De que modo pode Satanás privar o mundo da Missa?

No meio das controvérsias envolvendo a Reforma Litúrgica das quais este blog está sendo palco nos últimos dias, parece-me oportuno considerar a seguinte citação de Sto. Afonso de Ligório:

“O demônio sempre procurou privar o mundo da Missa, por meio dos hereges, constituindo-os precursores do Anticristo, o qual, primeiro que tudo o mais, procurará abolir, e de fato conseguirá abolir, como punição pelos pecados dos homens, o Santo Sacrifício do Altar, conforme aquilo que predisse Daniel: ‘E foi-lhe dado poder contra o sacrifício contínuo, por causa dos pecados’ (Dan. VIII, 12).”

[No original: “il demonio ha procurato sempre di toglier dal mondo la messa per mezzo degli eretici, costituendoli precursori dell’Anticristo, il quale, prima d’ogni altra cosa, procurerà d’abolire, ed in fatti gli riuscirà d’abolire, in pena de’ peccati degli uomini, il santo sacrificio dell’altare, giusta quel che predisse Daniele: Robur autem datum est ei contra iuge sacrificium propter peccata.”]

(Santo AFONSO DE LIGÓRIO, La Messa e l’Officio strapazzati, Nápoles, 1760; cf. tb., do mesmo Santo Doutor da Igreja, o parágrafo 10 de sua obra de 1775: Del Sacrificio di Gesù Cristo, onde se alude ao mesmo acontecimento.)

Ora, deve-se dar valor às palavras dos santos. Se há um santo da envergadura de Sto. Afonso de Ligório dizendo que um dia – propter peccata homines – será dado a Satanás poder contra o Santíssimo Sacrifício do Altar, isto não podem ser palavras vazias. Ainda que haja divergências de fato sobre se estamos ou não assistindo ao cumprimento desta profecia, pode ser útil considerarmos como ela se pode cumprir, agora ou no futuro. Na esfera das meras hipóteses, de que maneira o Demônio poderia conseguir «abolir» o Santíssimo Sacrifício da Missa?

O Demônio, como bem o sabemos, é um cachorro acorrentado. O seu poder não é ilimitado – não é como se ele fosse um Deus Onipotente com o sinal invertido; ele só causa o mal que lhe é permitido causar, dentro dos insondáveis desígnios da Providência Divina à qual, de bom ou mau grado, estão sujeitos os homens e os demônios. Lembro-me do que li certa feita em um livro sobre exorcistas, se a memória não me trai do padre Gabriele Amorth: dizia o velho exorcista que não é possível fazer um “pacto de não-agressão com Satanás”, como se ele pudesse retaliar os que o combatiam mais diretamente por meio dos exorcismos. O Demônio – dizia – já nos causa todo o mal que lhe é permitido causar a nós, e portanto é besteira conceder-lhe cavalheiresca trégua. Ele mais nos odeia na exata medida em que mais somos aquilo que Deus nos chama a ser, isto é, santos; crescer no agrado de Deus e no ódio de Satanás é uma só e a mesma coisa. Estamos em guerra com um inimigo que ultrapassa em muito as nossas forças, mas combatemos do lado do Altíssimo! Pretender conduzir semelhante batalha sem “chamar a atenção” do Diabo não passa de mediocridade espiritual, que muito caro nos pode custar.

O Demônio, repitamos, já faz todo o mal que lhe é permitido fazer. Mas à sua ação o Todo-Poderoso estabeleceu limites muito claros; por exemplo, estabeleceu que contra a Sua Igreja não prevaleceriam nunca as hostes infernais. Todo e qualquer assalto dos infernos à Igreja de Cristo, portanto, existente ou possível, esbarra já a priori nesta muralha indestrutível que Cristo levantou em torno à Sua Esposa. Qualquer mal que o Diabo possa ter feito ou possa ser capaz de fazer um dia à Igreja, não pode nunca ser mais poderoso que a promessa d’Aquele por quem Céus e Terra foram criados.

Eu sempre pensei que aquele «robur» com o qual Satanás se levantaria no Fim dos Tempos contra o Sacrifício da Missa fosse na forma de uma perseguição física, como tantas pelas quais os cristãos já atravessamos ao longo dos séculos. Algo como um novo Império pagão lançando mais uma vez às feras os que ousassem adorar ao Deus Verdadeiro, ou um Governo a nível global que fizesse no mundo inteiro aquilo que o Governo do México logrou fazer na terra da Virgem de Guadalupe no século passado. Mas é forçoso reconhecer que esta não é a única forma possível de uma tal profecia se cumprir.

Algumas pessoas parecem acreditar que ela poderia ser cumprida se uma missa falsa fosse colocada no lugar da Missa Verdadeira. Tal hipótese é bastante problemática por um sem-número de razões. Atenta contra a indefectibilidade da Igreja ou – quando menos – contra a Sua visibilidade, uma vez que transforma a Igreja em Sinagoga em Satanás. Transforma o critério próximo e objetivo da Fé Católica – a Igreja Docente – em instrumento de perdição. Faz desaparecer o Sacrifício da «Nova e Eterna Aliança», instituído pelo Filho de Deus ao preço altíssimo do Seu Sangue vertido na Cruz do Calvário, e coloca a mais horrenda idolatria no seu lugar, impedindo assim Deus de ser adorado como convém à Sua Augusta Majestade. Mesmo considerar que tal coisa possa ser possível soa-me como impiedade, como uma injúria à Igreja Santa de Deus.

Mas eu avento uma hipótese conciliadora, que – é óbvio – não tem a pretensão de ser o diagnóstico preciso dos tempos em que vivemos e nem a interpretação exata das profecias do Fim do Mundo. Trata-se de uma reflexão particular minha, aqui apresentada como mera possibilidade ante tudo o que já foi exposto sobre o assunto. Pretendo, com ela, permitir às pessoas que tenham a real dimensão da crise presente (e de outras crises futuras possíveis), sem a subestimar com os olhos fitos somente na indefectibilidade da Igreja e nem tampouco voltar-se contra a própria Igreja por conta da consideração da enormidade daquela crise. Em uma palavra, intento aqui oferecer uma alternativa ao sedevacantismo ou ao tradicionalismo radical que não descuide da gravidade da situação presente (ou de outras possíveis).

Ora, sabemos que, em todos os Sacramentos, há o seu aspecto objetivo e o seu aspecto subjetivo; há a Graça enquanto deles decorre por aquilo mesmo que eles são – e, por isso, independente de quem os ministra ou quem os recebe, i.e., ex opere operato – e há a Graça enquanto beneficia concretamente quem os recebe – e, assim, dependente das disposições subjetivas destes, ex opere operantis. A primeira existe em virtude dos próprios sacramentos e portanto nunca falta e nem pode faltar; a segunda, dependente do ânimo do agente, pode ser diminuída ou mesmo deixar completamente de existir.

Se as pessoas não se santificam, não há por que colocar a culpa numa suposta falta de capacidade santificante dos Sacramentos. Quanto a isto, é possível parafrasear perfeitamente o pe. António Vieira no seu conhecidíssimo Sermão da Sexagesima:

Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa nossa.

E isto, que acontecia então com a palavra de Deus, pode perfeitamente acontecer com os Seus Santos Sacramentos: não por deficiência deles, mas pela malícia de quem os ministra e de quem os recebe.  Se a Graça Divina «por parte de Deus, não falta nem pode faltar», deve-se procurar o «porquê» dos seus (visíveis) parcos frutos não num impossível defeito dos canais, mas na deficiência dos que a eles acorrem.

E se os homens deixassem de saber que a Santa Missa é o Divino Sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo, que aplaca a cólera de Deus e lhes obtém inefáveis tesouros dos Céus, ou pelo menos se deixassem de viver como se isso tivesse alguma importância? O que se poderia esperar como conseqüências desta hipotética terrível situação?

Ora, a graça é conferida a cada pessoa na medida de suas disposições interiores. Ensina-nos as Escrituras Sagradas que Deus não atende a quem não sabe pedir: «Pedis e não recebeis, porque pedis mal» (Tg 4, 3a). Ora, não pode pedir bem quem não sabe o que pode e deve pedir. Aufere mais graças do Sacrifício de Cristo quem, na medida de suas capacidades, melhor O compreende. Havia por certo muitos cegos em Jerusalém, mas Nosso Senhor só abriu os olhos aos que O pediram «Domine, ut videam»; e isso em absolutamente nada diminui o Seu poder ilimitado.

Assim, um padre que celebrasse a Missa sem levar em conta que está oferecendo à Trindade Santa o Sacrifício de Cristo com certeza continuaria celebrando Missa, uma vez que para a validade dos Sacramentos basta um genérico desejo de «fazer o que faz a Igreja», ainda que não se saiba com clareza o que a Igreja faz ou mesmo que se erre quanto a isso. É o que nos ensinam os teólogos; por exemplo, Ludwig Ott no seu Tratado sobre os Sacramentos:

Por lo que respecta a la faceta objetiva, basta la intención de hacer lo que hace la Iglesia. Por eso no es necesario que el ministro tenga la intención de lograr los efectos del sacramento que pretende lograr la Iglesia, v.g., la remisión de los pecados. No es necesario tampoco que tenga intención de realizar un rito específicamente católico. Basta el propósito de efectuar una ceremonia religiosa corriente entre los cristianos.

Seria, portanto, válida a Missa celebrada por um padre que quisesse simplesmente realizar uma genérica «cerimônia religiosa corrente entre os cristãos». Mais ainda, seria válida ainda que o dito padre não tivesse a intenção de obter do Sacrifício que oferece os «efeitos» que a Igreja diz que Ele produz. No que tange à capacidade santificante objetiva dos Sacramentos, não há portanto o menor problema aqui. Mas e quanto às graças que eles de fato conferem aos que deles participam assim de maneira tão desleixada? Parece-me claro que não obtém – ou ao menos que obtém em muitíssimo menor medida – os frutos do Sacrifício da Missa quem não tem a intenção de os obter. E, portanto, para diminuir drasticamente os «efeitos» da Santa Missa no mundo não é necessário torná-la inválida: basta que não se queira subjetivamente receber o que Ela objetivamente tem a proporcionar.

E isto não seria, por fim, uma forma de «abolir» – ao menos metaforicamente – o Sacrifício do Altar? Fazê-lo ser celebrado sem que, contudo, (quase) ninguém disso se apercebesse? Fazer com que oferecessem a Deus o Sacrifício da Cruz como se Lhe não oferecessem? Eis, portanto, o que me parece que está – pelo menos em princípio – ao alcance de Satanás: nada podendo contra o Sacrifício oferecido, voltar-se ele com fúria contra os que O ofertam. Não podendo impedir a ira de Deus de ser aplacada, impedir contudo os homens de se beneficiarem desta santa Propiciação. Incapaz de agir contra Aquele que recebe o Sacrifício, dedicar-se com afinco a prejudicar os que O oferecem. E, em semelhante situação, é fácil ver o estado de miséria religiosa a que estariam reduzidos os filhos de Deus! Se uma situação assim não fosse abreviada, correr-se-ia o risco de que se perdessem até os predestinados. E, sinceramente, ela em nada se avantajaria sobre a triste situação em que hoje nos encontramos…

Aqui é o máximo, penso, até onde Satanás pode ir. A partir daqui Deus lhe impôs limites: «Chegarás até aqui, não irás mais longe; aqui se deterá o orgulho de tuas ondas» (Job 38, 11). Já aqui é suficiente estrago, é bastante desolação, é rigorosíssimo castigo pelos pecados dos homens! Aqui já se harmonizam as mais terríveis profecias sobre o Fim dos Tempos com a reconfortante promessa de Deus de estar conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Aqui já é possível privar o mundo [dos benefícios] da Missa sem fazer com que Deus deixe de receber o Eterno Sacrifício do Seu Filho amado. Aqui o mysterium iniquitatis já encontra a sua mais perfeita encarnação. Aqui, por fim, já tudo se explica e encaixa, sem que nos seja necessário aventar mais extremadas hipóteses. Para além daqui, já é conceder a Satanás mais poder do que o próprio Deus lhe conferiu.

«Por uma Filosofia Tomista»: Curso online ministrado pelo prof. Carlos Nougué

Divulgo com prazer o Curso on-line de 60 horas ministrado por Carlos Nogué, «Por uma Filosofia Tomista». A ementa do curso será a seguinte:

I) Apresentação geral: A necessidade de uma Filosofia tomista.
II) Preâmbulo 1: Resumo da História da Filosofia – Do impulso grego ao abismo moderno.
III) Preâmbulo 2: Se Santo Tomás era filósofo e/ou teólogo.
IV) Preâmbulo 3: A essência da doutrina de Santo Tomás, ou se o tomismo é um aristotelismo.
V) Preâmbulo 4: Como estudar a Filosofia, e em ordem a quê.
VI) Introdução geral à Filosofia, ou seja, a seus conceitos elementares (já aqui se implicam noções da Lógica, da Física e da Metafísica):
1) O que é conhecer 2) O ente e os primeiros princípios; 3) A quididade das coisas; 4) O essencial e o acidental; 5) Substância e acidentes; 6) A questão do an sit; 7) Ente e esse (ser ou ato de ser); esse e existência – uma primeira aproximação; 8) Divisão e definição; 9) Se os acidentes são entes e têm quididade; 10) Se as coisas artificiais têm quididade.
VII) Introdução à Lógica:
1) A simples apreensão; 2) As propriedades das coisas; 3) O juízo ou composição; 4) As causas; 5) O silogismo; 6) Em defesa da Lógica; 7) Se a Lógica é arte ou ciência; 8) As propriedades da Lógica; 9) O método da Lógica; 10) Lógica e Gramática.
VIII) Intermédio: A ordem das ciências e das artes.
IX) Introdução à Física geral:
1) O que é a natureza; 2) Os princípios da natureza: ato e potência, etc.; 3) O sujeito da Física Geral; 4) Existência e esse – segunda aproximação; 5) Em defesa da Física Geral aristotélico-tomista; 6) Se e em que caducou esta ciência; 7) O método da Física Geral; 8) Que classe de ciência é a Física moderna; 9) O que pensar da Biologia, da Psicologia, etc., atuais; 10) Uma crítica a Jacques Maritain.
X) Introdução à Metafísica:
1) Se tal ciência existe ou é válida ou necessária; 2) O sujeito da Metafísica; 3) Ente e esse – segunda aproximação; 4) As propriedades da Metafísica; 5) O método da Metafísica; 6) Diferença entre Teologia (ou Metafísica) e Sacra Teologia, e se elas se opõem; 7) As provas da existência de Deus; 8) O tratado de Deus uno.
XI) Apêndices:                                                                               
1) Os transcendentais; 2) Se o mal é algo; 3) A alma humana e sua imortalidade; 4) A Política e sua ordem ao Fim último do homem; 5) O mundo poderia ter sido criado ab aeterno (desde a eternidade)?

Para quem não conhece, o Prof. Nogué é, entre outras coisas, responsável pelo blog “Estudos Tomistas” e tradutor dos deliciosos contos policiais de Chesterton colecionados n’A Inocência do Padre Brown.

As impressões do Boff sobre a Lumen Fidei

O Leonardo Boff não gostou da primeira encíclica do Papa Francisco. Claro que ele não poderia gostar, uma vez que é bem conhecido o orgulhoso desprezo do ex-frade por tudo aquilo que é católico. O seu texto, contudo, é espantoso: analisando-o, parece que o “teólogo” sequer leu a Lumen Fidei que desde o primeiro parágrafo se propõe a desqualificar. Vejamos:

A Encíclia (sic) não traz nenhuma novidade espetacular que chamasse a atenção da comunidade teológica

Certamente é bem difícil conceber algum tipo de “novidade espetacular” que pudesse ser possível em um texto sobre a Fé da Igreja, que é a mesma ontem, hoje e sempre! No entanto, «[a] fé como escuta e visão» (LF 29-31) é um dos pontos mais ricos do texto pontifício, que aborda o assunto sob um prisma que eu não me recordo de ter encontrado em documentos eclesiásticos. O Papa diz que a Fé é simultaneamente ouvir e ver, o que transcende a Revelação vetero-testamentária (cuja expressão máxima se encontra no Sh’ma Yisrael – «ouve, ó Israel») e só encontra a sua plenitude na Encarnação de Cristo, que é a Palavra do Pai, que pode ser vista e ouvida e até mesmo tocada: «Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus» (LF 31). A beleza da imagem escapa completamente aos olhos remelentos do caquético ex-franciscano.

É um texto dirigido para dentro da Igreja. Fala da luz da fé para quem já se encontra dentro no mundo iluminado pela fé.

Aqui o absurdo chega às raias da falsificação intelectual pura e simples. A introdução da Encíclica coloca a questão em termos absolutamente não-crentes: começa analisando justamente «a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé» (LF 2) e diz que «urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor» (LF 4). E ainda: «a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões» (LF 6). Não há sombra de «reflexão intrasistêmica» aqui, como se fosse um texto auto-referenciado e que só servisse para sedimentar católicos hermeticamente isolados de um mundo sem Fé.

E mais: os capítulos II e IV têm um evidente apelo para os que não crêem. Aquele por colocar a Fé como uma modalidade de conhecimento; este, por advogar com veemência os influxos benéficos da Fé para a vida em sociedade. Leiam-se os seguintes excertos – trago só dois – e digam honestamente se é possível dizer que esta Encíclica não tem nada a dizer para os que não têm Fé:

  • A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência [LF 34].
  • Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade [LF 54].

Ainda, o número 35 da Encíclica fala sobre «A fé e a busca de Deus» e tenciona explicitamente «oferece[r] a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões» (id. ibid.).

E ainda vem o Boff me dizer que se trata de um texto que somente fala da Fé Católica para os que já são católicos! Ele tem certeza de que está falando da Lumen Fidei?

[O texto t]em dificuldade em aceitar um dos temas mais caros do pensamento moderno: a autonomia do sujeito e o uso que faz da luz da razão.

Evidentemente nenhum sujeito tem “autonomia” alguma frente à realidade das coisas: se minha conta bancária está negativa, é claro que eu não posso evocar a minha “autonomia intelectual” para afirmá-la cheia de dinheiro e com isso saldar os meus credores. Mas o «uso que [o indivíduo] faz da luz da razão» perpassa todo o documento, e é exatamente isto que o Papa em diversos pontos evoca em favor da Fé. Por exemplo, citando Sto. Agostinho, afirma que «a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão» [LF 33]. E ainda: «a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu » pequeno e limitado» [LF 25].

Esta afirmação [«“sem a verdade a fé não salva” (n.24)»] é problemática em termos teológicos

Em termos teológicos, o Boff é que é problemático. Aliás, problemático é eufemismo: ele é errado mesmo.

pois toda a Tradição, especialmente, os Concílios tem afirmado que somente salva “aquela verdade, informada pela caridade” (fides caritate informata).

Sim, e isso é repetido pela própria Lumen Fidei logo no seu início: «Fé, esperança e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão com Deus» (LF 7). De onde raios o Boff tirou que a Encíclica defenderia uma Fé separada da Caridade?

Mas se constata na Encíclia uma dolorosa lacuna que lhe subtrae (sic) grande parte da relevância: não aborda as crises da fé do homem de hoje, suas dúvidas, suas perguntas que nem a fé pode responder: Onde estava Deus no tsunami que dizimou milhares de vida ou em Fukushima? Como crer depois dos massacres de milhares de indígenas feitos por cristãos ao longo de nossa história, dos milhares de torturados e assassinados pelas ditaduras militares dos anos 70-80? Como ainda ter fé depois dos milhões de mortos nos campos nazistas de extermínio? A encíclica não oferece nenhum elemento para respondermos a estas angústias.

Custa acreditar que este parágrafo possa ter sido escrito, pois a Lumen Fidei reserva, sim, e explicitamente, um trecho para falar do sofrimento do mundo:

A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. [LF 57]

E este eu tenho certeza de que o Boff o leu, porque dois parágrafos antes ele citou a «lâmpada que guia os nossos passos na noite». Parece que, para o ex-franciscano, a resposta do Papa Francisco não é suficiente. Gostaria, então, de conhecer a relevante contribuição teológica que o Leonardo Boff tem a dar para o problema do mal no mundo, que seja melhor do que os textos magisteriais sobre o assunto resumidos nas linhas acima da Lumen Fidei.

Na verdade, o grande problema do Boff é com as partes «fortemente doutrinárias» do documento do Papa Francisco. O que provoca calafrios no velho boffento é ler a Doutrina Católica explícita com desconcertante clareza em vários pontos da Encíclica, como p.ex. quando o Papa diz com todas as letras que «[s]em verdade, a fé não salva» (LF 24); ou que «a teologia é impossível sem a fé» (LF 36), que ela «partilha a forma eclesial da fé» (id. ibid) e que «não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos» (id. ibid.); ou ainda que a Fé «é uma só» e por isso deve ser confessada «em toda a sua pureza e integridade» (LF 48), e isso de tal modo que «danificar a fé significa danificar a comunhão com o Senhor» (id. ibid.). É isso que o Boff não suporta. O que, para nós católicos, tem um quê de positivo: afinal, se o Boff não gostou da Encíclica, isso significa que ela é realmente boa. E que portanto deve ser bem lida, meditada e posta em prática.

Miscelânea: manuscritos, Beleza, divórcios, senso comum, ateísmo

– A descoberta de uma Bíblia de 1500 anos, dizem, «preocupa [o] Vaticano». Por quê? Por se tratar de um «original» (sic) do «Evangelho de Barnabé» que, entre outras coisas, teria previsto «a vinda do profeta Maomé, mostrando a verdade da religião do Islã» (!).

Como é possível que um manuscrito «do século V ou VI» possa ser o «original» de Barnabé se este viveu no século I da Era Cristã é um mistério que está para muito além da capacidade de entendimento dos meros mortais. Afora esse prodígio verdadeiramente portentoso, contudo, não há nada de novo na descoberta. O Evangelho de Barnabé (inclusive com a suposta profecia sobre o Islã) já é conhecido. A única coisa digna de nota aqui é a data: a dar crédito às notícias, o manuscrito recém-descoberto seria de um século antes do próprio nascimento de Maomé. A julgar pelo que já se sabe do livro, contudo, isto seria claramente impossível. Provavelmente estamos diante de mais uma falsificação, com a qual não é necessário desperdiçarmos o nosso tempo.

* * *

– O culto à feiura no mundo revolucionário – merece (e muito) uma leitura. «Tragicamente, nosso mundo não reconhece sequer o que é o feio. Já dissemos que a beleza é aquilo que quando visto agrada e, portanto, o lógico seria que o feio fosse aquilo que quando visto desagrada. Mas olhem para a nossa sociedade, na qual o que agrada é o macabro, o esquisito, o torto e o deformado; na qual, por muitos anos, a peça mais popular de cinema — número um durante semanas — foi um filme sobre um canibal. São o mal e o feio que agora deleitam. Bem-vindos ao bravo novo mundo: o que em outra época teria sido chamado de mau agora é qualificado como bom, e o que era considerado feio é agora considerado bonito».

Nestes tempos em que mesmo a nossa arquitetura sacra é destituída do mais elementar senso estético, encontrar um padre defendendo o valor da Beleza é um verdadeiro refrigério. Ouçam-no! No meio do turbilhão de valores em que vivemos, é a Beleza que salvará o mundo.

* * *

– Este texto do Ad Hominem conclama à leitura de “Claro Escuro”, de Gustavo Corção. Faço coro ao pedido; a coletânea de artigos do grande jornalista foi uma das leituras mais prazerosas e instrutivas sobre o assunto que eu já fiz na minha vida. O transcurso dos anos não foi capaz de mitigar o impacto que as palavras de Corção ainda hoje provocam em mim; ainda hoje, leio-o com o deslumbramento de quem estivesse lhe pondo os olhos pela primeira vez. Não são todos os autores os que são capazes desse prodígio.

Para exemplificar isto que estou tentando dizer, trago apenas um excerto do excerto trazido pela Day Teixeira, enfaticamente recomendando aos meus leitores que procurem a íntegra da obra:

Assim como se abrem os olhos [da criança] para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.

Sensacional.

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– “A filosofia do senso comum”, na Revista Vila Nova. Dentre os quatro «elementos fundamentais do senso comum» que Chesterton coloca como premissas necessárias à compreensão das coisas ao nosso redor, destaco um:

2. Todo homem em sã consciência, acredita não somente que este mundo existe, mas também que ele tem importância. Todo homem acredita que há, em nós, um tipo de obrigação de nos interessarmos por esta visão da vida. Não concordaria com alguém que dissesse, “Eu não escolhi esta farsa e ela me aborrece. Fiquei sabendo que uma senhora idosa está sendo assassinada no andar de baixo, mas eu vou é dormir”. O fato de que há um dever de melhorar coisas não feitas por nós é algo que não foi provado e não se pode provar.

E este «dever de melhorar coisas não feitas por nós» é talvez um dos elementos mais indispensáveis à vida em sociedade. No entanto, que importância se lhe dá hoje em dia…? De tanto serem cerceadas as investigações sobre a sua gênese, talvez um dos maiores desafios atuais seja limitar o efeito social deletério dos que, de tanto se desinteressarem por essas coisas, chegam a negar a sua própria existência.

* * *

«Na primeira condenação no Brasil por discriminação contra religiosos, a justiça condenou este ano a rede de televisão Bandeirantes depois que um de seus apresentadores afirmou que o assassinato de uma criança só podia ter sido cometido por ateus, também acusados por ele “da guerra, da peste, da fome e de tudo o mais”».

Trata-se de uma matéria do Diário de Pernambuco sobre o ateísmo, e a condenação à qual ela se refere é a que o Datena sofreu por conta de denúncia da Atea. Já a conhecia, mas ainda não atentara para o fato de que o ateu foi beneficiado pela lei que proíbe a «discriminação contra religiosos». De fato, no relatório da referida sentença, há o seguinte:

Este atuar, no entendimento do autor, extrapola os limites da liberdade de expressão, estando tipificado penalmente no artigo 20, parágrafo 2°, da lei 7.716-89.

E o que é que diz o Art. 20 da 7716/89? Simplesmente tipifica o crime de «[p]raticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional». Ora, como ateísmo evidentemente não é “raça”, “cor”, “etnia” e nem “procedência nacional”, segue-se que a única discriminação que o apresentador da Bandeirantes pode ter cometido é a de «religião». Quando lhes convém, os ateístas aparentemente não têm nenhum problema em serem contados entre os religiosos.

Não deixa de ser irônico. Quando nós dizemos que o ateísmo é claramente uma posição religiosa com no máximo tanto valor quanto qualquer outra religião da humanidade, começa a chover ateísta protestando. No entanto, quando a religião ateísta se sente ofendida em cadeia nacional, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos não se faz de rogada e passa a exigir que seja aplicada em seu favor uma lei que proíbe o preconceito de «religião».

«Se não acreditamos em Thor, por que crer no Deus cristão?»

“Se não acreditamos em Thor, por que crer no Deus cristão?”, questiona-se (incrivelmente, a sério) o Richard Dawkins. A estapafúrdia pergunta, feita por uma pessoa que vergonhosamente lidera uma recente lista “com os maiores intelectuais do mundo” (sic!), causa-nos perplexidade e angústia. Como ele pode ser tão burro?

Os ateístas fanáticos (dos quais o Dawkins é um excelente exemplar) padecem de uma grave deficiência intelectual que, aparentemente, lhes veta à razão o mais rudimentar raciocínio abstrato. Qualquer crente do mundo sabe responder a esta pergunta simplória e sem sentido. É embaraçosamente evidente: nós acreditamos em Deus e não em Thor porque Deus existe, e Thor não. Como é possível que uma pessoa supostamente estudada não consiga entender isso?

Se fosse possível escolher um sentimento para descrever o que estas patacoadas do Dawkins provocam, tal seria “vergonha alheia”. Ser ignorante não é vergonha; ser ignorante e julgar-se inteligente, contudo, é degradante. Mas nem o Dawkins nem os seus asseclas percebem o patético espetáculo que desempenham em público: cega-lhes a bazófia que não conseguem conter. Pensam que seus dogmas obtusos são verdades apodícticas. São manifestamente incapazes de pensar fora da minúscula caixinha que lhes estreita o horizonte intelectual. É verdadeiramente espantoso.

A pergunta relevante não é e nem pode ser por que acreditar em Deus e não em Thor. A pergunta relevante, como o percebe qualquer pessoa sã, é como saber que Deus existe mas Thor não; ou, dito de outra maneira, como saber qual é o Deus verdadeiro. A isto responde a Igreja com o que tradicionalmente se chama de praeambula fidei, os “preâmbulos da Fé”, ou seja, verdades alcançáveis à luz da razão natural que preparam e apontam para a verdade do Cristianismo. Tais são, por exemplo, o conhecimento natural a respeito da existência de Deus e a verdade histórica do Cristianismo, coisas que qualquer pessoa honesta é capaz de alcançar. O grande problema é que os fanáticos ateístas desprezam a Filosofia e a História e, depois, vêm reclamar “provas”. Comportam-se mais ou menos como aquele sujeito do qual falava Chesterton (inglês como Dawkins, mas mais inteligente do que este), que pede testemunhos da existência do sobrenatural e, quando apresentado a um sem-número de vozes unânimes de todos os tempos e culturas que o atestam, simplesmente responde que não servem porque se tratam de “pessoas supersticiosas que acreditavam em qualquer coisa”. Ora, para respondermos às gabarolices do Dawkins, poderíamos dizer simplesmente isso e mais nada: se não acreditamos em Chesterton, por que crer no biólogo inglês? E já estaria bem respondido.

A grande verdade é que não existe nenhuma razão plausível para que devamos dar mais crédito às sandices de Dawkins et caterva do que à voz dos sábios de todos os tempos. O fato daqueles não entenderem Filosofia não anula o acerto das conclusões metafísicas mais do que a ignorância de um aluno desleixado a respeito da Física Moderna compromete a Teoria da Relatividade. As alegações de explicações mirabolantes para fenômenos históricos incontestes não se assemelham em nada a “desmenti-los” ou “refutar-lhes” o significado que sempre se lhes atribuiu. A crendice pueril que eles têm numa “Ciência” etérea e endeusada [v.g. «[e]u não sei ainda, mas estou trabalhando para saber» – Dawkins, C.R., op. cit.] não tem o condão de tornar falso todo o conhecimento religioso humano acumulado ao longo dos séculos. O que lhes sobra?

Sobram os espantalhos sem sentido, todos eles versões mais ou menos sofisticadas do Bule Voador de Russell. Mas isso já cansou de ser respondido e, aliás, é muito fácil responder. Não há nada de novo sob o sol (o negrito é meu):

O “Bule Voador” realmente existe!

Ele foi crido por índios americanos que deram a ele nomes e varias personalidades, dedicaram cultos e acreditaram nele. […]

Os pagãos abundaram em “Bules Voadores”, e de muitas formas o cultuaram, seus ritos muitas vezes incompreensíveis aos não iniciados, carregavam definições milenares de contatos com estes “Bules Voadores”, que tanta influência em suas vidas exercia.

[…]

E os Judeus? Sempre acreditaram que seu “Bule Voador”, voava por eles e assim viveram e vivem a milhares de anos, pode ser que todo o contato que diziam ter com seu “Bule Voador” fosse ilusão, desespero e desejo, mas este “Bule Voador” que jamais viram foi sempre sem dúvida determinante na história deste povo e não foi preciso descobrir quem colocou o “Bule Voador” a voar.

Eu jamais pedira que Russel provasse sua história do “Bule Voador”, se sua existência fosse a única explicação plausível, do porquê tantos povos distantes no tempo e no espaço, desejassem chá de um mesmo bule.

Se o fanatismo ateísta permite aos que dele padecem entender ou não isto, é um outro problema. Mas o fato que salta aos olhos a quem analisa o fenômeno religioso é que Thor mais evidencia a existência de Deus do que a nega! Muito ao contrário de constituírem um empecilho à Fé, os inumeráveis panteões pagãos que juncaram a história da humanidade dão eloqüente testemunho em favor da existência de um Deus. Chesterton, de novo ele, diria com seu tradicional bom humor que os falsos deuses não lançam dúvidas sobre a Religião Verdadeira mais do que as notas falsas de vinte libras implicam na inexistência do Banco da Inglaterra. Que os ingleses de hoje tenham mais dificuldade para entender isto do que os de outrora apenas nos revela o quanto fomos capazes de regredir em cem anos.

“A vera civilização ou é religiosa ou não existe”

Publico abaixo um pequeno trecho de um discurso de Alves Mendes, que eu não sei quem é mas que, a dar crédito ao Google, talvez seja este português daqui. Convém ignorar esta biografia meio capenga e, seguindo a sabedoria popular, prestar mais atenção ao que se fala do que a quem fala. O nome de “Alves Mendes” eu encontrei neste livro do Mário Ferreira dos Santos (“Curso de Oratória e Retórica”, São Paulo, 1962), que é de onde retiro o trecho abaixo.

Diríamos hoje que os arrazoados do orador não têm mais sentido? Não há – e abundantes! – contra-exemplos que hoje nos permitem cogitar a possibilidade de existir civilização sem crença religiosa? Não se multiplicam as nações onde o número de ateus é cada vez maior, os povos organizados em torno de valores anti-religiosos, os países que vivem como se Deus não existisse – e todos esses, inobstante, não continuam “progredindo”, não continuam “civilizados”?

Nego este aparente progresso e esta alegada civilização. A técnica, de fato, ainda progride, mas a técnica sozinha não é capaz de constituir um verdadeiro progresso humano. Os costumes estão há muito piores (e bem piores) do que os percebia Alves Mendes, e piorando a olhos vistos, e se não decaímos ainda na barbárie completa é porque o impulso civilizatório de dois milênios de Cristianismo ainda é capaz de manter as rodas da sociedade girando – como um ventilador cujas hélices giram ainda por um tempo, mesmo após ser puxado da tomada.

Estamos mais ricos e mais poderosos e, igualmente, mais insatisfeitos e perdidos do que os nossos pais e avós. Estamos decrépitos! Não, não me parece que continuamos “progredindo”, e sim apenas haurindo dos benefícios inerciais de um progresso cuja razão de ser já perdemos há algum tempo. Não, não me parece que ainda estamos “civilizados”: apenas nos abrigamos precariamente nas ruínas das civilizações que outrora fomos, para nos protegermos como podemos das intempéries do mundo que, sobre nossas cabeças, ameaçam-nos e açoitam impiedosamente estes séculos estranhos em que vivemos.

* * *

Quem denega ou desconhece que a crença é o maior tesouro da verdade, o mais adorável surgente de virtudes, o eterno timbre da nobreza do homem, a garantia suprema, a base inconcussa da grandeza social?

E não há de demonstrá-lo, basta vê-lo. Aqui a geo­grafia supre a retórica. Para provar-se que a civilização social deriva essencialmente da crença religiosa, é apon­tar para os povos que não têm podido assumir ou com­preender a ideia cristã. Jazem todos derrancados, jungidos a um ignóbil fatalismo. Se são povos primitivos, vivem imbecis numa eterna infância; se são povos poli­ciados, vivem ineptos numa eterna decrepitude. Exem­plo — a Oceania e o Bósforo. Nem numa nem noutra banda floresce a cultura humana, porque os seus habi­tantes não têm logrado ser cristãos; e assim, aqueles ar­rastam a existência de um menino ignorante; estes, a de um velho crapuloso. É natural, evidentíssimo. Não há progresso, não há civilização sem moral, e não há moral sem religião. Portanto, o progresso autêntico, a vera ci­vilização ou é religiosa ou não existe. No homem, mui­tíssimo mais que na matéria, reponta e refulge a mani­festação do progresso.

[…]

O positivismo teórico resulta o pessimismo prático: é espírito descrente, o espírito estéril; é o coração em ge­lo, o coração empedrado; é a antítese de toda a grandeza humana e de toda a grandeza moral; não pode ser a dou­trina de um povo militante, de um povo em progresso. Não pode. Povos grandes são povos progressivos, povos crentes, — porque a vida é de si uma luta e a crença é de si uma vitória!

Alves Mendes,
apud Mário Ferreira dos Santos,
op. cit., pp 91-92

A incoerência do relativismo contemporâneo

Mais um texto do pe. Anderson Alves (a se somar aos outros que já foram recomendados aqui), pertinente e atual como de costume. Remeto à leitura da íntegra e apenas trago um curtíssimo excerto – uma frase, somente! – que julgo lapidar:

Da dignidade do ser humano, de fato, não se deduz a verdade de todos os seus conhecimentos, nem a bondade moral de todos os seus atos.

Nestes tempos enlouquecidos onde um padre que se aproveita da Igreja para apregoar em público uma doutrina espúria e contrária a tudo o que a Ela ensina é tratado como vítima enquanto a Igreja que Se defendeu dizendo que ele não fazia parte d’Ela é apresentada como vilã e opressora, convém denunciar abertamente a incoerência do relativismo contemporâneo. Isso faz mal não apenas para a alma, mas também para a inteligência. Acreditar em coisas contraditórias é não somente pecado, mas também defeito intelectual da maior gravidade.

Sobre comos e porquês

Hoje, voltando para casa, eu ouvia na CBN os apresentadores comentarem sobre uma mulher que roubou um trem na Suécia que, conduzido em alta velocidade, terminou descarrilhando e se chocando contra uma casa. E, para mim, o mais surpreendente foi o comentário do repórter: segundo ele, não se sabia ainda como a mulher – de vinte anos – conseguira as chaves do trem.

Ora, parece-me um sinal de que alguma coisa está profundamente errada quando a curiosidade humana, diante de um fato insólito, direciona-se para aquilo que é mais banal e corriqueiro, e não para o que é curioso e extraordinário. O grande mistério por detrás de uma jovem sueca que rouba um trem não está nos artifícios por ela empregados para obter a chave da locomotiva: a primeira óbvia pergunta instigante a se fazer aqui é por que raios alguém quereria roubar um trem! Diante da profunda inquietude desta indagação, chega a ser obsceno silenciá-la com uma trivialidade sobre roubos de chaves. Afinal de contas, chaves são roubadas todos os dias: as estranhas razões que levam alguém a roubar um trem é que constituem, aqui, o fato fora do comum que é digno de nossa atenção. Como alguém o fez é somente um detalhe, profundamente insignificante diante da terrível questão sobre o porquê disso ter sido feito. E se as pessoas não têm interesse em questionar o porquê das coisas nem mesmo diante de um fato extraordinário como este, acaso poderão perguntá-lo a respeito dos triviais?

Não creio ser exagerado alertar para os riscos de uma certa atrofia mental provocada por atitudes assim. E temo que isso não tenha sido um simples deslize do repórter, mas muito pelo contrário: infelizmente, penso que seja um tipo de condicionamento intelectual, ao qual as pessoas são (até involuntariamente) levadas por conta da filosofia moderna que, como ar poluído, respiram sem disso se aperceberem.

Durante séculos, os filósofos se perguntaram sobre o porquê das coisas. Com a advento da ciência moderna, estas questões foram degredadas para os obscuros reinos da Metafísica, tanto mais irrelevantes quanto mais deslumbrados os intelectuais ficavam com as respostas que obtinham sobre como as coisas funcionavam. Até que o desinteresse degenerou em ignorância e, hoje, o pensamento filosófico dominante (e, por extensão, o raciocínio ordinário das pessoas comuns) muitas vezes não é sequer capaz de formular uma questão sobre por que algo é de tal ou qual maneira.

Com este texto não se quer, absolutamente, desmerecer o conhecimento sobre os modos como as coisas se operam. É claro que entender as causas materiais que produzem os efeitos que observamos no mundo é da mais alta importância: é isso que nos permite prever, evitar ou provocar uma enorme variedade de coisas, e esses conhecimentos são absolutamente fundamentais para a nossa existência no universo. Isso não está em discussão. O ponto é que direcionar unilateralmente a inteligência humana para a investigação sobre como as coisas funcionam é contrair uma terrível estreiteza intelectual, cuja conseqüência menos dramática é se deparar com uma jovem dirigindo desgovernadamente um trem roubado e não ser capaz de fazer nenhuma pergunta mais interessante do que “e como ela fez isso?”.

Li há muito tempo um certo texto do Gustavo Corção dirigido contra um filósofo de nome engraçado que afirmara ter Dante errado ao dizer, no final do “Paraíso”, que é o «amor que move o sol e as outras estrelas». Lembro-me de que à época julguei isso uma polêmica profundamente vazia; mas hoje eu vejo a importância do encarniçado debate então conduzido com tanto denodo pelo famoso articulista católico. Porque confundir os “porquês” com os “comos”, as razões profundas com as causas materiais, é uma infame agressão à razão humana, é uma terrível confusão intelectual que – quando menos, por amor à verdade – cumpre ser desfeita.

Afinal, sem certos conhecimentos corre-se o risco de ter muitas informações e, simultaneamente, não entender nada de realmente importante. É como se a uma criança que perguntasse por que aquele móvel grande da sala faz “tic-tac” o pai começasse a falar sobre movimentos pendulares e mecânica de engrenagens, quando na verdade o que ela precisava saber era “porque ele marca o tempo, e papai precisa saber as horas”. Depois é possível falar em engrenagens e pêndulos, que é como os relógios funcionam; mas é profundamente estúpido dedicar-se com afinco às minúcias da relojoaria antes de sedimentar o conhecimento de que os relógios existem porque as pessoas querem saber que horas são. E, pela mesma razão, achar que o mecanismo do relógio é mais relevante do que o fato de que ele serve para ver as horas denota uma grave deficiência intelectual, que é dever de justiça apontar e tentar corrigir.

As crises atuais: a civilização, a barbárie e a defesa dos valores

Muito interessante este artigo do Rodrigo Constantino sobre as crises atuais. Analisando a maneira como o homem moderno encara o mundo ao seu redor, o articulista sentencia:

Somos os herdeiros de uma geração mimada, que colheu os frutos do árduo trabalho de seus pais, acostumados com vidas mais duras, com guerras, com diversas restrições. Essa geração, principalmente na década de 1960 e 70, pensou que bastava demandar, e todos os seus desejos seriam atendidos, sabe-se lá por quem.

A tese não é nova. Ela já se encontra na clássica obra do filósofo espanhol Ortega y Gasset, “A Rebelião das Massas”; curiosamente, o livro foi escrito no final da década de 20 do século passado, mostrando que o fenômeno se encontrava bem delineado já quarenta anos antes do período histórico citado pelo articulista d’O Globo. A análise, não obstante, é precisa. Não creio que tenhamos melhorado muito de lá para cá.

A idéia de que «[o] Estado de bem-estar social criou uma bomba-relógio, mas ninguém quer pagar a fatura» pode parecer catastrofista para alguns, mas esta recusa em aceitar o diagnóstico só reforça a existência da moléstia. Afinal, como diz o Constantino, a crise não é somente econômica, mas também moral; e o desprezo que a sociedade nutre para com os valores que foram fundamentais à sua construção é a característica mais pungente e universal das crises modernas.

Ortega y Gasset não padece das mesmas limitações de espaço que o Constantino na sua coluna de jornal e, portanto, pode se dar ao luxo de ser mais persuasivo. O filósofo espanhol gasta longas páginas para explicar como o homem moderno deixou de se sentir obrigado pelas circunstâncias exteriores – as intempéries da natureza, os conflitos entre os indivíduos e os povos, a penúria e a escassez de recursos, etc. – para se enxergar como um detentor de direitos ilimitados cujo merecimento é pressuposto como se fosse uma lei básica da natureza. Em uma palavra: estamos falando do fenômeno que produz adultos vivendo como adolescentes mimados, incapazes de fazer as coisas por conta própria e acreditando sinceramente que a tudo têm direito, bastando-lhes bater o pé e exigi-lo a plenos pulmões. Mas o alto grau de civilização ao qual fomos capazes de chegar (e que possibilita, sim, alguns benefícios perfeitamente inimagináveis a civilizações passadas) não se sustenta por si só, muito pelo contrário: exige o trabalho árduo de homens valorosos que possam mantê-lo. E as atuais circunstâncias nas quais vivemos fazem com que homens assim sejam cada vez mais raros: é a própria civilização que, se mal vivida, enseja e produz a barbárie.

Num tal cenário, são em princípio bem-vindas todas as iniciativas que intentem chamar a atenção para os riscos que corremos, por impopulares que sejam. Mas temo que elas caiam na irrelevância exatamente por pintarem um quadro demasiado tétrico, excessivamente indigesto à sensibilidade moderna. Como – a comparação é-me inevitável – o homem d’A República de Platão que, tendo saído da caverna para ver o mundo verdadeiro, é tratado com escárnio e hostilidade ao voltar para os seus e lhes contar que eles não vêm senão sombras. Penso que é necessário tomar o devido cuidado para evitar este tipo de reação: afinal de contas, não nos interessa simplesmente que as gerações futuras reconheçam o acerto de nossas análises, interessa-nos oferecer a nossa contribuição para evitar (ou pelo menos minimizar) as agruras que se anunciam no horizonte.

Muita água rolou por debaixo da ponte nesses últimos oitenta anos, e alguém pode dizer que a realidade, no geral, tem se mostrado muito mais aprazível do que os vaticínios feitos há tantas décadas por um espanhol que morreu antes do nascimento dos Beatles; à parte a Segunda Guerra, a tensão que se lhe seguiu e alguns conflitos menores aqui e acolá, o mundo ainda parece ser um lugar bem habitável e não parece que estejamos caminhando rumo à borda do penhasco. Por quê, então, ressuscitar estas teorias ultrapassadas, que o decurso dos anos já demonstrou falsas e excessivamente pessimistas?

De minha parte, eu penso que aqueles princípios estão corretos, mas tão corretos que as únicas tentativas de desmenti-los se dão no campo da casuística seletiva: “isto ainda não aconteceu”, “as coisas não estão tão ruins assim”, “em tais e quais aspectos estamos melhores do que há vinte anos”, et cetera. E, exatamente por isso, penso que é desejável apresentar o discurso sob uma ótica mais propositiva. Eu não sei se o mundo vai se transformar num lugar impossível de se viver (e nem muito menos quando isso se dará); mas sei que ele possui incontáveis problemas que poderiam ser resolvidos se as pessoas tivessem um senso moral mais apurado. Eu não sei se os netos pobres seremos nós ou os nossos filhos; mas sei que diversas coisas foram perdidas ao longo das últimas gerações e recuperá-las vai indiscutivelmente nos enriquecer. Eu não sei quais os limites exatos de flexibilidade moral que uma sociedade pode suportar antes de entrar em colapso; mas sei que existem valores, que eles são uma coisa positiva e, portanto, sempre vale a pena – independente das circunstâncias históricas que nos cerquem – defendê-los e os promover.

“O susto e a maravilha do bebê que chega logo”

Achei deliciosamente provocante esta imagem abaixo sobre o feminismo que está circulando no Facebook. Estampa uma frase de um texto de Chesterton sobre controle de natalidade que eu não sei se existe traduzido para o português; no entanto, de um excelente frasista como Chesterton sempre vale a pena ler uma única proposição que seja.

feminismo

Ela complementa um outro texto da Lúcia Guimarães que eu lia recentemente no Estadão. Não conheço as posições religiosas da autora do artigo, mas fica claro pelo texto que não se trata de nenhuma fundamentalista cristã despejando misoginia na internet; na feliz expressão do amigo que me indicou o texto, o que parece é que ela, simplesmente, deparou-se com a imposição da realidade. Longe de fazer apologia ideológica, ela fala com aquela constatação mais básica do mundo ao seu redor que tanto falta às militantes feministas radicais.

Não preciso me debruçar sobre publicações médicas para observar o que mudou para pior. No começo, ao notar a idade das mães que empurram carrinhos no meu bairro, um epicentro de adoções e casais ambiciosos que adiam a primeira gravidez, olhava com admiração a elaborada dedicação ao ritual reprodutivo planejado. O sucesso profissional exige mais anos de instrução superior. Educação e saúde de boa qualidade se tornaram luxo. Mas estas crianças do meu bairro começaram a falar e se manifestar como pequenos Mussolinis. Dominam as refeições noturnas. Não conseguem se distrair sozinhas. São exibidas como troféus. Seus ombros suportam o mundo e ele pesa mais do que a mão de um adulto narcisista e ansioso.

As objeções ao adiamento da gravidez apresentadas no artigo são as mais naturalistas possíveis; os problemas dos «filhos dos chamados pais-avós» são de ordem biológica, econômica, social, como p.ex.:

  1. são «mais afligidos por mutações genéticas»;
  2. têm mais «problemas de desenvolvimento psicológico»;
  3. estão «expostos ao trauma da perda prematura dos pais»;
  4. estão sujeitos ao «fardo de cuidar de idosos no começo da vida profissional».

Tudo isso está dentro da esfera de estudos das ciências naturais e mesmo do senso comum; ninguém precisa ser católico para o constatar. Mais vai harmonicamente ao encontro daquilo que a Igreja, que tem o irritante costume de sempre estar certa, ensinou e praticou ao longo dos séculos. O Código de Direito Canônico vigente estabelece o seguinte quanto à idade mínima para a contração de núpcias:

Cân. 1083 — § 1. O homem antes de dezasseis anos completos de idade e a mulher antes de catorze anos também completos não podem contrair matrimónio válido.

O parágrafo seguinte diz que as Conferências Nacionais «podem estabelecer uma idade superior para a celebração lícita do matrimónio» (ibid., §2). Parece-me que, no Brasil, a CNBB exige a idade de dezesseis e dezoito anos, respectivamente para a mulher e o homem que desejam contrair núpcias. Mas eu chamo a atenção para a escolha dos adjetivos: se a mulher tem menos de 14 anos o Matrimônio não é válido (i.e., não existe Matrimônio), mas a partir daí só cabe falar em liceidade das núpcias – isto é, se uma coisa (pressupostamente válida) pode ou não ser feita. Em outras palavras: uma mulher de 14 anos sempre pode receber o Sacramento do Matrimônio (logicamente, com um homem de dezesseis anos ou mais), mas em algumas circunstâncias ela não o deve fazer. Já uma mulher de treze anos não pode recebê-lo absolutamente [a propósito, e para reforçar a tese, esta é a mesma idade – 14 e 16 anos – que constava no CIC de 1917].

Graças principalmente ao feminismo ironizado por Chesterton no começo deste artigo, estas idades soam completamente irreais nos dias de hoje. Ouve-se falar – e muito! – em mil e um pré-requisitos a serem cumpridos pelas mulheres antes que elas possam sequer cogitar o ingresso na vida matrimonial; na arguta constatação da Lúcia Guimarães, hoje em dia «[é] impossível desvincular a fertilidade do mercado de trabalho hostil à procriação e da ideia de que procriar cedo é um problema da mulher». No entanto, é preciso ter a ousadia de questionar o paradigma vigente e de tentar, ao menos, cogitar a hipótese de que as coisas possam ser diferentes – mesmo que isto seja hoje muito dificultado pelas atuais conjunturas em que vivemos.

É preciso defender, ao menos como possível e desejável, o casamento já no desabrochar da juventude. Se não é possível chegar à idade canônica, ao menos que nos esforcemos para não nos afastarmos demasiado dela sem justa causa; se formos forçados a adiá-la, ao menos que isto seja feito com a consciência de que se trata de um mal a nós imposto pelo modelo de vida que hoje se leva. E termino citando mais uma vez a articulista do Estadão: oxalá as pessoas possam ter a graça de «redescobrir o susto e a maravilha do bebê que chega logo». Mesmo com todas as dificuldades que disso possam advir; «[m]esmo que ele ainda não tenha um berço para repousar».