposta. Por um lado vejo que sua indignação é muito justa, mas por outro penso se não seria falta caridade permitir aglomerações de sãos com possíveis infectados, especialmente porque os idosos – pelo menos na minha paróquia – são numerosos.

    Repito: tenho muitas perguntas e poucas respostas. Uma das perguntas que sempre me faço – e para a qual não consegui resposta – é: o que fariam os grandes pastores da Igreja se tivessem as informações que temos hoje, e que eles não tinham na época? Como agiriam? Será mesmo que não temos um único bispo santo, com sabedoria para perceber essa “insensatez” de que você fala e se posicionar em alto e bom tom contra ela? Nem um único? Talvez essa seja a verdade, mas não consigo crer nisso…

    Me sinto como o cego à entrada de Jericó, sentado à beira da estrada e pedindo “Filho de Davi, tende piedade de mim”. E o Senhor parece ainda estar naquele período de espera, em que aguarda que o mendigo cresça na fé antes de fazê-lo enxergar. Resta continuar clamando…

  10. Na época da peste italiana, S. Roberto Belarmino mandou levantar altares nas esquinas para o povo assistir às Missas das janelas.

    Rolou até uma foto no Facebook (não sei nem se é verídica, mas, se não for, cai bem) de um instrumento para administrar a comunhão à distância.

    Será realmente possível que, no século XXI, com toda a ciência de que dispomos, não conseguimos pensar em uma solução melhor?

  11. Sr. Antônio, é **EVIDENTE** que as missas precisam ser abertas para ontem.

    Temos 260 mortes em Pernambuco, **mas temos milhões sem acesso aos Sacramentos** durante a Quaresma e a Páscoa, o que é uma tragédia muito maior. Quem não percebe isso é cego.

    Arejem-se os espaços, celebrem-se missas ao ar livre se for o caso, ou restrinjam o número de pessoas nas igrejas, multiplicando-se o de celebrações, obrigue-se o uso de máscaras, dispense-se do preceito. Mas o povo cristão tem que ser assistido — com todos os cuidados humamente possíveis, sim, mas ainda assim assistidos.

  12. Não está fácil:
    “Tradição secular
    Pela primeira vez, em 119 anos, a romaria de São Paulo a Aparecida neste fim de semana não terá peregrinos. Devido à situação em que vivemos, os fiéis só poderão acompanhar a Missa da Peregrinação – que será realizada a portas fechadas no Santuário Nacional – pela Rede Aparecida. A transmissão, ao vivo, será no domingo, celebrada pelo cardeal Dom Odilo Scherer.”

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