Mais sobre justiça e pena

Recebi nos últimos dias diversos comentários sobre o assassino do menino João Hélio que, sob as bênçãos de uma ONG defensora dos direitos humanos, após cumprir a sua “pena” num instituto de recuperação de menores, ganhou passagem e moradia na Suíça, para si e sua família, a fim de ter uma chance de recomeçar a sua vida.

Alguém me perguntou meio provocativamente se eu preferiria que o sujeito “apodrecesse” na cadeia, ao invés de ter uma chance de reconstruir a sua vida. A pergunta esconde um falso dilema, pois do jeito que ela foi formulada só parece haver duas alternativas excludentes: ou o sujeito “tem uma nova chance”, ou o sujeito “paga a sua pena”.

É óbvio que eu quero que o criminoso se arrependa de suas faltas e, tornando-se uma boa pessoa, possa levar uma vida santa (inclusive mais santa do que a minha, como rezamos na Ladainha da Humildade) até o fim dos seus dias. Isso, no entanto, não pode ser feito simplesmente “esquecendo-se” das conseqüências dos seus crimes, como se nada tivesse acontecido.

Como ensina a boa doutrina católica, a pena tem a função primeira de reparar a desordem introduzida pela culpa; adquire valor de expiação quando aceita livremente pelo condenado e, na medida do possível, deve contribuir para a emenda do culpado (cf. CIC 2266). Portanto, ao contrário do que estamos acostumados a escutar, o objetivo primeiro das punições não é a “reabilitação” do criminoso. Isso é uma coisa boa que deve ser buscada, sim, mas a função primeira da pena é reparar a desordem introduzida pela culpa.

Isso só pode ser feito com penas proporcionais aos delitos. Em que espécie de mundo a morte horrível de uma criança, arrastada por quilômetros presa a um carro roubado, pode ter como pena proporcional dois anos em uma casa de recuperação e, depois, uma “vida nova” na Suíça?

Concedendo, apenas para argumentar, que o menor tenha tomado consciência do mal que cometeu, que tenha realmente se arrependido, que deseje sinceramente mudar de vida e esteja realmente empenhado em fazê-lo de forma decente e honesta, mesmo assim, a reabilitação do culpado não é, por si só, suficiente para fazer cessar a pena. A pena é um dever de justiça. Voltando à pergunta original: sim, eu sem dúvidas quero que o assassino do garoto – e, aliás, qualquer criminoso – tenha uma outra chance, mas se a pena justa para os seus crimes exigir que ele “perca” um bom pedaço da sua vida em uma prisão, isso não pode ser simplesmente ignorado. Mesmo que, com isso, ele perca muitas chances na vida; afinal, uma “punição” é isso mesmo e não pode ser diferente.

Sobre o assunto, encontrei no Estadão de hoje um artigo do Bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Antonio Augusto Dias Duarte, que vale a leitura. Termino as minhas reflexões com as palavras de Sua Excelência:

[S]erá que não existe mais, na atual civilização, o direito de memória, que exige o dever de respeitar o sofrimento gravado a fogo na mente e no coração dos pais e dos familiares, dos amigos e dos concidadãos de João Hélio, pois no interior de toda essa gente nunca se apagarão as imagens da atrocidade cometida contra essa criança, e a infeliz iniciativa desse tipo só faz pisotear este direito humano?

[…]

[S]erá que o nosso mundo, que se vangloria de ser pós-moderno, de ter progredido tanto nos costumes e na ciência, de ter avançado na defesa dos direitos humanos, tem ainda uma reserva de mentes claras e imunes a ideologias camufladas, capaz de falar dos reais direitos humanos e mais capaz ainda de proclamá-los corajosamente, até que o povo brasileiro se convença de que não precisa mais de ONGs que se vão instalando no nosso país somente para conturbar a ordem social e destruir valores culturais e religiosos indiscutíveis?

[…]

Nem Estados, nem grupos de Estado, nem autoridades governamentais, nem integrantes de organismos não-governamentais, nem planos nacionais, nem pretensas nações planejadores do mundo têm o direito de impingir aos cidadãos de um país certas propostas que maculam e lesam a dignidade da pessoa humana, mesmo que utilizem a expressão “direitos humanos”, sem afirmar quais a sua raiz e a fonte verdadeiras e originais.

A Lei Natural e a Ignorância

Eu sempre achei muito complicado falar em “Ignorância Invencível” em se tratando da Lei Natural. Os exemplos são os mais variados possíveis: os sacrifícios humanos dos astecas, os homossexuais, os ateus e, agora os suicidas: descobri hoje que a Leila Lopes se matou para ir para junto de Deus.

Por um lado, é fato incontestável que o suicídio é pecado mortal. Por outro lado, é também incontestável que, para que haja pecado mortal, é necessário, além da matéria grave, pleno conhecimento e deliberado consentimento. Estes dois últimos aspectos são subjetivos; mas será que a subjetividade é absoluta? O fiel da balança fica sendo, então, em última instância, a (má) consciência do indivíduo?

Santo Tomás de Aquino ensina que a Lei Natural só é conhecida de todos os homens no tocante aos seus primeiros princípios universais (Summa I-IIae, q. 94, a. 4). Ensina também que as paixões podem obscurecer a razão (id. ibid, q. 77, a. 2), e que as paixões antecedentes ao pecado o atenuam (id. ibid, q. 77, a. 6). No entanto, o mesmo Santo Tomás diz (id. ibid., q. 77, a 8) que, quando o ato pecaminoso ou o consentimento deliberado é executado de maneira passional, isso não ocorre repentinamente, de modo que a razão deliberante pode fazer frente e, se não o faz, é pecado mortal…

Reconheço que é complicado, e reconheço que, às vezes, sentimo-nos tentados a escusar. Seja o ateu que teve uma péssima formação filosófica e religiosa, seja o homossexual que, desde a mais tenra infância, foi exposto à depravação até o seu senso moral ser destruído, seja um asteca que levava a sua religião tão a sério a ponto de oferecer, ao que ele julgava ser Deus, o que há de mais excelente na Criação: um outro ser humano. Ao mesmo tempo, no entanto… é possível postular este subjetivismo radical da culpa?

Eu não consigo mensurar a culpabilidade de alguns atos. Acho, porém, que não vale a pena fazê-lo: o que realmente interessa, na minha opinião, é estabelecer as matérias pecaminosas e combatê-las nos casos concretos, independente da culpabilidade dos pecadores. Afinal, sem sombra de dúvidas é possível que, quando houver matéria grave, haja também pecado mortal. E o risco de não dar a devida importância a uma alma que – pelo menos – possivelmente caminha a passos largos para o Inferno é grande demais para ser corrido em tranqüilidade de consciência.

“Castigo dos pecados do padre” – Santo Afonso de Ligório

[Tenho cansado de repetir aqui que, longe de “passar a mão” na cabeça dos sacerdotes, a Igreja prega que os pecados por eles cometidos são de uma gravidade que os anti-clericais não são capazes de imaginar. Longe de ser conivente com os pecados dos clérigos, a Igreja dirige a eles duríssimas palavras. Como foi sugerido pelo Gustavo, estou postando aqui um trecho de um livro de Santo Afonso de Ligório escrito para padres e seminaristas, que fala muito bem sobre isso. Não que eu ache que vá ser de serventia para aquelas pessoas que nitidamente estão de má vontade para com a Igreja, mas para os católicos é uma obra que vale a pena – sem dúvidas! – ser conhecida. Que, neste ano sacerdotal, a Virgem Santíssima possa conseguir um milagre do Seu Filho sobre o clero da Igreja d’Ele.]

Consideremos agora o castigo, que tem de ser proporcionado à gravidade do seu pecado. S. João Crisóstomo tem por condenado o padre que no tempo do seu sacerdócio comete um só pecado mortal: Se pecardes como particular, será menor o vosso castigo; se pecais no sacerdócio, estais perdido.

São em verdade terríveis as ameaças, que o Senhor profere pela boca de Jeremias contra os padres que pecam: Estão manchados o profeta e o sacerdote, e eu encontrei na minha casa a iniqüidade deles, diz o Senhor. Por isso o seu caminho será como um atalho escorregadio e coberto de trevas; hão de impeli-los e cairão. Que esperança de vida poderíeis dar a quem caminhasse à borda dum precipício, em terreno escorregadio e às escuras, sem ver onde punha os pés, e ao mesmo tempo impelido fortemente para o abismo por seus inimigos? Tal é o estado desgraçado a que se encontra reduzido o padre que comete um pecado mortal.

Lubricum in tenebris. Pecando, o padre perde a luz e cai nas trevas. Mais lhes valera, assegura S. Pedro, não ter conhecido o caminho da justiça, do que voltar atrás depois de o haver conhecido. Ó, sem dúvida, mais valia para um padre que peca ser antes um camponês ignorante, que nunca tivesse estudado coisa alguma; porque depois de tantos conhecimentos adquiridos, — pelos livros que leu, pelos oradores sagrados que ouviu, pelos diretores que teve — depois de tantas luzes recebidas de Deus, o desgraçado calca aos pés todas as graças, pecando, e merece que as luzes recebidas só sirvam para o tornar mais cego e impenitente. A maior ciência, diz S. Crisóstomo, dá lugar a mais severo castigo; se o pastor cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura. Um padre cometerá o mesmo pecado que os seculares; mas sofrerá um castigo muito maior, permanecerá mais profundamente cego que todos os outros; será punido conforme o anúncio do Profeta: Que vendo não o vejam, e ouvindo não compreendam!

É o que a experiência deixa ver, diz o autor da Obra imperfeita: Um secular, depois de pecar, facilmente se arrepende. Se assiste a uma missão, se ouve um sermão enérgico sobre alguma verdade eterna, — malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus, penas do inferno, entra facilmente em si e volta-se para Deus; porque estas verdades, como coisas novas, tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, — que impressão podem fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras? Tudo quanto encerra a Escritura, continua o mesmo autor, é para ele uma coisa sediça de pouco valor; porque as coisas mais terríveis que lá se encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca.

Quanto maior é a dignidade dos padres, diz S. Jerônimo, tanto maior é a sua ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus. Quanto mais alto é o posto em que Deus os colocou, diz S. Bernardo, tanto mais funesta será a sua queda. Quando se cai em plano, diz Sto Ambrósio, raro se experimenta grande mal; mas cair de alto não é só cair, é precipitar-se, e a queda será mortal.

Nós os padres regozijamo-nos, diz S. Jerônimo, por nos vermos erguidos a tão alta dignidade; mas seja igual o nosso temor de cair. Parece que é aos padres que Deus fala, quando diz pela boca de Ezequiel: Coloquei-vos sobre o monte santo de Deus… e vós pecastes; e eu vos expulsei do monte de Deus, e vos entreguei à ruína. Vós que sois padres, diz o Senhor, eu vos estabeleci sobre a montanha santa, para serdes os faróis do universo: Sois vós a luz do mundo. Uma cidade assente no cimo duma montanha não pode estar escondida.

Tem pois razão S. Lourenço Justiniano em dizer que quanto maior é graça concedida por Deus aos padres, tanto mais digno de castigo é o seu pecado, e quanto mais alto o seu estado, mais mortal a sua queda. Quem cai num rio, diz Pedro de Blois, mergulha tanto mais fundo, quanto de mais alto tiver caído.

Compreende bem, ó padre: Deus, elevando-te ao sacerdócio, ergueu-te até ao Céu, e fez de ti, não mais um homem da terra, mas um homem celeste, pensa pois quanto te será funesta uma queda, segundo o aviso de S. Pedro Crisólogo. A tua queda, diz S. Bernardo, será semelhante à do raio que se precipita com impetuosidade. Quer dizer que a tua perda será irreparável. Assim, ó desgraçado, cairá sobre ti a ameaça que o Senhor lançou sobre Cafarnaum: E tu, ó Cafarnaum, erguida até ao Céu, serás abatida até ao inferno.

Um padre que peca merece tal castigo, por causa da sua ingratidão para com Deus, a quem deve um reconhecimento tanto maior quanto recebeu dele os maiores benefícios, como nota S. Gregório. Merece o ingrato ser privado de todos os bens que recebera, como observa um sábio autor. Jesus Cristo disse: Ao que já possui, dar-se-á, e ele estará na abundância; mas o que nada possui, ver-se-á despojado até do que parecia ter. Quem é grato para com Deus obterá maior abundância de graças; mas um padre que, depois de tantas luzes, depois de tantas comunhões, volta as costas a Deus, e desprezando todos os favores recebidos, renuncia à sua graça, — este padre será com justiça privado de tudo. É o Senhor liberal com todas as suas criaturas, mas nunca com os ingratos. A ingratidão, diz S. Bernardo, faz estancar a fonte da bondade divina.

Por isso S. Jerônimo pôde dizer: Nenhuma besta há no mundo mais feroz que um mau padre, porque esse não se quer deixar corrigir. E o autor da Obra imperfeita: Os leigos facilmente se emendam, mas um mau eclesiástico é incorrigível. Segundo S. Damião, é de preferência aos padres pecadores que se aplicam estas palavras do Apóstolo: Porque os que foram alumiados, os que saborearam o dom celeste, e receberam o Espírito Santo… depois caíram, é impossível que se renovem pela penitência. Com efeito, quem mais que o padre recebeu de Deus graças abundantes? Quem mais do que ele gozou dos favores do Céu e participou dos dons do Espírito Santo? Segundo Sto. Tomás, permaneceram obstinados no pecado os anjos rebeldes, porque pecaram em face da luz; é assim, escreve S. Bernardo, que o padre será tratado por Deus: tornado anjo do Senhor, ou há de ser eleito como anjo, ou réprobo como o anjo. Eis o que o Senhor revelou a Sta. Brígida: Olho os pagãos e os judeus, mas não vejo ninguém pior que os padres: o seu pecado é como o que precipitou Lúcifer. E notemos aqui o que diz Inocêncio III: Muitas coisas que nos leigos são pecados veniais, nos eclesiásticos são mortais.

É ainda aos padres que se aplicam estas palavras de S. Paulo: Uma terra, que, depois de muito regada pelas chuvas, só produz espinhos e silvas, está reprovada e sujeita a maldição: acabará por ser entregue ao fogo. Que chuva de graças não recebe de Deus continuamente o padre? E contudo, em vez de frutos, só produz silvas e espinhos: Desgraçado! Está prestes a ser reprovado e a receber a maldição final, para ir, depois de tantas graças, que Deus lhe prodigalizou, arder no fogo do inferno! — Mas, que temor pode ter ainda do fogo do inferno um padre, que voltou as costas a Deus? Os padres que pecam perdem a luz, como levamos dito, e perdem também o temor de Deus. É o Senhor quem no-lo declara: Se eu sou o Senhor, onde está o meu temor, vos diz o Senhor, a vós, ó padres, que desprezais o meu nome?. Segundo S. Bernardo, os sacerdotes, caindo da altura a que se acham elevados, de tal modo se afundam na malícia, que perdem a lembrança de Deus, e tornam-se surdos a todas as ameaças da justiça divina, a tal ponto que nem o perigo da sua condenação os espanta.

Mas que haverá nisso de admirável? O padre, pecando, cai no fundo do abismo, onde fica privada da luz e despreza tudo. Acontece então o que diz o Sábio: Caído no fundo do abismo do pecado, o ímpio despreza. Este ímpio é o padre que peca por malícia; um só pecado mortal o precipita no fundo das misérias, em que cegamente permanece mergulhado. Nesse estado despreza tudo: castigos, advertências, presença de Jesus Cristo, a quem toca no altar. Não córa de se tornar pior que o traidor Judas, como o próprio Senhor um dia disse a Sta. Brígida: Tais padres já não são sacerdotes meus, mas verdadeiros traidores. Sim, tais padres são verdadeiros traidores, porque abusam da celebração da Missa, para ultrajarem mais cruelmente a Jesus Cristo pelo sacrílego!

E qual será, depois de tudo, o triste fim do padre mau? Ei-lo: Praticou a iniqüidade na terra dos santos, não verá a glória do Senhor. Será, numa palavra, o abandono de Deus, e depois o inferno. — Mas, dirá alguém, essa linguagem é demasiado aterradora: quereis lançar-nos da desesperação? — Respondo com Sto. Agostinho: Se vos espanto, “é que eu próprio estou espantado”. — Assim, dirá um padre, que tiver tido a desgraça de ofender a Deus no sacerdócio, não haverá para mim esperança de perdão? — Ó, não posso afirmar isso; haverá esperanças, desde que haja arrependimento do mal cometido. Que esse padre seja pois extremamente reconhecido para com o Senhor, se ainda se vê ajudado da graça; mas é preciso que se apresse a dar-se a Deus, enquanto o chama, conforme o aviso de Sto. Agostinho: “Abramos os ouvidos à voz de Deus, enquanto nos chama, com receio de que se recuse a ouvir-nos, quando estiver prestes a julgar-nos”.

[Santo Afonso de Ligório, “A Selva”, para ordenandos e sacerdotes; download em .pdf aqui]