A intolerância que não se vê

A redação do ENEM no último final de semana versou sobre intolerância religiosa e, diante do tema, eu tenho impressões contraditórias. Por um lado parece claro que a escolha gravita em torno de um enorme lugar-comum: as perseguições sofridas pelas religiões de matiz africana, e fazer tal opção argumentativa favorece — quase exige — a crítica à dita intolerância evangélica. Seguir por esse caminho é fazer a coisa mais fácil (e mais contraditória) do mundo: jogar pedra no Cristianismo para defender a tolerância.

Por outro lado, no entanto, o tema torna possível falar — e com bastante propriedade — sobre a intolerância que vitima os religiosos no debate público brasileiro, intolerância esta que (até por uma questão demográfica) tem claramente os cristãos por alvo principal. O problema aqui é um só: esta linha argumentativa destoa bastante do senso comum e, por ser assim tão destoante, eu tenho sérias dúvidas sobre a capacidade de a compreenderem os responsáveis pelas correções destas provas…

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Iniciemos a nossa argumentação com a seguinte assertiva: nem toda intolerância se manifesta em atos de agressão física. Poderíamos, sem dúvidas, citar os diversos casos de vandalismo contra igrejas que cotidianamente aparecem em nossos noticiários (p. ex. em João Pessoa, em Belo Horizonte, no Ceará e em Passo Fundo — só na primeira página do Google, todos os casos deste ano); mas isto é somente o ponto mais superficial, epidérmico do problema. A intolerância física é mais brutal, mais primitiva e, por isso mesmo, mais facilmente visível e condenável de forma mais incontroversa. A pior intolerância, aqui, é a que se reveste de ares de intelectualidade, é a que se apresenta como pensamento evoluído e padrão de comportamento socialmente exigível. A pior intolerância é a que enxerga com desconfiança e desprezo a manifestação de opiniões públicas feita por religiosos pelo fato de eles serem religiosos.

Esta “intolerância cívica” fecha aos religiosos o acesso aos espaços públicos de decisão. Transforma os que têm Fé em uma espécie de cidadãos de segunda categoria, cujas opiniões não podem ser levadas em consideração no debate público — e isso é o mais absurdo, é o mais injusto, é o mais intolerante que se pode conceber. Você é contra o aborto? O Estado é Laico, nem todo mundo é católico e as suas crenças não podem ser impostas para toda a população. É contra o “casamento” gay — ou a ideologia de gênero? Você é um fanático religioso, o Estado é Laico e as suas convicções não podem ser usadas para definir regras de conduta aplicáveis a todos os cidadãos. É a favor da isenção tributária das igrejas? O Estado é Laico e o conjunto total da população não pode sustentar a prática da crença de uma parcela dos cidadãos. É favorável à presença de símbolos religiosos em repartições públicas? Você é um intolerante, o Estado é Laico e o espaço público não se pode revestir de símbolo de religião alguma.

A cantilena, monótona, estende-se para alcançar quaisquer aspectos da vida cívica onde haja o mais mínimo desacordo entre a vontade dos anticlericais (que detêm o discurso vencedor da opinião pública) e os valores do Cristianismo. O fato de estes valores perfazerem — ainda — a sensibilidade moral da maioria da população brasileira é um detalhe que só torna as coisas mais trágicas: a rigor, ainda que fossem valores minoritários, eles não poderiam ser liminarmente excluídos do debate público sob a pecha do “ah, isso é crença religiosa”. Primeiro porque eles no geral não são mera “crença religiosa” — a Imaculada Conceição da Santíssima Virgem ou as Processões Divinas são crenças religiosas! Já a definição dos comportamentos que devem ser socialmente aceitos ou juridicamente coibidos são juízos prudenciais sobre temas cívicos, com ampla fundamentação na razão natural que está ao alcance de todos os homens independente do credo sob o qual militem. Segundo porque o eventual fundamento dos valores morais não pode ser usado para desqualificar a priori as posições alheias — o nome disso é preconceito e intolerância. O que deve fazer uma determinada posição política ser socialmente aceitável ou inaceitável é a sua adequabilidade para o fim a que ela se propõe — a razoável ordenação da vida em comum –, e não a sua origem metafísica. Todas essas coisas são por demais evidentes; mas a intolerância religiosa que grassa nos nossos meios intelectualizados lança um véu de ignorância mesmo sobre essas platitudes — e ninguém se preocupa com isso, e todos continuam torcendo o nariz para a “bancada da Bíblia” ou a “ideologia tefepista” sem que quase nunca precisem se dar ao incômodo trabalho de entrar no mérito das posições que elas defendem.

A intolerância que deixa rastros de dor e de sangue é no geral fácil de ser combatida, porque no geral não aparece ninguém para a defender. Ninguém defende que judeus sejam enviados para campos de concentração ou muçulmanos para Guantánamo; ninguém defende que igrejas sejam pichadas ou mães de santo sejam expulsas de suas casas por traficantes evangélicos (por inacreditável que seja essa notícia). No entanto, a maior parte das pessoas medianamente esclarecidas defende que os evangélicos não possam defender os seus valores no espaço público ou que as leis civis não atendam aos anseios dos católicos — e isso é preocupante, uma vez que tanto evangélicos quanto católicos são cidadãos iguais a quaisquer outros, cujos direitos políticos não podem ser cerceados em função de sua opção religiosa. Esta intolerância invisível pode ser menos chocante, mas não é menos injusta nem menos daninha — e decerto não é menos digna de ser combatida. O preconceito contra o Cristianismo, festejado nos meios de comunicação em massa e virtualmente onipresente entre os formadores de opinião, é talvez o último preconceito que se aceita na moderna sociedade dita esclarecida. Não deixa contudo de ser uma forma insidiosa e inaceitável de intolerância religiosa, que todos os homens de boa vontade devem se esforçar por abolir.

Isto está além das cortes superiores

O revmo. padre Lodi, do Pró-Vida de Anápolis, foi recentemente condenado pelo Superior Tribunal de Justiça ao pagamento de uma indenização no valor de R$ 60.000,00. Não encontrei ainda o acórdão do REsp 1.467.888 (acho que o STJ ainda não o publicou), pelo qual tenho um particular interesse; no entanto, as notícias que estão sendo veiculadas — “Padre é condenado a pagar danos morais por impedir aborto legal” — possuem logo no título dois graves equívocos: nem o padre impediu nada, nem o aborto era legal!

Quem impediu o aborto foi o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. O padre, ao contrário do que a manchete dá a entender, não entrou no hospital ameaçando os médicos nem manteve a gestante em cárcere privado; ele ingressou com um habeas corpus que foi apreciado pelo Poder Judiciário e ao qual o desembargador Aluísio Ataídes de Sousa deu provimento. Por força de norma constitucional basilar, o Judiciário não pode se furtar a apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, 5º, XXXV). A atuação do padre — e, acrescentamos, do Tribunal — manteve-se, portanto, estritamente dentro legalidade, não se compreendendo como ele possa ser, por isso, agora punido.

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Depois, o aborto não foi legal. Não era legal à época (em 2005) e nem é legal agora em 2016. O julgamento da ADPF 54 autorizou o aborto eugênico não de qualquer criança deficiente, mas sim das crianças portadoras de uma deficiência específica: a anencefalia. O acórdão é claro: o que se permite é a «interrupção da gravidez de feto anencéfalo», e não de feto “portador de doença incompatível com a vida extra-uterina”. Por se tratar de norma que autoriza a violação de direito fundamental — o direito à vida do nascituro — não é admissível a interpretação analógica. Ora, a criança em favor da qual o pe. Lodi impetrou o HC em 2005 era portadora de síndrome de Body Stalk, não de anencefalia. À luz da Constituição Federal, do Pacto de San José da Costa Rica e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, impossível estender a (aliás já teratológica) interpretação da ADPF em prejuízo da criança por nascer.

Ainda considerando concesso non dato que a excludente criada pelo STF fosse aplicável ao caso, seria evidente não se tratar de aplicação direta da norma (afinal, as deficiências tratadas em um e em outro caso são distintas!) e, portanto, a divergência na interpretação seria, no mínimo, legítima — o que por si só bastaria para descaracterizar o abuso de direito. Se há divergência interpretativa legítima então a boa-fé é de se presumir; presumindo-se a boa-fé, não há que se falar em abuso de direito.

A decisão do STJ, assim, é toda de se lamentar. Mas como Deus não permite um mal de que não possa tirar um bem ainda maior, essa triste história nos proporcionou duas pequenas pérolas — que em certo sentido pertencem ao passado, é verdade, mas cuja lembrança hoje é um refrigério a nos animar.

Primeiro, o desfecho do caso. Tristíssimo — a mãe, que já havia iniciado o abortamento quando chegou a liminar do TJ-GO, voltou para casa e agonizou em dores de parto por mais de uma semana até que o seu organismo envenenado expulsasse prematuramente a sua filha que, deficiente, sobreviveu pouco menos de duas horas –, mas que tem um detalhe importante. É o próprio padre Lodi quem no-lo recorda: «[d]e qualquer forma, ela [a criança] recebeu um nome [Geovana Gomes Leneu] e foi sepultada, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar». E dar um nome e uma sepultura a um ser humano precocemente falecido é coisa bastante digna, que resplandece com vigor no meio das trevas dessa história dolorosa.

Segundo, um HC julgado pelo próprio STJ em 2004 (HC 32159/RJ). Na ocasião, a 5ª turma concedeu um habeas corpus em favor de uma criança anencéfala — eram tempos que não haviam sido ainda maculados pela barbárie da ADPF 54! Naquele seu relatório, a ministra Laurita Vaz reproduziu esta passagem preciosa, preciosíssima, da lavra do MPF:

Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.

Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.

Não são assim, “velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.

Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.

O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.

É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor, passam por certo, do pai e da mãe, mormente desta para o feto.

Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer [–] isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.

Isso, graças a Deus, está além da ciência.

Já se vão mais de dez anos! Mas estas palavras nos soam ainda atualíssimas e têm muito a nos dizer, a nós, nestes tristes anos em que o mundo é regido pelo utilitarismo mais doentio — que descarta vidas humanas como se fossem produtos defeituosos, sob a mais dolorosa indiferença da opinião pública. Hoje, como em 2004, a vida intra-uterina existe. E hoje, como então, e como sempre, ela deve ser protegida «enquanto existir possa». Isto está além da ciência e — acrescento eu — além das cortes superiores. Esta verdade é que deve ser guardada, defendida e divulgada, ainda que contra todos. Por esta causa valem quaisquer sacrifícios. É isso que nos torna merecedores de viver. É isso o que nos mantém humanos.

Pureza e fecundidade: a força da mulher

Há pelo menos três coisas a se distinguir no Dia Internacional da Mulher: a sua origem, o seu discurso oficial e o espírito com o qual ele é celebrado.

Quanto à origem, a história do incêndio, conquanto bem conhecida — em certa fábrica, no dia oito de março, as mulheres que estavam protestando por melhores condições de trabalho terminaram morrendo em um incêndio criminoso –, não é imune a controvérsias: não se sabe se há registros históricos precisos sobre este fato. De qualquer maneira, como é notório que as condições de trabalho das mulheres já foram um dia piores do que são hoje, as brumas míticas das quais emerge o Oito de Março são um assunto que costuma merecer pouca atenção. O símbolo prevalece sobre o rigor histórico, e não vale a pena insistir em investigações deste tipo.

Mais relevante é o fato, este sim inconteste, de que as celebrações de hoje derivam, todas, de movimentos revolucionários de esquerda. A aplicação da luta de classes à diferença entre os sexos é o que caracteriza todo o feminismo (e por extensão também o dia de hoje) e é também o que o desqualifica. Um século e meio depois de Marx, parece incrível que se pretenda ainda levar a sério a cosmovisão que se baseia no “nós-contra-eles”, como se a diversidade não fosse uma riqueza ou como se o extermínio de uma parcela da humanidade (sejam os patrões para o empoderamento da classe operária, sejam os homens para a glorificação feminista) tivesse algo de viável.

Em se tratando do discurso oficial a coisa fica ainda mais deplorável. A dar crédito às porta-vozes do Oito de Março, hoje poderia perfeitamente ser o dia internacional do aborto. É aqui que tudo fica mais feio e vergonhoso, e é aqui que dá vontade de combater o dia de hoje ao invés de o celebrar. Eu já devo ter dito algures que uma “feminista” não é uma mulher que luta pelos direitos de outras mulheres (digamos, para que ela não seja espancada pelo marido ou para que não seja pressionada pelo namorado a abortar o seu filho). Quem defende que a mulher possa trabalhar, votar e outras coisas afins são os seres humanos civilizados em geral. As feministas, por sua vez, naquilo que as distinguem dos seres humanos civilizados, são as propagadoras de uma pauta que não encontra eco na sociedade em geral: pauta consignada, entre outras coisas, na famigerada “Marcha das Vadias” e nos movimentos pró-aborto de todos os naipes.

Ora, aceitar esta pauta como representativa dos “direitos das mulheres” é profundamente ultrajante à imensíssima maior parte das próprias mulheres: das que sabem que o corpo feminino é um templo sagrado que se deve preservar e não um objeto de luxúria a ser desgastado no cio mais animalesco, por exemplo, e das que entendem que a dignidade feminina começa na concepção e, destarte, nem mesmo no útero materno as mulheres são descartáveis — devendo portanto ser protegidas de violências, máxime do aborto, sejam elas perpetradas por homens ou por outras mulheres. Pureza e fecundidade: estas, sim, características que a mulher verdadeira não despreza — em oposição aos arremedos revolucionários que acham que ser mulher é destruir tudo aquilo que sempre tornou as mulheres dignas de respeito e admiração no mundo.

Mas há bons motivos para não se deixar abater pelo significado do dia de hoje. Se tudo isso é oficialmente assim, contudo, na prática a teoria é outra. Fora dos círculos autorreferentes da intelectualidade esquerdista, quase ninguém associa o Dia da Mulher às histéricas mal-amadas possuídas por um espírito de misandria raivosa. Ao contrário, no dia de hoje exalta-se, no geral, precisamente aquela feminilidade da qual as inimigas do gênero humano se envergonham e tanto se esmeram por destruir. O Dia da Mulher é o dia em que as mulheres — para ficar no exemplo mais comezinho — são presenteadas com flores e chocolates; e que maneira melhor de afirmar papéis de gênero do que encher de mimos o sexo frágil, com coisas doces e belas, no dia às mulheres dedicado? A própria maneira com a qual as pessoas normais comemoram o Oito de Março é uma punhalada em todos os movimentos feministas, e faz as ossadas das companheiras falecidas chacoalharem-se convulsivamente no túmulo: tentaram criar um dia para reduzir a mulher a um macho mal-acabado, conseguiram uma data onde a feminilidade é ostensivamente exaltada.

Quanto a nós, cristãos, não nos podemos esquecer de que no princípio Deus criou o homem e a mulher, macho e fêmea, e dotou a humanidade dos seus dois gêneros como um ato positivo de sua vontade antes do Pecado Original. Isso significa, primeiro, que a feminilidade (ao lado da masculinidade) é uma riqueza e, segundo, que a convivência harmônica entre os sexos não só é possível como é também o desejo original do Criador. É por isso que devemos batalhar — não pelos gritos raivosos e cada vez mais anacrônicos das feministas aparentemente incapazes de sair do século XIX.

A Mulher por excelência é a Santíssima Virgem Maria — e que distância entre Ela e as feministas que destilam ódio, chamam-se de vadias e exigem a legalização do aborto! Que no dia de hoje as mulheres sejam cada vez mais mulheres, isto é, conformem-se cada vez mais à Santíssima Virgem que é o modelo e a plenitude de toda feminilidade. Que Ela esmague a cabeça da serpente feminista! E que as mulheres possam segui-La corajosamente, rumo à verdadeira liberdade que não se encontra senão bem distante do feminismo ideológico dos dias de hoje.

É lícito distribuir preservativos para evitar abortos?

A cooperação para o mal “é o concurso que se presta à ação má de outro, levando-o a fazer o mal na qualidade de agente principal” (Del Greco, Compêndio de Teologia Moral, n. 138). Segundo o mesmo autor, é lícita “quando intervier motivo proporcionado”; e, exemplificando, “pode-se dar vinho a um bêbado para impedir que ele blasfeme” (n. 139).

O moralista é até mais abrangente e chega mesmo a falar que se pode “sempre cooperar materialmente quando se trata de fazer evitar um mal mais grave” (id. ibid). A esta luz é legítimo — já vi o exemplo alhures — buscar persuadir alguém, que esteja disposto a matar um seu desafeto, a “apenas” feri-lo. Como o pecado é cometido por outrem e como a intervenção fê-lo, na prática, deixar de cometer um pecado mais grave, ela respeita o mandamento da caridade — que obriga a buscar o bem dos outros e se esmerar por atingi-lo. Não só é legítima como, talvez, pode ocorrer de ser moralmente exigida.

Diante destes pressupostos coloca-se a pergunta incômoda: é lícito, portanto, oferecer um contraceptivo a alguém que vai cometer uma relação sexual cujo eventual fruto está disposto a abortar? Em outras palavras: se se sabe que fulano constrangeria sua namorada a cometer um aborto caso ela engravidasse, será porventura lícito, na eventualidade de não ser possível dissuadir-lhes da fornicação em si, oferecer a camisinha para ele, ou a pílula para ela, a fim de evitar que eles cometam o mal (muito maior) do aborto? O paralelo é notável: a ação é meramente cooperativa e não comissiva, e evitar a morte de um ser humano inocente parece um “motivo proporcionado” a se levar em consideração.

Não sei se os teólogos morais já se debruçaram sobre o tema, mas penso que há certas particularidades que devem ser levadas em consideração antes de uma resposta ligeira e irrefletida.

Primeiro, a fornicação — ao contrário dos outros exemplos mais fáceis de embriagar ou bater em alguém — é pecado mortal ex toto genere suo (cf. op. cit., n. 82), i.e., não admite parvidade de matéria (não pode nunca constituir pecado venial, ao menos não pelo seu objeto); e embora o que se diga a respeito da cooperação para o mal não faça menção à gravidade do pecado com o qual se coopera, é no mínimo temerário aderir laconicamente à tese de que ela é indiferente. Ou se pode licitamente tentar convencer a matar um inocente só quem está já disposto a matar dois?

Segundo, e talvez mais importante, porque, in casu, o pecado que se instiga e aquele que se pretende evitar não estão no mesmo plano. O primeiro existe, formalmente, na medida em que o sujeito está decidido a fornicar; já o segundo não, porque a concepção de um filho não lhe é diretamente visada, e nem muito menos o eventual aborto com o qual ele teria — presumivelmente — a pretensão de se desincumbir da sua responsabilidade. É muito diferente do caso de convencer fulano a ferir o sujeito que ele pretende matar: aqui já existe o pecado do homicídio, presente no intelecto do agente, em vias de execução quase, e persuadi-lo a “apenas” dar uma surra no seu desafeto faz, assim, sem dúvidas, e propriamente, o papel de evitar um assassinato concreto.

Não é absolutamente o mesmo o caso do aborto, tanto por ele não passar de uma probabilidade cuja existência não depende do contraceptivo para ser afastada (afinal, a menina pode simplesmente não engravidar e, portanto, a questão do aborto pode não se colocar jamais) quanto porque ele não era, no momento do pecado, objeto do querer do agente (cuja vontade pecaminosa era simplesmente a de fornicar, e não de abortar — e, portanto, diferente do que ocorre no caso do homicida, aqui o pecado efetivamente cometido é exatamente aquele inicialmente desejado, sem diminuição alguma).

Mas há ainda um terceiro ponto que se deve ter em conta, e ele considera os efeitos sociais da atitude de cooperação para o mal. Porque se imagina, no caso do sujeito disposto a matar o seu desafeto, que convencê-lo a o ferir não passa de uma solução de emergência, de um caso fortuito, raro e eventual: não passa pela cabeça do moralista, suponho, a possibilidade de que o espancamento público de desafetos venha a se generalizar como a maneira natural — e socialmente aceita — de cercear os instintos assassinos do ser humano. Não se concebe que, de pecado, ferir o seu inimigo passe a ser visto como uma coisa banal e indiferente, ou mesmo positiva até, a se incentivar e a tratar com ampla naturalidade.

Ora, no caso dos contraceptivos é exatamente isso o que acontece. Não se vê a pílula como um mal menor a ser eventualmente utilizado em situações excepcionais cuja premência impede uma solução mais adequada: apresenta-se-lhe, ao contrário, como a solução ordinária e definitiva em matéria sexual que, se evita maiores males (como o aborto), fá-lo às custas da naturalização generalizada do pecado — já grave — da fornicação. Ora, se é possível sopesar pecados em se tratando de escolhas individuais, não parece contudo ser lícito institucionalizar alguns pecados nem mesmo para mitigar outros mais graves. A lógica da cooperação para o mal só faz sentido dentro dos estreitos limites em que o pecado é tratado como pecado; é uma lógica de contenção perplexa e não de exceção moral. Se se perde isso de vista e se o mal passa a ser visto com naturalidade, então talvez não se esteja mais evitando um “mal mais grave” — e, sem isso, cooperar com o pecado alheio deixa de ser lícito.

Os contraceptivos e a Zika

O grande Paulo VI, na sua conhecida encíclica Humanae Vitae, estabeleceu o seguinte ensinamento lapidar: “[é] de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). Não satisfeito, antevendo talvez as objeções que porventura lhe pudessem fazer, o Servo de Deus continua assim o seu arrazoado:

Não se podem invocar, como razões válidas, para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal menor (…). Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais [id. ibid.].

Esta encíclica não diz diretamente que a contracepção é intrinsecamente má. Quem o faz é S. João Paulo II na Veritatis Splendor (n. 80). O que são atos intrinsecamente maus? São aqueles — ainda S. João Paulo II — que são maus “sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (id. ibid.). Aliás, vale a pena a leitura dos parágrafos desta encíclica que falam sobre o tema: os nn. 79-83 e 95-97 ajudarão a conhecer com mais clareza a posição da Igreja sobre o assunto. Em suma, não é legítimo, “nem sequer por razões gravíssimas”, tornar um ato conjugal intencionalmente infecundo — independente das circunstâncias em que se encontre o agente (e.g. às voltas com um surto de uma moléstia incurável) e das intenções que ele porventura tenha (evitar que um filho nasça gravemente doente, v.g.).

[Existe, talvez, uma discussão teologicamente legítima que se pode fazer a respeito da posição católica contrária à contracepção: é a que indaga se o Magistério versa sobre todo e qualquer ato sexual, em qualquer contexto, ou se fala especificamente a respeito do ato conjugal entre esposos legitimamente casados. Pode-se encontrar aqui uma discussão a este respeito. A argumentação é pertinente porque, em se tratando da fornicação — da prática do ato sexual fora do casamento, entre solteiros — tão desgraçadamente comum nos dias de hoje, não é claro se o uso do preservativo agrava ou não o pecado (que, lembremo-nos, já é mortal). De qualquer maneira, não se discute (obviamente) se existe alguma situação em que o uso dos contraceptivos seja legítimo, mas sim se há alguma que o Magistério não abrangeu. São duas coisas completamente distintas, mas a questão tem a sua relevância prática, quando menos, para responder à acusação estapafúrdia de que a Igreja, condenando a camisinha, é responsável (v.g.) pelos altos índices de gravidez na adolescência. Tal é um completo nonsense (afinal, a Igreja condena os atos sexuais fora do Matrimônio, e não apenas “a camisinha”), contra o qual, por frustrante que seja, o baixo nível do anti-catolicismo contemporâneo obriga-nos por vezes a nos batermos.]

Coletiva do Papa aos jornalistas durante o voo de retorno do México deixou perplexos católicos e não-católicos por conta de uma resposta estranha que Sua Santidade deu a uma pergunta a respeito da Zika, do aborto e da contracepção. Ei-las, pergunta e resposta, na íntegra (grifos da RV):

(Paloma Garcia Ovejero, “Cope”)

Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angustia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?

Papa Francisco: O aborto não é um “mal menor”. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto. Sobre “mal menor”: mas, evitar a gravidez é – falemos em termos de conflito entre o quinto e o sexto Mandamento. Paulo VI, o Grande!, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas de usar anticoncepcionais par aos casos de violência. Não confundir o mal de evitar a gravidez, sozinho, com o aborto. O aborto não é um problema teológico: é um problema humano, é um problema médico. Mata-se uma pessoa para salvar uma outra – nos melhores dos casos. Ou por conforto, não? Vai contra o Juramento de Hipócrates que os médicos devem fazer. É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado. Ao invés, evitar a gravidez não é um mal absoluto: e, em certos casos, como neste, como naquele que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar. Obrigado.

Não há reparos a serem feitos no que diz respeito ao aborto, penso, uma vez que a sua condenação está bastante clara e enfática; prestemos atenção no que concerne à contracepção.

Primeiro, que evitar a gravidez não é um mal absoluto. Verdade. A própria HV citada ensina que, havendo “motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” (HV 16), é lícito “regular a natalidade”. Mas, atenção!, que isto não se pode fazer de qualquer modo: o que é lícito é “ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos” (id. ibid.). Uma epidemia de Zika é motivo suficientemente grave para espaçar o nascimento dos filhos? Sim, é. Isso significa que, em tais circunstâncias, um casal pode legitimamente recorrer aos “períodos infecundos” para não engravidar.

Segundo, a história de Paulo VI e as freiras. Aqui o negócio fica mais nebuloso; parece que ninguém conseguiu encontrar uma referência primária a este fato. O pe. Z., aliás, afirma, altissonante, que isso é uma mentira e Paulo VI jamais deu permissão alguma para que freiras usassem contraceptivos; houve um artigo, publicado no início da década de 60, onde esta hipótese era aventada, e nada mais. Há referências esparsas a coisas parecidas com isso (por exemplo, o pe. Cullinane afirma, num panfleto, que há um decreto do Santo Ofício com este teor na época de Pio XII), mas nada capaz de dirimir a questão.

Se a materialidade da história é — pra dizer o mínimo — controversa, o seu conteúdo não é mais cediço. Del Greco ensina que é lícito à mulher violentada expulsar do seu corpo o sêmen do estuprador, e que isto se deve considerar como legítima defesa; no entanto, parece que este uso “defensivo” dos anticoncepcionais não tem sido tão pacificamente aceito pelas autoridades vaticanas como dá a entender a entrevista pontifícia. Na década de 90, já sob S. João Paulo II, a Santa Sé proibiu a pílula mesmo para freiras que, missionárias em zona de guerra, corriam risco de estupro. Roma, portanto, non locuta, e esta causa não se pode pretender finita.

Terceiro, por fim, a ilação anticatólica — que, malgrado o Papa não diga com estas exatas palavras, os meios de comunicação do mundo inteiro foram praticamente unânimes em alardear — de que é lícito usar contraceptivos durante o surto de Zika para evitar o nascimento de crianças com microcefalia. Sobre isso, é preciso dizer

i) que a situação das freiras na África aparentemente não guarda semelhança alguma com a de pessoas tendo relações sexuais livres e consentidas em um país da América Latina afligido pela Zika: no primeiro caso há a violência que permite aventar a hipótese da legítima defesa e, no segundo, não;

ii) que, portanto, para que se possa discutir a possibilidade de se usar contraceptivos como no (suposto) caso de Paulo VI, é preciso que se esteja diante de uma situação que lhe seja minimamente análoga — é o que faz o National Catholic Register, ao aventar o exemplo de uma mulher que é constrangida, pelo marido doente de Zika, a ter relações sexuais com ele;

iii) que o Pe. Lombardi, comentando a entrevista, disse que o uso dos contraceptivos só poderia ser objeto de deliberação da consciência em casi di particolare emergenza e gravità — casos de particular emergência e gravidade –, o que parece ir ao encontro do que NCR publicou; por fim,

iv) que independente de tudo isso permanece integralmente válido o ensino tradicional da Igreja, contido no Magistério de — entre outros — Paulo VI e S. João Paulo II, segundo o qual o uso de contraceptivos não é legítimo nem “mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais” (HV).

Evidentemente o aborto é um pecado mais grave que a contracepção; claro que peca mais quem tira a vida de um ser humano inocente do que quem torna um ato sexual intencionalmente infecundo. Esta diferença de gravidade entre os pecados, no entanto, não tem o condão de “justificar” o pecado menos grave, que continua sendo pecado, e pecado grave, é bom lembrar. Nunca é lícito fazer o mal para que dele provenha o bem; tendo lembrado Paulo VI no avião, o Papa Francisco bem que poderia ter-lhe citado esta frase — esta, sim, de cuja autoria não há dúvidas, e cuja doutrina é certa e segura.

Microcefalia e o avanço da agenda pró-aborto

O meritíssimo sr. Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, dr. Jesseir Coelho de Alcântara, apareceu recentemente na nossa imprensa defendendo o aborto das crianças portadoras de microcefalia. «Se houver pedido por alguma gestante nesse caso de gravidez com microcefalia e zika, com comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida, aí sim a gente autoriza o aborto», disse o Magistrado à BBC Brasil.

A bravata deve, sim, preocupar. Embora pessoas com esta síndrome possam levar uma vida perfeitamente normal — inclusive a ponto de dizerem achar «errado propor aborto para casos de microcefalia» –, isto só acontece se lhes é permitido, em primeiríssimo lugar, nascerem. Antes do nascimento, quando o feto não passa de uma imagem em um aparelho ultrassom, é sempre possível dizer qualquer coisa. Já cansamos de ver isso acontecer.

Marcela de Jesus, diagnosticada anencéfala, viveu um ano e oito meses. Vitória de Cristo, diagnosticada anencéfala, viveu mais de dois anos e meio. Jaxon Buell nasceu em 2014 e continua vivo. E a anencefalia é uma má-formação mais grave do que a microcefalia! Se mesmo bebês anencéfalos, a despeito dos diagnósticos que recebam no útero de suas mães, teimam em viver quando não são assassinados, o que se dirá dos portadores de microcefalia — que, destes, temos fartos exemplos até à idade adulta?

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Não existe «comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida», esta quimera que o Dr. Jesseir evoca para anestesiar a consciência dos seus interlocutores. Não existe e nem nunca vai existir, porque este tipo de previsão (e não “comprovação”) é por sua própria natureza muito frágil. Diante de um aborto espontâneo, analisar o embrião com microcefalia severa e aventar a hipótese (verossímil, conceda-se) de que esta síndrome causou aquela morte, tal é possível ex post facto. Dizer, no entanto, que uma gravidez microcefálica em curso vai comprovadamente terminar em aborto, tal não é ciência e nem medicina. É na melhor das hipóteses exercício leviano de futurologia — e, na pior, pura e simples vontade de exterminar o deficiente. Não se pretende apressar o que há-de acontecer inevitavelmente, e sim poupar-se de uma experiência que se imagina desagradável. Acontece que, neste caso, esta experiência consiste em um ser humano inocente.

Veja-se como é esta e não outra a justificativa do aborto! Na sua fundamentação da ADPF 54, esta excrescência jurídica, o Ministro-Relator não é tão exigente quanto o Dr. Jesseir de Alcântara. Marco Aurélio, em seu voto, chega mesmo a dizer que o aborto deveria ser uma opção à mãe ainda que se reconhecesse o direito à vida do feto. Está lá, à página 69 do Acórdão:

No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República.

Ou seja: para o nosso Judiciário, a inviabilidade da vida extra-uterina é somente uma desculpa para tranquilizar a consciência da opinião pública, que insiste em ser visceralmente contrária ao aborto. Esta inviabilidade não é necessária de verdade: os juízes prescindem dela, aceitando em seu lugar meras impressões diagnósticas de que «esse bebê não vai nascer com vida» — e os mais ousados têm até a pachorra de dizer, em voto, que a liberdade sexual da mãe prepondera sobre a vida do feto. Antes, como agora, o objetivo não é conciliar direitos conflituosos em um caso limítrofe: o objetivo, agora como então, é fazer avançar a agenda pró-aborto. Que outro motivo explicaria o surgimento desta discussão de agora, quando são tão gritantes as diferenças entre o anencéfalo típico e o típico portador de microcefalia?

Para se defender desta tragédia é preciso ter a coragem de anunciar a sanidade em um mundo que parece sufocado pelo mal; mas é preciso também expôr ao descrédito estes maus profissionais que põem seus saberes a serviço da eugenia. Por exemplo, uma associação de portadores de microcefalia que receberam «comprovação médica» de que não nasceriam com vida seria excelente para destruir a credibilidade desta espécie de atestado médico, e bem que poderia tornar os profissionais de saúde menos propensos a arriscar sua reputação nesta espécie de vaticínio macabro. E o Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, que não tem a coragem do Marco Aurélio, já disse que só “autoriza” o aborto com a dita «comprovação». Sem ela, ao menos as crianças goianienses estarão a salvo da sanha homicida do Dr. Jesseir.

Pelos lábios dela fala a voz da experiência

O mais recente rebuliço das redes sociais está sendo provocado por uma única feminista que, tendo abandonado a sororidade, resolveu dedicar a vida pública a desmascarar o feminismo tupiniquim. Não sei exatamente a trajetória dela entre o fim das atividades do Femen Brazil e a sua apoteótica irrupção pública ocorrida há algumas semanas; sei, no entanto, que a vida da Sara Winter nunca foi e nem tem sido fácil.

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Ela o conta no seu livro — Vadia, não! Sete vezes que fui traída pelo feminismo –, cujo lançamento foi na última segunda feira. Li-o, e a sensação que fica da leitura é um misto de repulsa e pena. São sete pequenos capítulos, bem curtos, nos quais a autora conta (com o devido cuidado na utilização de pseudônimos) algumas histórias escabrosas pelas quais ela própria passou no seu passado de militante feminista. A autoridade da testemunha ocular — mais forte até: da própria envolvida diretamente nos eventos relatados — transforma a obra em uma denúncia que importa, penso, conhecer e fazer conhecida. Contra ela não cola a velha estratégia de afirmar que são os “de fora”, malvados e invejosos, esbravejando falsamente contra “as mulheres” que não fazem senão lutar por seus direitos: trata-se de uma insider, de uma militante feminista, ela própria mulher também, que se entregou à luta feminista com uma invejável paixão — quase como se se tratasse de um ofício sagrado — e que depois, decepcionada com o que viu e viveu, rompe agora o silêncio trazendo à tona aquilo sobre o que é, hoje em dia, deselegante falar.

Outro dia eu dizia que não faz ninguém ser feminista o ser a favor do voto das mulheres, ou a favor de que elas possam estudar nas Universidades, ou contra os seus maridos espancarem-nas, ou coisas do tipo. Isto não faz ninguém ser feminista porque estas pautas pertencem à humanidade, e não a grupo sectário algum. Querer o bem das mulheres é característica dos seres humanos civilizados e decentes; e o maior logro do qual se aproveitam os movimentos sedizentes “feministas” é, justamente, rotular todos os que lhes são contrários como se fossem ogros ávidos por bater em mulheres, impedir-lhes o acesso à educação, tratar-lhes como coisas sem vontade própria ou qualquer outra barbaridade do tipo que — importante! — ninguém defende. Com esta tática depravada pretendem estes movimentos limpar o terreno da opinião pública para dar livre curso às suas pautas verdadeiras — como o aborto, por exemplo, esta sim uma reivindicação feminista por excelência. Ser “contra o feminismo”, portanto, geralmente não significa querer reduzir as mulheres ao status de escravas de seus pais/maridos. A maior parte das vezes significa coisas muito mais prosaicas como ser contra o assassinato de crianças indefesas no ventre de suas mães.

Ser “contra o feminismo” não significa deixar as mulheres entregues à própria sorte. Ao contrário até: querer ajudar verdadeiramente às mulheres implica em denunciar os movimentos que as instrumentalizam em prol de seus (dos movimentos) próprios interesses escusos. Querer ajudar as mulheres só é possível, em última instância, colocando-se firmemente contra o feminismo. É isto o que se evidencia quando as coisas são analisadas com mais vagar e menos emoção, e quando se percebe que as notas características dos movimentos que se dizem feministas — notas que os distinguem dos outros grupos e ideologias sociais — na verdade têm pouco ou nada a ver com as mulheres.

Foi isto, aliás, o que a Sara Winter descobriu. “Meu intuito é despertar as meninas para ficarem bem longe do feminismo”, diz a chamada da entrevista que ela concedeu recentemente a Zenit. E pelos lábios dela fala a voz da experiência, a voz do testemunho de quem viveu por quatro anos naquele mundo. A voz machucada de uma mulher extremamente ferida, cujo alerta outro intento não tem que poupar as meninas dos sofrimentos pelos quais ela própria teve que passar. É sábio dar-lhe ouvidos.

E atenção!, que não se trata de uma Santa Madalena arrependida saindo pelo mundo com ardor sobrenatural a pregar ousadamente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo! É simplesmente uma garota machucada pelo movimento feminista, que teve a coragem de levantar a cabeça e tentar (re)construir a própria vida não mais sob as garras daquelas que tanto lhe fizeram mal — e, por isso, merece todo nosso respeito e consideração. A Sara não precisa, assim, de encômios e nem de maldições, não merece que se lhe atirem pedras e nem confetes: do que ela realmente precisa, sem dúvida, é de nossas orações. Ser feminista deixa marcas profundas no corpo e na alma, das quais não é nunca fácil se desvencilhar: e o que esta garota está fazendo em público é admirável. Ouçam a Sara. Ajudem a Sara. Rezem pela Sara.

Livro: “De Persona a Pessoa: o reconhecimento da dignidade do nascituro perante a ordem jurídica brasileira”, do prof. Humberto Carneiro

Já está disponível na Livraria Cultura o livro do prof. Humberto Carneiro, “De Persona a Pessoa: O Reconhecimento da Dignidade do Nascituro perante a Ordem Jurídica Brasileira”. Trata-se da dissertação de mestrado do professor, a cuja defesa estive presente e sobre a qual publiquei um relato aqui, no Deus lo Vult!, à ocasião. Humberto disse que organizaria o trabalho para o publicar. O momento enfim chegou — e em tempo oportuno, para engrossar as fileiras dos que, contra um utilitarismo perverso infelizmente muito em voga, defendem o valor da vida humana “desde a concepção até a morte natural”.

Embora o nosso Código Civil estabeleça que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Art. 2º) e o Pacto de San José da Costa Rica (também em vigor no Brasil desde antes do próprio CC) determine que “pessoa é todo ser humano” (Art. 1., 2.), o fato é que hoje se procura, por todos os meios, mitigar o alcance desta norma de direito natural e positivo. As questões envolvendo pesquisas científicas com seres humanos em estágio embrionário e a autorização judicial para se terminar a gravidez de feto meroanencefálico (com a conseqüente morte do ser humano deficiente) são talvez os dois exemplos mais claros de como a nossa Suprema Corte, na verdade, para a defesa de interesses escusos, julga-se no direito de passar por cima tanto da legislação pátria quanto dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Os nossos ministros do Supremo Tribunal Federal, é fato, não são os mais ardorosos e entusiastas defensores daquela norma que manda “respeitar os direitos e liberdades (…) [de] todo ser humano” (CADH 1). Ao contrário até: eles buscam, em toda oportunidade, meios de a relativizar, de lhe diminuir o alcance, de a esvaziar de conteúdo. E eles não o poderiam fazer — ou, ao menos, não com tanta facilidade — se contassem com uma oposição firme e verdadeira, não só da opinião pública como também, e principalmente, da Academia.

É por isso que é tão importante que seja agora lançado, pela Editora da Universidade Federal de Pernambuco, um livro onde se defende, já desde o título!, o reconhecimento da dignidade do nascituro perante a ordem jurídica brasileira. Iniciativas assim, jamais louvadas o bastante, devem ser aplaudidas, divulgadas e imitadas. Oxalá esta mudança de paradigma possa se expandir depressa, a fim de que o estrago causado por más idéias a respeito do ser humano — hoje ainda, em certos círculos, dominantes — possa ser contido e vire, o quanto antes, apenas uma página triste da história do Brasil.

Tudo o que é possível é perdoá-lo

O aborto, enquanto assassinato direto de um ser humano inocente, é um pecado grave, gravíssimo — daqueles que “clamam ao Céu vingança”, ao lado de praticar atos de homossexualismo, oprimir os pobres e negar o salário ao trabalhador. Por conta dessa sua (tão grande!) gravidade intrínseca e porque, muitas vezes, o horrendo crime do aborto é negligenciado e encarado como se fosse algo de somenos importância, a Igreja impõe, a quem o pratica e aos que colaboram materialmente com ele, uma pena de excomunhão. É o que diz o Código de Direito Canônico vigente: «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae» (CIC 1398). A pena não é nova; a mesmíssima sanção consta no Código Pio-Beneditino, Cân. 2350, o qual reza: «[p]rocurantes abortum, matre non excepta, incurrunt, effectu secuto, in excommumcationem latae sententiae Ordinario reservatam». Quem procura o aborto, sem exceção da mãe, incorre, alcançado o efeito, em excomunhão automática reservada ao Ordinário.

Ora, existem duas coisas distintas aqui. Existe o pecado mortal, decorrente de uma violação direta de um dos preceitos do Decálogo, cujas conseqüências — das quais a mais grave é a perda do estado de graça — nós conhecemos bem das aulas de teologia moral; e existe a pena canônica de excomunhão, imposta pelo Direito eclesiástico. Conquanto emanem ambas do mesmo ato, as duas coisas não se confundem. Um só é o ato humano aqui: o aborto. Dele decorrem, simultaneamente, duas penas, uma de ordem moral, outra de ordem eclesiástica: uma, a perda do estado de graça, outra, a perda da comunhão com a Igreja.

Todo pecado mortal — e não apenas o aborto — provoca a perda do estado de graça. Para recuperá-lo, são necessárias a contrição, a confissão e a satisfação: i.e., arrepender-se verdadeiramente do mal praticado, confessá-lo a um sacerdote da Igreja Católica que tenha a faculdade de o absolver e, na medida do possível, repará-lo. Esses são os pré-requisitos básicos e imprescindíveis para que alguém, tendo perdido a graça santificante por meio de um pecado mortal cometido após o Batismo, venha um dia a recuperá-la. Sem isso (ou pelo menos sem o primeiríssimo deles, a contrição — e perfeita –, na impossibilidade material de acorrer à Confissão Sacramental), não cabe falar em “perdão”.

Se todo pecado grave, pelo fato mesmo de ser grave (i.e., de ser uma ofensa consciente e deliberada à lei de Deus em matéria grave), provoca a perda do estado de graça, nem todo ele provoca excomunhão latae sententiae. Nem mesmo os pecados que clamam ao Céu vingança são, todos, punidos com excomunhão. Na verdade, são apenas oito as excomunhões automáticas atualmente vigentes no ordenamento jurídico canônico (no Código: aborto, absolvição de cúmplice em pecado contra o sexto mandamento, violação de sigilo de Confissão, agressão física ao romano pontífice, sagração episcopal sem mandato pontifício, profanação eucarística e heresia, apostasia ou cisma — hipóteses às quais foi posteriormente acrescentada a tentativa de ordenação feminina). A excomunhão é mais grave do que o mero pecado mortal, uma vez que rompe o vínculo jurídico do excomungado com a Igreja — o qual passa a, d’Ela, não poder receber mais nada. Quem está em pecado mortal, conquanto não aufira as graças próprias (e.g.) dos sacramentos “de vivos”, está apto a receber o perdão sacramental mediante o Sacramento da Penitência. Quem está excomungado, não; precisa primeiro ter a sua excomunhão levantada para, em seguida, receber o perdão sacramental.

Quem comete o aborto está sob uma dupla pena: a perda do estado de graça, comum a todos os pecados mortais, e a excomunhão, que é própria do aborto (e do restrito conjunto de pecados acima mencionado). Isso significa que, uma vez arrependido, o penitente precisa de um pouco mais do que o comum para se reconciliar com a Igreja: se àqueles que cometem pecados mortais que não excomungam basta a absolvição sacramental (i.e., basta a confissão com qualquer sacerdote que esteja apto a ouvir confissões), quem está excomungado precisa antes ser readmitido à comunhão eclesiástica para, só depois, ser absolvido.

O problema é que nem todo padre possui, de ordinário, o poder de levantar a excomunhão do aborto. Assim, quem comete o pecado do aborto — e que está, portanto, além de em pecado mortal, excomungado — precisa, para se reconciliar com Deus e a Igreja, de um sacerdote não só capaz de ouvir confissões, mas também com a faculdade de retirar a excomunhão. Quem possui tal faculdade, segundo o que está expresso no Código Pio-Beneditino (e ainda em vigor), é o Ordinário do lugar. Ou seja, é o bispo diocesano. O bispo pode delegar esta faculdade a alguns dos sacerdotes de sua diocese, ou mesmo a todos eles.

O Papa é o Pastor Supremo da Igreja, que possui jurisdição plena e imediata sobre todo fiel católico. Tudo aquilo que um bispo pode fazer, o Papa pode — e com muito mais razão — fazer igualmente. E foi isso o que Sua Santidade o Papa Francisco fez recentemente: estendeu, a todos os sacerdotes do orbe, durante o Ano Santo, a faculdade de levantar a excomunhão do aborto.

Algumas coisas, portanto, precisam ficar claras.

  • O aborto sempre foi perdoável, como todo pecado mortal, mediante arrependimento e confissão.
  • A pena de excomunhão do aborto, como toda pena de excomunhão, não pode ser levantada por todo e qualquer sacerdote — mas apenas pela autoridade competente e por aqueles a quem esta autoridade competente delegar este poder.
  • A autoridade competente para levantar a excomunhão do aborto é o Bispo Diocesano (o Ordinário).
  • O aborto comporta duas penas — a perda do estado de graça e a excomunhão eclesiástica — e, portanto, o processo de reconciliação com Deus e a Igreja de quem comete este pecado passa, também, por duas fases: o levantamento da excomunhão e a absolvição sacramental.
  • Estas duas fases, via de regra, acontecem no ato da mesma confissão sacramental: o penitente, arrependido, se confessa, e o padre, que tem a faculdade de levantar a excomunhão e a de absolver os pecados, revoga a excomunhão e, acto contínuo, absolve o penitente.
  • Na eventualidade de um fiel católico que tenha cometido o pecado do aborto vir a se confessar com um padre que não possua a faculdade de levantar a excomunhão, então este padre não o pode absolver, pelo menos não de imediato, e deve encaminhá-lo ao bispo, ou a outro sacerdote que, na diocese, possua esta faculdade, ou mesmo solicitar, ele próprio, o padre, ao seu bispo a faculdade de revogar a excomunhão do aborto, para então conferir ao penitente a reconciliação eclesiástica e a absolvição sacramental.
  • A fim de facilitar aos pecadores arrependidos a reconciliação com a Igreja, o Papa Francisco determinou que, durante o Ano Santo, todo sacerdote tem o poder de revogar a excomunhão na qual incorre “quem procura o aborto”. Aquilo que era privativo do bispo diocesano e dos sacerdotes que ele designasse, portanto, durante o Jubileu, por um ato de liberalidade do Romano Pontífice, cabe a todo e qualquer padre.
  • Não tem o menor sentido falar que, com isso, o Papa esteja “desculpando” o aborto ou qualquer coisa do tipo. As palavras de Sua Santidade são claras: «decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». Ou seja, não é para revogar automaticamente todas as excomunhões de todo mundo; é para que os padres possam absolver aqueles fiéis que cometeram aborto e — conjunção aditiva –, «arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». É preciso, portanto, i) estar arrependido — contrição — e ii) pedir o perdão — confissão sacramental.
  • O Ano Santo «abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição» e «terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016» (Misericordiae Vultus). É somente dentro deste intervalo de tempo que os padres gozarão da faculdade conferida pelo Papa.
  • Até lá, quem se arrependeu do aborto que cometeu ou ajudou a cometer pode se reconciliar com a Igreja procurando o Bispo da sua diocese.
  • Por fim, mesmo durante o Ano Jubilar, quem não está arrependido de ter praticado ou ajudado a praticar o aborto, evidentemente, não tem como receber o perdão sacramental. A estes cabe esta censura do Papa (cf. carta citada):

Uma mentalidade muito difundida já fez perder a necessária sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento de uma nova vida. O drama do aborto é vivido por alguns com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta.

Não surpreende que a mídia faça eco a esta «mentalidade». Os católicos, no entanto, aos quais Cristo mandou não se conformar com este mundo, não podem compreender as coisas — nem muito menos as coisas da Igreja — do modo superficial que elas aparecem nos meios de comunicação. Sim, o aborto é um «gravíssimo mal» — o Papa sabe disso! Mas não existe mal que não possa ser vencido por um coração contrito. O mundo clama por misericórdia. Mas misericórdia e arrependimento andam lado a lado. As reivindicações do mundo — por exemplo, para que se deixe de condenar os atos de homossexualismo, o adultério e a fornicação, o egoísmo, o aborto — não são, de nenhum modo!, misericórdia verdadeira. São, aliás, o contrário mesmo de misericórdia, na medida em que, fechando os olhos ao pecado, fecham o coração ao arrependimento — e, por conseguinte, vedam-lhe o perdão. Não é possível fazer com que o pecado deixe de existir. Tudo o que é possível é perdoá-lo. Para isso existe a Igreja. Fora disso não há salvação.

«Mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente

Ontem, oito de março, celebrou-se o dia internacional da mulher. Qualquer mínimo passeio pelas redes sociais revela que a data comemorativa foi amplamente sequestrada pelo feminismo revolucionário; todo mundo sabe, por exemplo, que a data é amplamente utilizada para que um punhado de mal-amadas, envergonhando o sexo grandioso que possuem, venham a público na mais despudorada e cínica apologia do aborto.

A bem da verdade, aliás, talvez o mais correto não fosse dizer que o oito de março foi “sequestrado”. Em sua gênese, a comemoração é e sempre foi feminista mesmo. A diferença, talvez, é que antes da expansão desenfreada da internet os atos pró-aborto tinham a repercussão pífia que mereciam. Ninguém dava atenção. Hoje, contudo, quando a qualquer coisa se concede ares de evento histórico, as feministas – cujo barulho, por conta dos amplificadores virtuais, é percebido muitas ordens de grandeza acima do real – conseguem tornar ainda pior um dia que, a despeito das suas raízes inglórias, bem que poderia ser aproveitado. Que seria digno e justo, aliás, aproveitar.

Porque não vêm de hoje as tentativas de “cristianizar” o Oito de Março. À mensagem ontem divulgada pela CNBB – peça esquerdóide da pior qualidade que cobre de vergonha a Igreja do Brasil e atrai a ira do Todo-Poderoso sobre esta terra de Santa Cruz -, por razões que saltam aos olhos à mera leitura do documento, talvez não seja legítimo conferir o status de bem-intencionada tentativa de evangelização. Coisa distinta, contudo, já se pode dizer da ligeira saudação do Papa Francisco após o Angelus dominical: o dia de ontem, disse o Papa, «é uma ocasião para reafirmar a importância das mulheres e a necessidade da sua presença na vida».

Mas não se pense que o Pontífice argentino é pioneiro nessa seara. Fazer remissões católicas mesmo a feriados originalmente anticlericais não é novidade na história da Igreja. Veja-se, à guisa de exemplo, os dois pontífices anteriores, em dois oitos de marços do passado relativamente recente:

  • Bento XVI, em 08 de março de 2009: a efeméride «convida-nos a reflectir sobre a condição da mulher e a renovar o compromisso, para que sempre e em toda a parte, cada mulher possa viver e manifestar plenamente as suas próprias capacidades, obtendo o pleno respeito pela sua dignidade».
  • São João Paulo II, em 08 de março de 1998: «[i]nfelizmente somos herdeiros duma história cheia de condicionamentos, que tornaram difícil o caminho das mulheres, por vezes menosprezadas na sua dignidade, deturpadas nas suas prerrogativas e com frequência marginalizadas. Isto impediu-as de serem completamente elas mesmas e empobreceu a inteira humanidade de autênticas riquezas espirituais.»

É provável que tenha sido S. João Paulo II o primeiro a trazer la Giornata della Donna para o calendário eclesiástico; ao menos no site do Vaticano, a referência mais antiga à data está neste Angelus de 1987. Antes disso, aliás, e registre-se, parece que não havia nenhuma particular preocupação em execrar o 8 de março. Se o feriado é originalmente comunista, é particularmente nos dias de hoje que os seus efluxos malsãos se fazem significativamente sentir (porque hoje, como já se disse, multiplicam-se estrados para qualquer canastrão). Não é revolucionária a mera referência às mulheres, e nem existe anticlericalismo intrínseco ao fato de se parabenizar as pessoas do sexo feminino em uma data específica do ano. Este não é e nem nunca foi o ponto relevante aqui.

O que realmente interessa é o seguinte. Em referência aos grunhidos das feministas pela legalização do aborto a que se referiu acima, veja-se esta notícia hoje publicada: maioria dos internautas se posicionaram contra o aborto. É provavelmente a milésima pesquisa sobre o assunto que corre a internet; pela milésima vez, as pessoas se dizem contrárias a esta covardia suprema que é o assassinato de uma criança no ventre de sua mãe. Ou seja, em um dia abertamente devotado à propaganda da agenda pró-aborto mais escancarada, as sedizentes representantes das mulheres amargaram, de novo e mais uma vez, uma rotunda derrota: não, as pessoas não acreditam, graças a Deus!, que uma mãe pode dispôr da vida do seu filho, ainda que ele se encontre em seu ventre. As pessoas não aceitam o aborto, por mais que insistam no assunto. No meio da revolução moral em que vivemos, essa resistência não pode deixar de ser notada. Por que isso é assim?

Porque «mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente. Porque na verdade as mulheres, como o Papa Francisco disse na mensagem de ontem, são aquelas que «trazem a vida», e esta é a imagem que resplandece com maior força sempre que alguém lhes faz alusão. Para obscurecer a íntima relação existente entre feminilidade e maternidade é necessário um grau de embrutecimento muito maior do que as pessoas estão geralmente dispostas a aceitar – e tal intuito tem falhado miserável e consistentemente, por mais que as feministas tenham consagrado todas as suas forças ao longo das últimas décadas à sua imposição. Para vencer a agenda revolucionária das inimigas das mulheres, portanto, não é necessário combater o oito de março: basta enaltecer a mulher naquilo que lhe é mais próprio. Porque, no fundo, quem diz “mulher”, diz “mãe”. E a maternidade é a mais radical rejeição ao aborto que pode haver.