“Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor” – Fulton Sheen

Eis a quarta palavra da Consagração da Missa do Calvário. As três primeiras palavras foram dirigidas aos homens. A quarta, porém, foi dirigida a Deus. Estamos agora na última fase do drama da Paixão. Na quarta Palavra, e em todo o Universo, só existem apenas Deus e Jesus. Esta é a hora das trevas.

Subitamente, o silêncio dessa escuridão é quebrado por um grito – tão terrível e tão inesquecível que até aqueles que não compreenderam a língua em que foi expresso hão de recordar-se sempre do tom estranho em que foi proferido: “Eli, Eli, lamma Sabcthany”.

Sim, embora alguns não pudessem compreender essas palavras da língua hebraica, o tom em que foram ditas não mais lhes esqueceu em toda a sua vida.

As trevas que cobriam a terra naquele momento representam apenas o símbolo exterior da noite escura da alma. O sol pode esconder a sua face perante o terrível crime dos deicidas, mas a verdadeira razão da noite que se estendeu sobre a terra foi a sombra da Cruz que se erguia no Calvário.

Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor.

Qual foi, todavia, a razão do grito que partiu da escuridão?
“Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes?”

Esse foi o grito de espanto para o pecado, em que o homem abandonou Deus, em que a criatura esquece o Criador, em que a flor despreza o sol que lhe deu força e beleza. O pecado é uma separação, um divórcio da união com Deus, e do qual derivam todos os divórcios. Desde que Jesus veio a terra para remir os homens dos seus pecados, é certo que Ele sabia que havia de sentir esse abandono, esse apartamento, esse divórcio.

Ele sentiu-o, antes de mais, no íntimo da Sua alma, tal como a base da montanha, se fosse consciente, sentiria o abandono do sol quando uma nuvem descesse sobre ela, embora os seus cumes se conservassem radiosos, banhados de luz.

Não havia sombra de pecado na alma de Jesus, embora Ele quisesse sentir os efeitos do pecado, e a terrível sensação de isolamento e solidão – a solidão do afastamento de Deus.

Renunciando à divina consolação que poderia pertencer-Lhe, Ele quis mergulhar na tremenda solidão da alma que se extraviou de Deus pelo pecado, para expiar a solidão do ateu que nega a existência de Deus e deposita a sua fé nas coisas terrenas, a dor do coração despedaçado de todos os pecadores que sentem a amargura da ausência do seu Criador.

Jesus foi até ao ponto de remir todos aqueles que não crêem e que, na tristeza e na miséria, exclamam, blasfemando: “Por que é que a morte levou tal pessoa?”, “Por que é que perdi aos meus bens?”; “Por que é que hei de sofrer”.

O “Por que” que Jesus dirigiu a Seu Pai é uma expiação que abrange os “porquês” soltados por aqueles que blasfemam.

Para melhor revelar a sensação de tal abandono, Jesus exteriorizou-o. Porque o homem se apartara de Deus, Ele permitiu que o Seu sangue se separasse do Seu Corpo. O pecado entrara no sangue do homem e, como se os pecados do mundo recaíssem sobre Ele, Jesus deixou derramar o Seu precioso sangue, do cálice do Seu Corpo. Quase que podemos ouvi-Lo dizer:

“Pai, este é o Meu Corpo, este é o Meu Sangue. Eles estão separados um do outro, tal como a humanidade se separou de Ti. Esta é a Consagração da Minha Cruz”.

O que aconteceu então no Calvário acontece agora na Missa. Com uma diferença: Na Cruz, o Salvador estava só e, na Missa, está conosco. Nosso Senhor, agora, está no céu, à mão direita de Seu Pai, intercedendo por nós. Já não pode, portanto, sofrer na Sua natureza humana.

Como pode, pois, a Missa ser a renovação do drama da Cruz? Como é que Cristo pode renovar o drama da Cruz?

Ele não pode, realmente, voltar a padecer na Sua natureza, porque está no céu, gozando a divina bem-aventurança, mas pode ainda sofrer nas nossas naturezas humanas.

Ele não pode, de fato, reviver o Calvário no Seu Corpo físico, mas pode renovar os Seus sofrimentos no Seu Corpo Místico que é a Igreja.

O sacrifício da Cruz pode ser renovado, contanto que nós Lhe façamos a oferta do nosso corpo e do nosso sangue, em toda a plenitude. Jesus pode também oferecer-Se novamente a Seu Pai Celestial, pela redenção do Seu Corpo Místico – a Igreja.

Cristo anda no mundo juntando as almas que desejam ser outras tantos Cristos. Para que nos nossos sacrifícios, as nossas tristezas, os nossos calvários, as nossas crucificações, não fiquem isoladas, desunidas, a Igreja reúne-os, junta-os, e o agrupamento, a massa de todos esses sacrifícios humanos reúne-se ao grande sacrifício de Cristo na Cruz, durante a Missa.

Quando assistimos ao Santo Sacrifício da Missa, não somos precisamente apenas criaturas terrenas, nem indivíduos solitários, mas sim parcelas vivas de uma grande ordem espiritual, na qual o Infinito penetra e envolve o finito, e o Eterno penetra no ser temporário e passageiro, e o Espiritual reveste a materialidade.

Arcebispo Fulton Sheen, “O Calvário e a Missa”.
Extraído de “A Grande Guerra”.

Sexta-Feira

A igreja vazia, os altares desnudos, a lâmpada do sacrário apagada e, este próprio, aberto e vazio. Nosso Senhor não está – é visível. Foi-nos tirado, por nossas culpas e nossas faltas. Vai ser julgado, condenado e crucificado por meus crimes.

A cerimônia da Paixão é sóbria como convém a um dia como esse. O sacerdote entra em silêncio e prostra-se no chão: singelo gesto para expressar o luto de toda a Igreja porque o Senhor está morto. E Ele está morto porque foi assassinado, e fomos nós que O assassinamos: prostrar-se com o rosto por terra é também sinal de vergonha. De angústia diante da enormidade da nossa malícia, tão grande que foi capaz de matar a Deus.

O Senhor está morto! E nós, agora, não temos mais onde ir. Porque nós estragamos até mesmo a maior das Graças que poderíamos receber dos Céus. Nós crucificamos o Filho de Deus, que viera ao mundo para nós. E, durante o tradicional canto da cerimônia de adoração da Cruz, o Altíssimo nos interpela, queixando-Se e perguntando o que foi que nos fez para que O matássemos. Perguntando o que mais poderia ter feito por nós para que O amássemos. Lançando-nos à face a nossa ingratidão: só na Cruz nós exaltamos Aquele que tanto nos exaltou. Infelizes de nós! Porque retribuímos com a máxima ingratidão a Quem tanto nos amou.

E é essa a Sexta-Feira da Paixão: a festa do amor desprezado, o clímax da nossa ingratidão. A memória do dia mais triste da história da humanidade: quando os homens mataram Deus. O Amor escarrado e humilhado, escarnecido e Crucificado, elevado no Madeiro e, ainda assim, amando…! O beijo que nós damos na cruz na celebração de hoje tem outro sentido, mas é impossível não lembrar de Judas traindo com um beijo o Filho do Homem. Também eu estou naquele beijo, também é minha aquela traição. É esta a hora das trevas e (como lembrava o sacerdote na homilia de hoje) não somos meros espectadores no drama da Sexta-Feira Santa. Somos todos protagonistas na Crucificação de Cristo. São meus pecados que Lhe rasgam a Carne, que Lhe vertem o Sangue, que O pregam na Cruz.

E, na Cruz, humilhado e obediente até a morte, Nosso Senhor entrega o espírito. E está consumado, nós O condenamos, nós O crucificamos, nós O matamos. Não há espaço para Ele em nosso mundo! E as palavras arrependidas do centurião são também nossas, porque refletem também a nossa dor e o nosso desespero quando, mãos cheias de sangue, tomamos consciência do grande crime que acabamos de cometer: Ele era verdadeiramente o Filho de Deus… e O matamos! Infelizes de nós!

Quinta-Feira

Chove. Preparamo-nos para a celebração da Ceia do Senhor, logo mais à noite. Não sei se chovia naquela Quinta-Feira de quase 2000 anos atrás; acho até que não. Mas chuva combina com Quinta-Feira Santa, com Cenáculo e Ceia, com Getsêmani e Traição.

Foi uma noite como esta, de quinta-feira e de lua cheia.. Nosso Senhor desejou ardentemente celebrar a Páscoa com os Seus discípulos. E anunciou que um entre eles O iria trair. Como é possível, Senhor, que alguém possua tanta malícia a ponto de Te entregar nas mãos dos Teus inimigos? Como é possível, Senhor, que um dos Teus amigos seja capaz de vender-Te por tão pouco…?

E é olhando pra mim que eu percebo, envergonhado, como tal é possível. Mais que possível: é real. É na minha própria carne que eu percebo este Mysterium Iniquitatis, esta vergonha enorme, esta malícia descomunal! Como Judas, eu também traio a Nosso Senhor.

Que digo…? Mais que Judas! A traição do apóstolo foi uma única vez; quanto a mim, são incontáveis as vezes que decepcionei a Cristo. O preço de Judas foi trinta moedas: quantas vezes não traí a Nosso Senhor por muito menos. Quantas vezes não O traí por puro prazer…! Infeliz de mim. O Getsêmani é aqui. Aqui, Nosso Senhor sofre, por meus pecados; aqui, eu O traio de novo e de novo.

* * *

Termina a celebração, o Sacrário está vazio, o altar está desnudo. Nosso Senhor foi-nos tirado; está preso, e é por culpa nossa. Sofre, e somos nós que O fazemos sofrer.

E impressiona e espanta o tipo de pessoas pelas quais Nosso Senhor quis sofrer e morrer. Pessoas más, mesquinhas, egoístas; pessoas covardes, amargas, rancorosas. Pecadores, como eu. Como pode um Deus sofrer e morrer por alguém como eu? Eu, que O ofendo tanto e tanto…! Eu quem, por vergonhoso que seja confessar, parece que cada Quaresma encontra igual ou pior.

É por mim que sofre o Filho de Deus nesta noite terrível. É por amor a mim – apesar dos meus muitos pecados – que Ele Se deixa prender e maltratar. É por mim que Ele sofre e morre; e eu não posso fazer nada para Lhe retribuir? E eu não posso nem mesmo parar de ofendê-Lo…?

Nosso Senhor foi-nos tirado! É por nossa culpa, por nossos pecados, por nossas faltas, por nossa malícia, por nossa maldade. Por nós Ele foi entregue. Por nós, Ele está preso. Por nós, Ele está prestes a sofrer e morrer.

Carnaval IV

E chegamos à segunda-feira de carnaval com o problema posto, mas sem no entanto delinear ainda nenhuma solução. É fato que a alegria, em si, é uma coisa boa, como tivemos a oportunidade de discutir aqui. Também mostramos como é perfeitamente razoável que os dias anteriores à Quaresma sejam tratados com uma alegria e uma animação diferentes das habituais. Estes dois pilares são, digamos assim, os alicerces sobre os quais intentamos construir a nossa defesa do carnaval. No entanto, em desabono a estes dias, resta o fato – incontestável – de que esta festa conta com terríveis elementos de promiscuidade, de pecado, de ofensas a Deus. Por maiores e mais justos que sejam os argumentos favoráveis à diversão pré-quaresmal, um pecado é um pecado (ou, ainda, uma situação de pecado é uma situação de pecado), a favor do(a) qual não cabe nenhuma defesa e nem nenhuma tolerância. Então, o que fazer?

Não imagino que seja possível propôr soluções universalmente válidas para o problema. A tentação mais imediata de dizer “fuja do carnaval” esbarra na anti-naturalidade de se viver a Quaresma antes que a Igreja, de facto, estabeleça o tempo de jejum e penitência com o qual nos preparamos para a Páscoa do Senhor. Por outro lado, a outra tentação – de dizer “brinque carnaval!” – não parece ser aceitável por conta dos riscos à alma que este conselho via de regra comporta. Entre a cruz e a espada, assim, o que se pode fazer?

Alguém comentou aqui sobre os blocos líricos na volta do Recife Antigo (e me permito cantarolar as marchinhas pelas quais já confessei, anteriormente, o meu gosto: é lindo ver / o dia amanhecer / com violões e pastorinhas mil. / Dizendo, e bem, / que o Recife tem / o Carnaval melhor do meu Brasil!). E, com isso, eu volto a dizer algo que já delineei antes: eu sou um privilegiado por morar em Recife. Aqui, existem as marchinhas antigas que não guardam semelhança alguma com a promiscuidade que, hoje em dia, parece ser apanágio do Império de Momo. Aqui, nós temos frevo.

Comentava por esses dias com alguém sobre isso. Dizia que uma das coisas mais fantásticas no carnaval da minha cidade era o fato de não termos sucessos musicais temporários e descartáveis. “Qual o hit do carnaval 2011 em Olinda?” É fácil responder. É “Vassourinhas”, como foi no ano passado, no anterior e desde a primeira vez que eu subi as ladeiras da cidade antiga. Em um certo sentido, nós podemos dizer que temos um carnaval tradicional. Os frevos que escutamos hoje são os mesmos que os nossos pais escutaram. Minha mãe sabe cantar todas as músicas de carnaval que ainda hoje se escutam durante os dias de folia. E certamente ela não sabe cantar o “Rebolation” ou a música da Mulher Maravilha.

E, em uma situação dessas, é relativamente fácil encontrar uma solução para o carnaval. É relativamente fácil seguir o Bloco da Saudade pelas ruas do Recife Antigo sem que isso caracterize uma situação de pecado muito maior do que, sei lá, assistir a um musical antigo em um dos teatros da cidade. Se existe algo que pode salvar o carnaval, é este – chamemo-lo assim – “retorno às raízes”. Sei que (repito-me) não dá para generalizar isso para todas as festas de carnaval do Brasil afora; mas, aceitando o risco de incorrer em algum provincialismo pueril, este modelo de festas de rua parece-me absolutamente aceitável. Parece-me, aliás, o mais aceitável deles.

E a melhor maneira de brincar o carnaval é, portanto, em Recife? Sim e não. Sim, porque “Recife tem / o carnaval melhor do meu Brasil”, como cantamos durante esses dias. Não, porque o carnaval de Olinda e Recife infelizmente tem, como em toda parte, a sua quota de promiscuidade e de paganismo. Acho perfeitamente aceitável seguir um bloco de frevo antigo pelas ruas antigas da cidade. Em contrapartida, há lugares aqui em Recife e em Olinda nos quais eu, em consciência, não ouso estar.

E, também, não dá simplesmente para chamar todo mundo pra Recife (se bem que alguns amigos queridos eu bem gostaria de encontrar por aqui, nem que fosse somente durante as festas carnavalescas!). Como eu disse anteriormente, não pretendo aqui propôr soluções aplicáveis a todo mundo e a todos os lugares – eu nem teria conhecimento de causa para fazer isso. Por tudo o que falamos antes, a alegria carnavalesca é recomendável ao cristão; mas esta alegria precisa (óbvio) ser lícita, ser saudável. Por conta das tristes proporções que o Carnaval tomou, não sei (infelizmente) se isso é sempre possível. Talvez em alguns lugares, por conta simplesmente de falta de opções razoáveis, a fuga seja a única opção que reste a quem mantém firme o santo propósito de não ofender a Deus. Mas, quem puder cantar uma marchinha de carnaval antiga – pensando em mim! -, que o faça. Quem puder reunir alguns bons amigos para conversar, rir e cantar, que o faça. Quem puder divertir-se na santa alegria dos filhos de Deus, que o faça. Que cada um possa despedir-se do tempo comum da maneira que melhor puder. Depois de amanhã já é Quarta-Feira de Cinzas; estas são as últimas horas das quais dispomos para rir e brincar antes da Quaresma. Que brinquemos! É uma pena que esta alegria – repito, tão saudável! – seja obscurecida pela loucura do Carnaval. Não a deixemos morrer. Que tenhamos todos uma santa Quaresma. E, também – por contraditório que isso possa parecer! -, um santo carnaval.

Carnaval III

É claro que existem incontestáveis imoralidades no carnaval como hoje ele é celebrado. Negá-lo, é negar a os fatos tais e quais eles se apresentam – e este é um dos outros mitos do carnaval que precisa ser derrubado. Dizer simpliciter que o carnaval é uma festa neutra é falsear a realidade.

Não estou aqui simplesmente para fazer uma apologia do carnaval, é lógico. O carnaval não tem defesa. As escolas de samba do Rio de Janeiro parecem ter como conditio sine quae non a existência de mulheres (quando muito!) seminuas, e os grandes blocos de Salvador são uma festa onde a promiscuidade encontra cidadania. Não dá para defender este tipo de evento, naturalmente. Não é este o objetivo desta série de artigos.

Eu tive a sorte de nascer sob o império do frevo recife-olindense. É uma dança que não tem lá muitos chamativos sensuais: dança-se sozinho, exige uma boa técnica, as vestimentas e os passos da dança não pretendem possuir apelo sexual. Este é o carnaval que eu conheço, o carnaval da minha infância, das marchinhas antigas das quais tanto gosto! Naturalmente, não posso dizer que as ladeiras de Olinda são o último recôndito de moralidade durante os dias em que Momo impera. Mas (parece-me!) é muito mais fácil brincar carnaval de uma maneira lícita quando se escuta frevo do que quando se escuta samba ou axé.

E as pessoas que desejam simplesmente brincar o carnaval de uma maneira saudável encontram-se, durante os dias de folia, sem opções. Por um lado, existem as vergonhosas festas profanas das quais não se pode simplesmente participar (uma vez que evitar as ocasiões de pecado é um mandamento tão forte quanto o de evitar o pecado em si). Por outro lado, existe (as mais das vezes) uma completa vacuidade de opções legítimas para se divertir durante os dias de carnaval. É evidente que não me refiro aos retiros ou acampamentos: estes, existem em considerável número, mas me refiro àquelas opções que respeitam o direito do cristão de se divertir nos dias que antecedem o roxo quaresmal. São poucas estas possibilidades. Feliz de quem pode dispôr delas.

Se é importante resgatar o carnaval, é fundamental que isso seja feito por meio da substituição das festas profanas que conhecemos por outras festas, mais razoáveis, menos pecaminosas, mais adequadas aos filhos de Deus que só querem aproveitar os últimos dias antes da Quaresma. Hoje em dia, o dilema parece ser entre entregar-se à promiscuidade dos dias de Momo ou sacrificar a alegria carnavalesca. Não parece haver meio termo. E, durante estes dias de folia, é exatamente isso uma das coisas que mais faz falta.

Carnaval I

Hoje começa o carnaval, festa pagã onde as pessoas cometem os maiores excessos e imoralidades. A frase provavelmente já foi repetida incontáveis vezes, sem que no entanto pareça surtir qualquer efeito: todo ano são os mesmos dias de folia, e todo ano é a mesma coisa: embriaguez e violência, adultério e fornicação, acidentes e problemas de saúde. Todo ano, o saldo do carnaval é extremamente negativo e, no entanto, todo ano ele se repete! Como é possível tão estranho fenômeno? Como é possível que algo seja indiscutivelmente uma desgraça e, mesmo assim, todo ano atraia multidões para sofrer as mesmas tristes conseqüências que estamos já tão cansados de saber?

Há toda uma mitologia em relação ao carnaval que precisa ser desfeita. O primeiro (e, a meu ver, mais grave) aspecto que precisa ser desmentido é o seguinte: não é verdade que o carnaval seja uma completa desgraça. É óbvio que não é verdade; se o carnaval fosse tão ruim quanto ouvimos dizer, as pessoas simplesmente não iriam às ruas para brincá-lo. E, como canta um frevo daqui de Olinda, “se o povo não saísse / não havia carnaval” – incontestável verdade. Sem foliões não haveria festa; e a primeira coisa que se precisa ter em mente ao se analisar o carnaval é justamente que ele é uma coisa boa.

Claro que ele é uma coisa boa. O pecado é uma coisa boa porque, se não fosse, ninguém pecaria. Naturalmente, as expressões estão aqui empregadas em sentido relativo: “boa”, digo, por ser aprazível. Praticamente todo pecado é a opção por um bem menor em detrimento de um bem maior: assim, um adúltero põe o prazer venéreo acima da fidelidade conjugal, um ladrão põe o seu desejo por um bem qualquer acima do direito de posse do legítimo detentor daquele bem, etc. Seriam raríssimos (e dotados de uma malícia que eu diria patológica) os pecados nos quais o pecador que os cometesse não identificasse o ato realizado com um bem de nenhuma espécie. Peca-se, via de regra, porque se coloca um bem menor acima de um maior, um bem relativo acima do Bem Absoluto que é Deus.

Por que não dão certo as estratégias de se acabar com as imoralidades carnavalescas por meio da identificação pura e simples do carnaval com uma coisa maligna da qual se deva fugir como o diabo foge da cruz? Oras, simplesmente porque isso é anti-natural. As pessoas sabem, intuitivamente, que a alegria é uma coisa boa. Ninguém procura fazer com que um adúltero abandone a sua vida de adultério propondo-lhe o celibato, e ninguém procura fazer com que um ladrão abandone os seus desejos pelos bens alheios propondo-lhe uma vida de pobreza franciscana. Por que motivo, então, deveríamos propôr como única alternativa aos que brincam carnaval o isolamento, a fuga de toda festa, a antecipação da Quarta-Feira de Cinzas e alguns dias de intensas oração e penitência como aqueles aos quais os cristãos são chamados depois dos dias do reinado de Momo?

É óbvio que eu não condeno a mortificação durante o carnaval, como é óbvio que eu também não condeno o celibato ou a pobreza franciscana. Sei, no entanto, que nem o celibato nem a pobreza são para todos indistintamente; por qual motivo, então, o sacrifício completo da alegria nos dias anteriores à Quaresma o seria? Este radicalismo me parece absurdo e fadado ao fracasso. Um excesso oposto também é um excesso e, ainda que possa ser virtuoso, não tem (e não pode ter) aplicação ordinária justamente por ser excesso. Demonizar completamente a idéia de que é possível alegrar-se e divertir-se nos dias do carnaval é a melhor maneira de afastar as pessoas da Igreja e perdê-las para as imoralidades carnavalescas.

Durante os próximos dias de carnaval, irei publicar outros textos correlatos.

Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente

Já passa da meia noite, mas escrevo agora porque só agora cheguei em casa. Para mim, ainda é festa da Imaculada; e Deus, que não vê o tempo, haverá de considerar estas linhas como se fossem escritas no dia d’Ela. Quando eu as queria escrever; para homenagear também eu Aquela que é Tota Pulchra. Aquela sobre a Qual nunca se falou e nem nunca se falará o suficiente, porque as Suas glórias e virtudes são tantas quanto as estrelas do Céu – tot tibi sunt dotes, Virgo, quot sidera caelo, como rezamos na Coroinha.

Todas as graças reunidas em uma só criatura! Assim é a Virgem Mãe de Deus. Assim é Nossa Senhora Imaculada. E quem poderá mensurar o poder de Deus? Quem ousará impôr os limites às graças que Ele, em Sua magnificência, é capaz de conceder às obras de Suas mãos? As estrelas do Céu são uma comparação ínfima para as glórias da Virgem Santíssima. Ela foi coroada com muito mais virtudes do que o Céu foi coroado de estrelas.

Em particular, hoje nós celebramos a Virgem Imaculada – e esta palavra tem um especial significado para nós que, marcados pelo Pecado Original, lutamos diariamente contra as suas terríveis conseqüências em nossa própria carne. Nós somos criaturas profundamente feridas pela triste herança de nossos primeiros pais. A nossa natureza rebela-se contra a nossa vontade, e a nossa inteligência recusa-se a aceitar esta contraditória situação como sendo o modelo estabelecido por Deus para o gênero humano. Temos em nós a sede do Infinito mas, no entanto, esbarramos o tempo inteiro em nossas próprias imperfeições. A festa de hoje é o bálsamo que vem aliviar as nossas feridas. É a prova de que o gênero humano não ficou completamente entregue à maldição da desobediência primeva. A Virgem Santíssima é Imaculada e, n’Ela, nós enxergamos aquilo que nós deveríamos ser. Aquilo que desejamos ser. Aquilo que – mantidas as devidas proporções – nós um dia seremos, com a graça de Deus.

Porque Aquele que foi poderoso o bastante a ponto de preservar Maria Santíssima das nefastas conseqüências do Pecado, é também capaz de delas nos livrar. Pois não foi apenas pela Virgem Santíssima que o Verbo Se fez carne – afinal, o Filho de Maria Imaculada, Nosso Senhor Jesus Cristo, é precisamente Aquele que tira os pecados do mundo. E, se as dores deste vale de Lágrimas onde fomos degredados forem fortes demais para nós, olhemos para a Imaculada Conceição: luz que nos ajuda a perseverar e – ousemos dizer – penhor da nossa salvação.

Porque não foi somente sobre o Deus três vezes Santo que o Pecado não pôde lançar as suas garras. Também a uma criatura ele foi impedido de macular. Os limites que Deus impôs às consequências devastadoras do Pecado não se restringem ao Seu Divino Filho: incluem também a Sua Mãe Santíssima, incluem também a Virgem Imaculada que hoje celebramos, e que temos por Mãe e intercessora! Sim, Deus é mais forte do que o Pecado, e Ele quer salvar os seres humanos e, sim, Ele pode fazê-lo. Eis a prova viva, eis a gloriosa Mãe de Deus sobre a Qual o pecado jamais lançou a mais mínima sombra. Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente: eis Aquela que, sem ser Deus, mas com a Graça d’Ele, foi e é sempre livre de todo o pecado.

Recomendemo-nos à Virgem Imaculada, reconhecendo-nos pecadores. Recomendemo-nos à Sua poderosa intercessão, confiando na misericórdia infinita d’Aquele que soube fazer maravilhas na Virgem Santíssima. Que Ela nos ajude a, um dia, vivermos com Ela a Bem-Aventurança eterna da presença de Deus.

Os maus frutos dos abusos litúrgicos

Alguns comentários surgidos no meu post sobre a escandalosa “missa pré-balada” são, por si sós, exemplos incontestáveis da miséria religiosa na qual se encontram os católicos brasileiros. Dão testemunho claro do mal que causam estas “celebrações” totalmente destoantes do senso religioso mais rudimentar – coisa que, como se pode infelizmente constatar, falta em muitos do que aqui vieram se dizendo católicos.

Um erro concreto é uma coisa terrível. Porém, muito mais terrível é a defesa pública do erro. Na maioria das vezes, há muito mais malícia em se defender um pecado do que em cometê-lo. Há mais malícia nas “Católicas pelo Direito de Decidir” do que numa jovem que, pressionada pelo namorado, realiza um aborto. Há mais malícia em um site gayzista como o “Diversidade Católica” do que em um sujeito que, sob a influência de más companhias, vai a uma festa e tem relações sodomitas das quais depois se arrepende. Há mais malícia em se defender abertamente a destruição da Liturgia Católica do que em uma missa mal-celebrada.

Porque um pecado concreto está limitado pelas contingências objetivas nas quais ele se insere. É geralmente feito às escuras, porque se tem consciência de que se trata de uma coisa vergonhosa. Pelo fato da consciência desaprovar-lhe, dele é possível arrepender-se mais facilmente. Há, geralmente, as circunstâncias exteriores que lhe são propícias e lhe dão incontestável incentivo para que ocorra. Não obstante, é mesmo assim uma coisa terrível e uma ofensa infinita e ingrata ao Deus Onipotente! Ora, quão mais terrível então não será defender o pecado às claras, deliberando friamente sobre a situação fora da qual se está, deformando assim a própria consciência e a dos outros? Enquanto cometer um pecado leva para o Inferno aquele que o comete, defender publicamente o pecado arrasta para o Inferno multidões de almas.

Volto à escandalosa missa ocorrida em Maringá (cujo vídeo foi posteriormente removido pelo usuário). O abuso litúrgico é grave. O fato de ser premeditado (já que a referida missa já havia ocorrido outras vezes e já tinha datas previstas para tornar a acontecer) é ainda mais grave. No entanto, o que é mais desolador em tudo isso é ver pessoas defendendo a ofensa a Deus, ou indiferentes a ela. “Não vi tanto escândalo assim neste filme”, “não acho que esse seja um caso grave”, “não vi nada de errado”… estes foram os comentários de alguns (auto-intitulados) católicos que por aqui passaram.

Vamos à aula de catecismo para crianças (literalmente). Vamos ao “Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã” (Vozes, 145ª Edição, Petrópolis, 2005), que as crianças estudam – ou melhor, deveriam estudar – antes de fazer a Primeira Comunhão. Questão nº 139: “Que é a missa”? Resposta: “A missa é o sacrifício incruento do corpo e do sangue de Jesus Cristo, oferecido sobre os nossos altares, debaixo das aparências de pão e de vinho, em memória do sacrifício da cruz”. E é bastante óbvio para qualquer pessoa normal que é (para dizer o mínimo) desrespeitoso colocar um globo de luz e gelo seco numa cerimônia que torna presente o Calvário.

Vamos à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Vamos à Redemptionis Sacramentum, “sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia”. As palavras são claras: “não se pode calar ante aos abusos, inclusive gravíssimos, contra a natureza da Liturgia e dos sacramentos” (RS 4). Há, no entanto, “católicos” por aqui dizendo que não há problema algum nos abusos litúrgicos, que não devemos nos preocupar com isso, e coisas similares.

Adiante, na mesma instrução (cuja leitura, aliás, é enfaticamente recomendada): “Coerentemente com o que prometeram no rito da sagrada Ordenação e cada ano renovam dentro da Missa Crismal, os presbíteros presidam, «com piedade e fidelidade, a celebração dos mistérios de Cristo, especialmente o Sacrifício da Eucaristia e o sacramento da reconciliação». Não esvaziem o próprio ministério de seu significado profundo, deformando de maneira arbitrária a celebração litúrgica, seja com mudanças, com mutilações ou com acréscimos” (RS 31). A Igreja, portanto, proíbe aos padres “mudanças”, “mutilações” ou “acréscimos” na celebração litúrgica. Coisas que, infeliz e evidentemente, abundam na celebração ocorrida em Maringá. A Santa Missa não é propriedade privada de ninguém, e sim de toda a Igreja. Há normas bem detalhadas para a sua correcta celebração que devem ser obedecidas. Assim é a Igreja Católica. O resto, é achismo de quem se diz católico mas não se porta como tal.

E os frutos podres destes abusos litúrgicos estão mais do que evidentes na própria defesa que estes “católicos” fazem deles. Total ignorância dos rudimentos da Fé Católica, confusão doutrinária, completa ausência de senso litúrgico e de sentire cum Ecclesia. São estes os “católicos” (de)formados por esta escola de negação do catolicismo. Até quando iremos contemplar amargamente este processo de destruição da Fé nas almas dos filhos amados de Deus?

PT, votos e questões morais

Aproveitando uma discussão que está rolando aqui, gostaria de sugerir enfaticamente a leitura deste simples e didático artigo do pe. Lodi: “Posso votar no PT? – uma questão moral”. Destaco:

10. Que falta comete um cristão que vota em um candidato de um partido abortista, como o PT?

Se o cristão vota no PT consciente de tudo quanto foi dito acima, comete pecado grave, porque coopera conscientemente com um pecado grave. O Catecismo da Igreja Católica (n. 1868) ensina sobre a cooperação com o pecado de outra pessoa: O pecado é um ato pessoal. Além disso, temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando neles cooperamos: participando neles direta e voluntariamente; mandando, aconselhando, louvando ou aprovando esses pecados; não os revelando ou não os impedindo, quando a isso somos obrigados; protegendo os que fazem o mal.” Ora, quem vota no PT, de fato aprova, ou seja, contribui com seu voto para que possa ser praticado o que constitui um pecado grave.

E não venham rasgar as vestes dizendo que a Igreja não deve se meter em política! Gastem cinco minutos do seu tempo buscando entender o que significa isso antes de lançarem pedras. Sobre este assunto, aliás, recomendo também a leitura deste artigo do Carlos Ramalhete, escrito há muitos anos mas perfeitamente atual, disponível provisoriamente no link indicado. Destaco:

O essencial é que não se use nem o espaço físico nem o nome da Igreja para apoiar Fulano em detrimento de Beltrano. O padre tampouco pode envolver-se em apoio a candidaturas.

A não ser que Beltrano seja um candidato pró-aborto, pró-sodomia, etc. (caso em que é permissível fazer campanha *contra* Beltrano, mas não *a favor*  de Fulano dentro do ambiente eclesial), a comunidade eclesial deve manter-se igualmente aberta para todos os candidatos.

Os bons exemplos que não viram notícia

Não sei exatamente qual é a origem desta carta de um sacerdote missionário em Angola – diz a notícia que foi enviada ao The New York Times (não diz a data) que, até o presente momento, não a respondeu. Merece, no entanto, ampla divulgação, porque mostra uma face do sacerdócio que não ganha os louvores da mídia, o reconhecimento da opinião popular – não vira notícia.

Não é só na vida sacerdotal – é em todos os lugares. Os acertos não são reconhecidos da mesma maneira que os erros são condenados. Quase ninguém agradece com a mesma rapidez com que lança pedras. Nos estudos, somos cobrados mais por nossas faltas do que pelas inúmeras presenças; mais pelas poucas reprovações do que por todas as aprovações. No trabalho, os erros que cometemos implicam em reclamações e advertências; os acertos diários e as coisas que sempre fazemos bem não recebem agradecimentos na mesma medida. A vida é assim.

E, em um certo sentido, talvez tenha que ser assim mesmo. Espera-se do estudante que estude, espera-se do profissional que trabalhe, espera-se do sacerdote que seja santo e que santifique. Quando as coisas fogem do que esperamos que elas sejam, é até natural que venham manifestações: o estudo irresponsável, o trabalho mal-feito, o pecado do sacerdote… estas coisas revelam falhas, revelam uma inadequação da realidade ao ideal, ao modelo que se tem e que se almeja. É natural que seja assim: isso nos estimula a nos aperfeiçoarmos cada vez mais. A fazermos cada vez mais melhor.

No entanto, somos humanos, e erramos, e temos necessidade não somente de tapas e reprimendas – mas também de reconhecimentos. Reconhecer o êxito nos estudos, o trabalho – ainda que ordinário – bem feito, ou a resposta generosa à vocação sacerdotal, o testemunho de amor a Jesus Cristo dado por tantas e tantas almas sinceras marcadas indelevelmente pelo Sacramento da Ordem.

E estas existem. Graças a Deus, existem, e existem muitas – leiam o texto acima. E é uma questão de justiça reconhecer o bem que elas fazem, muitas vezes “na surdina”, longe dos olhares dos homens. É necessário contrapôr, ao mau testemunho de uns poucos padres, o exemplo de tantos outros que se esforçam por levar uma vida em conformidade com as promessas que fizeram no dia de sua ordenação. Como eu dizia acima, em um certo sentido, é natural que os erros ganhem mais visibilidade do que os acertos; mas não é natural nem é justo que as coisas sejam julgadas com lentes de aumento nos erros e vista grossa feita aos acertos – que, aliás, são em número incomparavelmente maior.

Sim, o missionário está correto: o bem não vira notícia. Nunca virou. E, aliás, nem é bom que vire – porque o Pai, que está nos Céus e vê o que está oculto, saberá com certeza recompensar a todo bem que foi feito nesta terra. Mas, às vezes, é importante darmos a conhecer o bom exemplo de alguns, não por vaidade, não para buscar louvores do mundo, mas simplesmente por uma questão de Justiça. A Igreja é Santa, e contém em Seu seio pecadores – mas contém também inumeráveis exemplos de santidade, e em uma profusão muito maior do que os que provocam escândalos. É justo que isto seja dito às claras. Logicamente, não é uma tentativa de se minimizar a gravidade dos pecados cometidos por quem deveria ser sempre um “outro Cristo”. Mas é para mostrar que Cristo está na Igreja, também em seres humanos falhos. Para mostrar que não há somente falhas. E – é necessário dizer – quem não enxerga isso não pode se dizer jamais comprometido com a Verdade.

P.S.: Recebi por email a carta original em espanhol, e a encontrei na internet. Foi escrita pelo pe. Martín Lasarte.