“A cultura católica na América e a eleição de Barack Obama” – Pe. Thomas Euteneuer

[É com prazer que publico a continuação do “Não temos rei, a não ser César”, pelo pe. Thomas Euteneuer, cuja tradução foi-me gentilmente enviada por email pelo sr. Raymond de Souza. O original está aqui.

Seria necessário, immo, fazer alguns reparos quanto às evidentes figuras de linguagem hiperbólicas do revmo. pe. Euteneuer. Frases como “nenhum dos dois grupos recebeu qualquer orientação a respeito de como votar”, ou a “absoluta omissão de nossos líderes eclesiásticos para definir para nós o que a qualidade de membro da Igreja significa”, obviamente não podem ser tomadas ao pé da letra. Houve sim manifestações de sacerdotes bons e fiéis, como eu mesmo tive a oportunidade de publicar aqui no blog. É válida, no entanto, a reflexão sobre a importância de se criar uma cultura católica nos Estados Unidos, e eu me arriscaria a dizer que a mesma necessidade se impõe em nossas terras brasileiras.

Publico também a pequena introdução feita pelo sr. Raymond. Rezemos pelos Estados Unidos.]

Caros Amigos e co-defensores  da Cultura da Vida

É com prazer que partilho com todos a tradução do segundo artigo do Rev. Pe. Thomas Euteneuer, Presidente do Human Life International,  sobre as eleições americanas. O quadro é sem dúvida sombrio do ponto de vista da Cultura da Morte. O maior perigo, entretanto, não se encontra na força e no poder dos corifeus do aborto desbragado e neo-nazista: o maior perigo se encontra entre muitos dos que se dizem católicos, leigos e eclesiásticos, os quais, visceralmente corrompidos pela correção política e relativismo moral, euforicamente apóiam candidatos abortistas sem levar em conta as Leis de Deus e da Igreja.

O Pe. Thomas levanta uma bandeira de resistência e de luta que merece ser admirada e imitada. Juntemos-nos todos para reavivar a Ação Católica dos leigos, trabalhando juntos na Oração, no Estudo e na Ação.

Como dizia Santa Joana d’Arc, “Les soldats combattrons, mais Dieu donnera la victoire” – os soldados combaterão, mas Deus dará a vitória!

Raymond de Souza

A Cultura Católica na América e a eleição de Barack Obama

É impossivel continuar falando, por mais algum tempo, de uma “cultura católica” nos Estados Unidos. Um segmento inteiro da população que se autodenomina “católico” nao se sente vinculado a nenhum padrão de ortodoxia ou de sanidade católica.

De fato, é impossível falar de uma cultura católica na maioria das paróquias!

Em uma recente reunião das pastorais numa grande paróquia católica do sul da Flórida, um representante da pastoral do “Respeito à Vida” apresentou seu material pró-vida perto da mesa da pastoral da “Justiça Social” da mesma paróquia. A única coisa em comum entre as duas pastorais era que compartilhavam o mesmo espaço. Suas visões do mundo não poderiam ser mais separadas, mas ambas se autodenominavam católicas.

De fato, o pessoal da “justiça social” estava realmente radiante com a eleição de seu novo messias, Barack Obama. Muitos deles estavam falando de seus planos de assistirem a tomada de posse presidencial, mas estavam desconhecendo totalmente que haveria cem mil pessoas em uma marcha no Capitólio dois dias depois, em defesa do direito à vida dos nascituros, os quais ele tinham justamente destinado à irrelevância quando elegeram Obama para o mais alto posto no governo da nação.

Um deles chegou até a manifestar surpresa diante da previsão da entrada em vigor da “Lei do Direito de Escolha” [FOCA] abortista, quando confrontado com o desagradável fato de que seu ‘messias’ foi um patrocinador desse projeto de lei na última legislatura do Congresso. Como era de esperar, de modo imperturbável recusou-se a permitir que a verdade tivesse qualquer efeito sobre a sua euforia. Sua opinião já estava formada, e ele não permitiria a si mesmo ficar confuso diante da evidência dos fatos.

Não é preciso dizer, o católico praticante e de boa doutrina, o convicto pró-vida, este não comparecerá à comemoração da posse de Obama.

Como podem esses dois grupos estar colocados lado a lado no mesmo recinto, e apresentarem suas atividades no mesmo espaço dentro da mesma paróquia católica?

Simplesmente porque a contradição há anos tem sido tolerada por aqueles que estão no governo de nossa Igreja. Nesta última eleição nenhum dos dois grupos recebeu qualquer orientação a respeito de como votar segundo os princípios católicos, porque, como de costume, houve silêncio nos púlpitos sobre essa matéria.

A absoluta omissão de nossos líderes eclesiásticos para definir para nós o que a qualidade de membro da Igreja significa – e, portanto, para agir em conseqüência – conduziu à degradação da cultura católica e à perda do significado de coisas que são sagradas.

Quando Cristo e Belial são considerados parceiros equivalentes no santuário, então nada nele significa mais nada, e nenhum critério significativo distingue o verdadeiro católico de um falso.

A degradação da cultura católica se deve – em larga medida, mas não exclusivamente – à culpa do clero. Por quatro décadas na Igreja católica norte-americana nós temos visto:

– Abusos litúrgicos numa corrida desenfreada, favorecidos por aqueles que estão no governo de nossa Igreja;

– Duas ou três gerações de católicos de esquerda não catequizados ou ensinados de modo precário, educados como protestantes e não como católicos;

– Abusos sexuais tolerados e não denunciados pela hierarquia católica;

– Cegueira em relacao aos hereges e dissidentes da alta política;

– Ataques sistemáticos ao magistério sagrado que virtualmente não receberam resposta de nossos pastores. E se não fosse pelas Respostas Católicas (Catholic Answers), EWTN (maior canal de TV catolica nos EUA) e pela Liga Católica (Catholic League), nós não teríamos sequer uma defesa.

– A derrota de nossas instituições católicas de ensino superior diante do ataque do “politicamente correto”; e a lista continua…

Diante disto, ficaríamos surpresos se 54% dos católicos votassem em Barack?

Dificilmente.

A batalha pela cultura católica começa conosco mesmo, e não há ocasião mais propícia do que a atual, para vestir a armadura da guerra espiritual.

Ou nós acreditamos e praticamos o que a Igreja ensina, ou vivemos como parte da igreja das trevas, falsamente fazendo uso do nome de católico para o seu benefício, sem ao mesmo tempo carregar as cruzes que isto requer.

Há, entretanto, uma grande esperança para o futuro, porque a batalha já começou: novos colégios católicos estão nascendo para substituir as velhas e decrépitas escolas de heresia, novas ordens religiosas com abundantes vocações e boa doutrina têm surgido, escolas nos lares e fortes   movimentos leigos agora são abundantes.

Só quando nós recuperarmos nossa amada Igreja das mãos dos falsos católicos e clérigos, nossa Igreja estará pronta para levantar-se e repreender os ventos tempestuosos do paganismo que estão soprando mais rápido do que nós queremos admitir. Este projeto, entretanto, não se realiza sem um custo.

O custo de ser um verdadeiro fiel será, sem dúvida, muito mais alto do que foi antes em nossa vida. Começando agora, até a próxima geração, nós como católicos mostraremos ao mundo não apenas no que acreditamos, mas mostraremos que estamos dispostos a sacrificar nossas vidas como testemunhas da verdade.

Sinceramente vosso em Cristo,

assinaturapadrethomaseuteneuer
Presidente, Human Life International

TV Portuguesa e Inverno Demográfico

Linhas ligeiras, mas valiosas! O Dr. Fernando Castro, presidente da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas e da Confederação Européia de Famílias Numerosas (ELFAC), entrou em contacto comigo por email e me indicou uma série de programas que a televisão portuguesa fez sobre o assunto do envelhecimento da população. Estão disponíveis na internet:

  1. Entrevista com ele, enquadrando o problema:
    mms://195.245.168.21/rtpfiles/videos/auto/fehomens/fehomens_1_20090105.wmv
  2. Primeira parte do documentário:
    mms://195.245.168.21/rtpfiles/videos/auto/fehomens/fehomens_1_20090106.wmv
  3. Segunda parte do documentário:
    mms://195.245.168.21/rtpfiles/videos/auto/fehomens/fehomens_1_20090107.wmv

Vale muito a pena assisti-los. Grande parte do documentário Inverno Demográfico está aqui reproduzido, entrecortado por entrevistas de especialistas portugueses. Agradeço imensamente ao dr. Fernando Castro por ter disponibilizado esta preciosidade; faço votos de que seja útil a tantos quanto se interessam pela defesa da vida e da família humana.

Novena contra o aborto

Recebi por email, e está no site do Apostolado da Nova Evangelização (não conheço), uma mensagem enviada por católicos dos Estados Unidos sobre uma novena a ser começada HOJE (11 de janeiro), contra o aborto. É de fundamental importância que a rezemos, em união com os nossos irmãos americanos, na intenção de que este crime horroroso não venha a se alastrar ainda mais pela América. Nas palavras com as quais se inicia o email, e que fornece uma visão geral sobre o problema enfrentado pelos Estados Unidos hoje com a eleição do presidente abortista:

Se você se opõe ao aborto, há más notícias no horizonte. Para aqueles que não estiverem a par, o Ato de Liberdade de Escolha (FOCA, por suas iniciais em inglês) está pronta para ser firmada se o Congresso dos EUA a aprovar em 21 e 22 de janeiro.  FOCA é o capítulo malsano seguinte no avanço do aborto.  Se se converte em Lei, então todas as travas referentes ao aborto serão suspensas, o que resultará no seguinte:

1) Todos os hospitais, incluindo os Hospitais Católicos, terão que realizar abortos a pedido.  Se isto acontecer, os bispos prometeram fechar todos os hospitais católicos, que são mais de 30% dos hospitais nos Estados Unidos.

2) Os abortos de nascimento parcial seriam legais, e não teriam limitantes (poderiam ser realizados depois das 20 semanas ou 4 meses e meio. Os bebês são extraídos pelos pés, e com a cabeça ainda no canal vaginal, se faz uma punção no crânio com umas tesouras e se lhes extrai o cérebro com uma seringa gigante para que a cabeça caiba pelo canal vaginal).

3) Todos os cidadãos que pagam impostos estariam provendo os fundos para estes abortos.

4) A notificação aos pais já não seria requerida (para realizar aborto em menores de idade).

5) O número de abortos aumentaria para pelo menos 100.000 por ano.

A situação é realmente triste; ponhamos, contudo, os olhos no Deus que é Senhor da História, e supliquemos a Sua Misericórdia. O plano é muito simples: nove dias de oração, a partir de hoje, e pelo menos dois dias de jejum ao longo da novena. A oração é o terço. Portanto, um terço por dia, daqui até a próxima segunda-feira, dia 19. Rezemos. Como termina o email já citado, [r]ecordem que com Deus todas as coisas são possíveis, e o poder da oração é inegável. Se você se opõe à insensata matança das crianças indefesas, agora é o momento de fazer algo a respeito!

Diversos, diversos, diversos…

– Excelente entrevista publicada ontem em ZENIT sobre a Humanae Vitae! Ironicamente muitíssimo mal-recebida até por católicos [memento Martini…], a encíclica do Papa Paulo VI que condena a regulação artificial da natalidade é apresentada como “profética” do ponto de vista médico pelo dr. José María Simón Castellví, espanhol. Segundo ele, a pílula é causa de muitos problemas, quer de saúde, quer de relacionamento, quer ambientais. Leitura indispensável. Cito:

No 60º aniversário da Declaração dos Direitos do Homem se pode demonstrar que os meios anticoncepcionais violam pelo menos cinco importantes direitos:

O direito à vida, porque em muitos casos se trata de pílulas abortivas, e cada vez se elimina um pequeno embrião.

O direito à saúde, porque a pílula não serve para curar e tem efeitos secundários importantes sobre a saúde de quem a utiliza.

O direito à informação, porque ninguém informa sobre os efeitos reais da pílula. Em particular, não se adverte sobre os riscos para a saúde e a contaminação ambiental.

O direito à educação, porque poucos explicam como se praticam os métodos naturais.

O direito à igualdade entre os sexos, porque o peso e os problemas das práticas anticoncepcionais recaem quase sempre sobre a mulher.

– Muitos já comentaram e eu ainda não o fiz, mas não posso deixar de registrar o meu estupor diante da incitação estatal ao crime (leiam). Foram 80.000 reais liberados pela Fiocruz para a produção de um filme abortista, a ser distribuído entre ONGs e escolas. Segundo o JC daqui da terrinha (para assinantes), a diretora da produção de “O Fim Silêncio” – Thereza Jessouroun – disse que “Documentário não é jornalismo, que tem a obrigação de ser imparcial. Tem que ter posição marcada, e este é claramente a favor do aborto”. Segundo o GLOBO, ela ainda “chegou a entrevistar especialistas contrários e favoráveis à prática, como previa o projeto original, mas optou por manter apenas a participação das mulheres”. É uma canalhice explícita; chega a dar náuseas.

– Enviaram-me uma verdadeira pérola da nossa internet brasileira: o blog recém-criado (é de dezembro último) de um sacerdote de Juiz de Fora, o padre Elílio. Vale muitíssimo não apenas uma, mas várias visitas. É extremamente reconfortante encontrar um sacerdote do Deus Altíssimo zeloso das coisas de Deus, com sede da salvação das almas, e empenhando-se em levar a Sã Doutrina da Igreja àqueles que agonizam de sede no árido deserto doutrinal dos nossos dias. Só para ter uma idéia, o reverendíssimo sacerdote está atualmente traduzindo e disponibilizando o De Rationibus Fidei de Santo Tomás de Aquino! Que a Virgem Santíssima o possa abençoar com abundância, e tornar fecundo o seu ministério sacerdotal.

– Mas uma que todo mundo comentou e eu ainda não o fiz, foi a entrevista publicada por ZENIT no último Natal, com o mons. Michel Schooyans, membro da Pontifícia Academia para a Vida e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais, sobre a ONU e a ameaça aos [verdadeiros] Direitos Humanos. Excerto:

Tudo o que a gente explicou a respeito dos direitos inatos do homem que, por ser homem, tem naturalmente direitos, é contestado. Tudo isso é negado, é colocado entre parênteses, é desprezado e esquecido. Só subsistem as normas jurídicas; só subsiste o direito positivo, barrando toda referência aos direitos que os homens têm naturalmente. Nesse contexto, as determinações jurídicas são a única coisa que merecem estudo e respeito. Agora esses ordenamentos jurídicos, essas disposições lavradas nos Códigos, podem mudar ao sabor de quem tem força para defini-las. São puro produto da vontade de quem tem poder, de quem consegue impor a sua visão do que seja tal ou tal direito humano. De modo que, como salta aos olhos, a visão puramente positivista dos direitos humanos depende finalmente do arbítrio de quem tem a possibilidade de impor a sua concepção própria dos  direitos humanos, já que não há mais nenhuma referência à verdade, concernente à realidade do homem.

É exatamente o que nós sempre dissemos. Aproveito o ensejo para frisar duas coisas: (1) os “Direitos Humanos” do jeito que a ONU os entende hoje não têm nada a ver com os Direitos Humanos (estes, os verdadeiros) que a Igreja sempre defendeu; e (2) o, digamos, “espírito” original da Declaração Universal dos Direitos Humanos assemelha-se mais ao defendido pela Igreja do que ao defendido pela ONU de hoje em dia. Diz o monsenhor que os direitos humanos (expostos na Declaração original) “são reconhecidos em decorrência de uma atitude moral e antropológica”, e que “hoje em dia, a Declaração de 1948, que se inspira nítida e explicitamente na tradição realista (…) está sendo contestada”.

Vale a pena meditar nas – já citadas aqui – palavras de Bento XVI: “os direitos do homem estão fundamentados em última instância em Deus criador, que deu a cada um a inteligência e a liberdade. Quando se prescinde desta sólida base ética, os direitos humanos se enfraquecem, pois ficam sem seu fundamento sólido”. Este enfraquecimento é exatamente o que a ONU está fazendo nos nossos dias.

– “Alguns cristãos pensam que podem ajudar os muçulmanos fortalecendo-os em sua fé, e encorajando-os a serem bons muçulmanos. Isto é mais ou menos o que os cristãos fazem no Diálogo Inter-religioso. Mas há outros cristãos que pensam que a única coisa realmente útil que nós podemos fazer pelos nossos amigos muçulmanos é falar-lhes das maravilhosas novidades sobre Jesus Cristo”. Assim começa um maravilhoso artigo que fala sobre o padre Zakaria Botros – sacerdote copta, inimigo público número um do Islam, sobre o qual eu já falei aqui. Vale muitíssimo a leitura, apesar de estar em inglês e eu não estar com tempo de traduzi-lo na íntegra agora. Apenas a conclusão: “Sim, nós podemos dialogar e conversar com os muçulmanos. Mas nosso objetivo deve ser sempre libertá-los das algemas do Islam, conduzindo-os ao conhecimento salvífico de Jesus Cristo”.

Vale a pena também a (re)leitura do artigo “A derrota islâmica na África”, publicado no ano passado no Veritatis Splendor. E pode ser-nos útil e reconfortante lembrarmo-nos sempre destas estatísticas, ocultadas sob a cortina de ferro da mídia anti-cristã: “na África, a cada ano, seis milhões de muçulmanos deixam o islamismo e se convertem à fé cristã”.

Encadeando os argumentos

Comecemos pelo estudo do orgulho. Um fato que para logo se apresenta no vestíbulo das nossas indagações é o da sua freqüência na incredulidade. Quase todos os homens notáveis pela inteligência e hostis à fé foram também notoriamente soberbos; uniram a uma estima de si, não raro superior à própria valia, um desprezo altivo dos merecimentos alheios.
[Pe. Leonel Franca, “A Psicologia da Fé & O Problema de Deus”, pág. 121. Ed. PUC-Rio/Loyola, Rio de Janeiro, 2001]

Já mais de uma vez fui questionado quando, no meio de algum debate sobre religião, respondi simplesmente, como motivo para justificar determinado ponto, que “a Igreja disse”. Ora – poderia dizer alguém -, dizer “a Igreja disse” não é um argumento; é antes uma falácia, argumentum ad verecundiam, pois o simples fato de uma autoridade ter dito alguma coisa não faz com que a coisa dita seja verdadeira.

O argumento cristão definitivo, a instância última para além da qual não é possível apelar, é sem dúvida alguma o juízo da Suprema Autoridade da Igreja Católica; na célebre expressão de Santo Agostinho, Roma locuta causa finitaRoma falou, encerrou-se a questão. Isto é, sim, um argumento, mas é preciso reconhecer que tal argumento não tem valor sem uma série de pressupostos que o legitimam e sem os quais, de fato, ele não faz muito sentido. É necessário percorrer um longo caminho até se chegar ao Roma Locuta; e se os católicos não o percorrem de uma ponta a outra diante de cada situação prática com a qual se deparam, fiando-se sempre na palavra da Igreja, é porque já estão convencidos de todas as premissas que o legitimam e para o qual conduzem inelutavelmente. Como, p.ex., ao dirigir um carro, as pessoas simplesmente ligam o carro e saem, sem se preocuparem com os complexos conhecimentos mecânicos e eletrônicos sem os quais os carros não poderiam andar. A diferença é que os carros quebram, porque são obras humanas; já a Igreja é indefectível, por ser obra da mão de Deus.

O pe. Leonel Franca, no texto em epígrafe, fala-nos sobre o que ele chama de “obstáculos morais” à Fé. Com uma tremenda perspicácia, mostra-nos o insigne autor que – ao contrário do que alegam aqueles que são hostis à Igreja – os motivos que levam os homens a se afastarem da Igreja, muitas vezes, não são de origem intelectual, e sim moral. “É através de um programa de viver – diz o pe. Franca – que optamos por uma fórmula de pensar” (id. ibid., p. 119). Para o homem, crer é uma atitude razoável; há muitos que não crêem porque a Fé traz junto com ela exigências de vida que, não raro, chocam-se com o “programa de viver” por eles adotado.

Voltemos à questão da autoridade; se, por um lado, qualquer um há de convir que a mera afirmação de alguma coisa por parte de alguém, por mais douta e honesta que seja esta pessoa, não faz com que ipso facto a coisa afirmada se transforme em verdade incontestável, por outro lado é igualmente óbvio que a recusa sistemática em se levar em consideração as colocações das demais pessoas, pelo simples fato de que tais colocações não constituem demonstração definitiva, é uma atitude muito pouco razoável. Ora, seria simplesmente impossível viver em um mundo no qual todas as afirmações de todas pessoas precisassem ser postas à prova para que fossem aceitas. Ao contrário, é plenamente razoável que as pessoas assimilem, na sua vida, as experiências e o conhecimento daqueles que lhes precederam, sem precisarem refazer por si próprias todos os caminhos que trilharam os que vieram antes delas; a menos que – nas palavras do pe. Franca – sejam detentoras de “um desprezo altivo dos merecimentos alheios”…

Mas passemos a vista, ainda que do alto e bem superficialmente, por estes caminhos trilhados; olhemos para a história do Cristianismo, demonstração eloqüente da sua veracidade e confiabilidade. Tenhamos em conta que a pequena sociedade fundada por um Homem da Galiléia, dois mil anos atrás, cresceu e se desenvolveu ao longo dos séculos e se transformou na maior Família que o gênero humano já conheceu; a Igreja nascida do lado aberto de Nosso Senhor na Cruz transformou-se n’Aquela que mudou os rumos da História e construiu a civilização ocidental. Ora, não há efeito sem causa; qual é porventura a causa do extraordinário crescimento e da ainda mais extraordinária sobrevivência deste grupo de pessoas as mais distintas, unidas – ultrapassando os séculos, as culturas e os povos – ao redor do legado de um Carpinteiro de Nazaré? É porventura razoável imaginar que, sendo conhecidas as causas de um sem-número de efeitos, justamente este – sem sombra de dúvidas o mais portentoso que a História é capaz de narrar – não tenha nenhuma causa? É sensato postular que, no mundo em que o homem explica todos os fatos, justamente este esteja condenado a permanecer sem explicação?

Santo Tomás de Aquino já evocava este raciocínio, para demonstrar a importância da Fé para o cristão. São tão fortes e convincentes as palavras do Doutor Angélico que peço licença para deixá-lo falar por si próprio:

Se um rei enviasse suas cartas com o selo real, ninguém ousaria dizer que aquelas cartas não eram do próprio rei. É claro que as verdades nas quais os Santos acreditaram e que nos transmitiram como sendo de fé cristã, estão seladas com o selo de Deus. Tal selo é significado por aquelas obras que uma simples criatura não pode fazer, isto é, pelos milagres. Pelos milagres Cristo confirmou as palavras dos Apóstolos e dos santos.

Podes, porém, replicar, dizendo que ninguém viu esses milagres. É fácil responder esta objeção. É conhecido que toda a humanidade prestava culto aos ídolos e que a fé cristã foi perseguida, confirmando-o, além do mais, a história do paganismo. Converteram-se todos a Cristo, porém, em pouco tempo. Os sábios, os nobres, os ricos, os governos e os grandes converteram-se pela pregação de poucos homens rudes e pobres. Ora, não há saída: ou se converteram porque viram milagres, ou não. Se foi porque viram milagres que se converteram, a tua objeção não tem sentido. Se não o foi, respondo que não poderia haver maior milagre que esse de todos os homens converterem-se sem ter visto milagres. Deves te dar por vencido.

Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos. Porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível.
[Santo Tomás de Aquino, “Exposição sobre o Credo”]

A História da Igreja Católica é simplesmente inexplicável, quando se a considera sob uma ótica meramente naturalista. Ao contemplar esta longa sucessão de séculos, por meio dos quais a Barca de Pedro navegou – não sem tempestades! – incólume e intacta, o espírito humano livre de preconceitos inclina-se naturalmente à conclusão de que está diante de alguma coisa extraordinária. Étienne Gilson repete isso, no seu estilo peculiar, que peço mais uma vez permissão para aqui reproduzir:

Não se vê na história nenhum caso de uma sociedade espiritual feita de homens unidos pelo único amor a uma verdade comum que transcende a razão e mantendo-a durante vinte séculos, sem nunca traí-la. Procura-se não menos em vão um outro exemplo de uma fé religiosa alimentando, durante dois mil anos, um fluxo ininterrupto de especulação racional e, para dizer tudo, de filosofia, toda ocupada em definir seu objeto de especulação, em defender-se dos inimigos de fora, em munir-se de razões, em conquistar alguma intelecção de um mistério que ela aliás não ousa evacuar. A admiração se instala diante dessa interminável linhagem de doutores de múltiplas origens, de algum modo se sucedendo ao longo dos séculos, para manter intacto o ensino de um homem que, no limite de três anos, pregou a doutrina da salvação aos pobres e aos humildes. Três anos somente de vida pública, e esse imenso rio de doutrina circulando por todo o lado há vinte séculos, sem jamais permitir que príncipes, povos, filósofos, enfim, nenhum poder deste mundo o desvie um pouco que seja do seu próprio curso. Nada pode substituir aqui a experiência direta e pessoal dessa história. Aqueles a quem a vida concede a oportunidade de adquiri-la sabem que ela dá invencivelmente a impressão de que uma força mais do que humana atua incessantemente nela. Podemos dizer que o simples olhar para esses vinte séculos de fecundidade doutrinal, que nada de humano pode explicar, nos coloca diante de uma prova manifesta da existência de um Deus imediatamente presente em sua Igreja. Mas talvez tal visão dessa história pressuponha uma longa vida despendida a estudá-la.
[Gilson, Étienne; “O Filósofo e a Teologia”, pp. 212-213. São Paulo, Paulus, 2009]

Eis, portanto, os argumentos, alcançáveis pela Razão Humana, que testemunham em favor da Fé. Há um Deus; houve um dia um Homem que Se disse Deus; os portentosos sinais por Ele realizado e o extraordinário sucesso – aliás, imprevisível e inverossímil – alcançado por Sua obra ao longo dos séculos concedem-Lhe credibilidade; a Igreja por este Homem fundada, até aqui, mostrou-Se incompreensivelmente, por vinte séculos, fiel a Ele. Eis os fatos. Eis o caminho que já foi incontáveis vezes percorrido por aqueles que nos precederam e que nos falam da Fé Católica. Eis as longas veredas que conduzem à filial submissão que o católico tem à Suprema Autoridade da Igreja Católica, sem que ele próprio precise percorrê-las por si mesmo a cada vez que se deparar com um ensino da Esposa de Cristo: basta-lhe saber que tais caminhos existem, e que outros já o percorreram antes dele.

Não é uma atitude razoável reinventar a roda a cada vez que ela precisar ser utilizada, nem mesmo negar a sua existência porque não fomos nós próprios a produzi-la. Não é sensato menosprezar os ensinamentos daqueles que nos precederam pela simples razão de que não fomos nós mesmos a adquiri-los. Não é inteligente desdenhar daquilo que nos dizem os que são mais sábios do que nós, meramente por uma recusa obstinada em admitirmos que possa existir uma realidade com a qual não tivemos ainda contato. Escutemos, portanto, a Igreja; até mesmo porque a reinvenção da roda é trabalhosa – segundo Gilson, talvez despenda uma vida inteira – e não há sentido em condicionarmos a nossa aceitação de uma conclusão à sua “refazenda” por nós próprios. Não é necessário que trilhemos todos os caminhos que já foram trilhados; convençamo-nos, ao invés disso, que eles existem, podem ser percorridos e já o foram por diversas vezes. Concedamos crédito à experiência dos que nos precederam. E termino com mais uma citação do filósofo francês, nas páginas finais do seu livro já citado:

[D]irei que, na noite de uma vida passada no estudo da filosofia cristã, plenamente consciente da evolução histórica por ela sofrida – exatamente aquela que o Papa Leão XIII descreveu com tanta lucidez em Aeterni Patris -, não sou menos consciente da milagrosa fidelidade à fé cristã que ela testemunha. (…) Relatando minha experiência, digo somente que, caso tivesse encontrado algo mais inteligente e mais verdadeiro do que aquilo que São Tomás disse sobre o ser, eu me apressaria em dizê-lo a meus contemporâneos. Contudo, acabei por concluir que sua metafísica é verdadeira, profunda, fecunda, e é essa verdade sem originalidade que devo me contentar em transmitir-lhes.

[…]

Como se poderia acreditar que esse belo cargueiro, que há tantos séculos percorreu tantos caminhos sem nunca mudar de rota, esteja hoje prestes a trocar de direção ou chegar ao fim da linha? Nem a energia lhe falta para seguir sua viagem, nem a assistência daquele que prometeu estar conosco até a consumação dos séculos.
[Gilson, op. cit., pp. 236-237. 239]

Eis os fatos que atestam o valor do Cristianismo, eis as razões que a Razão Humana aduz em favor da Fé, eis o tributo que a História presta à Igreja de Nosso Senhor.

Catholic Google

Só para comentar: existe uma coisa que foi colocada na internet recentemente, chamada “Catholic Google”. Grossíssimo modo, trata-se de um sistema de buscas que utiliza google search para responder às pesquisas feitas pelo internauta, com a diferença de que o resultado apresentado passa por uns filtros que eliminam aquilo que é inadequado ao público-alvo – no caso, os católicos.

Assim, por exemplo, se você digitar “porn”, o sistema não retorna nenhum documento. Se você digitar “sex”, aparecem textos sobre o Matrimônio Católico, ensinamentos da Igreja sobre a sexualidade humana, etc. Sobre a idéia, gostaria de fazer dois pequenos comentários.

O primeiro, é que este site não faz o que se propõe a fazer. Não sei quem é responsável por ele, mas os resultados que aparecem não são bons. Por exemplo, digitando “sex”, o primeiro link apresentado é uma artigo debochado e blasfemo de muitíssimo mau gosto intitulado “sexo mata, seja católico e viva para sempre”. Desnecessário dizer que nada poderia ser mais estranho à Doutrina Católica do que esta frase sem sentido, sendo portanto inexplicável que um artigo assim apareça – muito menos como o primeiro resultado – em um sistema de buscas que se pretende católico.

[En passant, há um outro site de buscas – o “Busca Católica” – que é mais antigo e me parece ser muito melhor, tendo inclusive a vantagem de ser em português. No entanto, quando entrei agora para fazer o mesmo teste e digitei “sexo”, descobri com horror que os dois resultados que ficam em cima, indexados como “destaques da busca”, são propaganda chula e pornográfica de sites que prometem (com termos de baixíssimo calão) uma melhoria no desempenho sexual. Portanto, parece infelizmente que o problema não é restrito ao novo site de buscas…]

O segundo comentário que gostaria de fazer é mais… conceitual. Sinceramente, se a única coisa que o sistema fizer for “filtrar” resultados inadequados, eu não vejo lá muita utilidade nele; afinal, qual católico interessado em doutrina católica iria digitar “porn” num caixa de textos de um sistema de buscas?! O que seria interessante – e importante – de ser feito seria um sistema que apresentasse os resultados classificados por critérios como fidelidade dos textos escritos à Doutrina da Igreja Católica (absolutamente fundamental), didática do texto, tipo de material desejado, etc. Mas acontece que, pra fazer isso, dá muito trabalho…

Para o “católico médio”, é muitíssimo difícil discernir, entre todas as coisas que encontra na internet – mesmo em uma busca sobre Doutrina Católica -, aquilo que presta daquilo que é lixo. Há uma carência de formação muito grande, e seria muito bom se houvesse um mecanismo que “ajudasse” o leitor pouco instruído a encontrar aquilo do qual ele realmente precisa. Infelizmente, a tarefa é muito complexa para ser automatizada. Ferramentas como o Catholic Google, portanto, do jeito que estão agora, terminam por prestar um desserviço à Igreja, na medida em que se apresentam como um local onde se pode encontrar material católico e, ao revés, apresentam verdadeiras porcarias aos que acessam o site para fazer consultas. Neste sentido, é muitíssimo menos ruim o Google original; pelo menos não existe nele a “propaganda enganosa” de que os resultados obtidos serão conforme a Doutrina Igreja, o que obriga assim o usuário a pesar com discernimento os resultados que lhe forem apresentados, tornando menos fácil que ele tome gato por lebre.

A repulsa à Cruz de Cristo

Recebi hoje uma notícia segundo a qual uma igreja britânica decidiu retirar uma imagem de Cristo Crucificado da frente do templo, porque era desagradável aos fiéis – e “assustava as crianças”. Pelo que pude entender da reportagem, é uma igreja protestante; provavelmente anglicana.

A escultura (tem uma foto na reportagem linkada acima) é feia, mas não por ser uma “descrição horrenda da dor e do sofrimento”, e sim por ter sido feita numa arte moderna pela qual eu tenho uma natural repulsa. Não é tanto de causar tristeza a remoção da “obra de arte”, mas sim os motivos alegados para que ela fosse removida: o hedonismo do mundo moderno está contaminando até mesmo os cristãos, que não suportam mais pôr os olhos no Homem das Dores.

Ah, se eles soubessem que é precisamente a dor de Nosso Senhor que nos deve ser causa de santa alegria… se eles soubessem que “fomos curados graças às Suas chagas” (Is 53, 5)! Querer afastar a dor da vida é criar uma ilusão, porque nós vivemos – como rezamos na Salve Rainha – em um “Vale de Lágrimas”, e as tribulações não “desaparecem” quando nós fechamos os olhos e nos recusamos a vê-las. Devemos enfrentar os nossos sofrimentos e carregar as nossas cruzes; não fingir que elas não existem, porque existem, quer as aceitemos, quer não.

Ouvi certa vez alguém dizer que, no Calvário, havia três cruzes, para nos ensinar que todos sofrem: sofrem os inocentes, como Cristo, sofrem os pecadores penitentes, como São Dimas, e sofrem os que não aceitam o sofrimento, como “o Mau Ladrão” (Gesmas ou Gestas). É pouquíssimo provável que nós consigamos sofrer como inocentes, mas precisamos, no mínimo, aproveitar o nosso sofrimento para mais perfeitamente nos unirmos a Cristo Nosso Senhor, como São Dimas. O que não podemos, de nenhuma maneira, é sofrer como Gestas!

Dizer que o Crucificado assusta crianças é uma tremenda bobagem, somente concebível numa sociedade que tenciona, talvez, criar as suas crianças dentro de uma bolha cor-de-rosa onde o sofrimento não tem lugar. Quando, um dia, essas crianças forem confrontadas com “o mundo de verdade”, será então um grande choque; o mundo pode prometer uma vida sem sofrimentos, mas ele nada pode contra a palavra do Criador, que nos diz que, no mundo, havemos de ter aflições (cf. Jo 16, 33). Uma promessa de uma terra sem males é utópica e enganosa – a única esperança que podemos ter está precisamente na Cruz de Nosso Senhor, pois foi aí que Ele demonstrou o Seu amor por nós. Não com uma mentira reconfortante, mas com a verdade nua e crua, dolorosa, do Seu Divino Sangue se esvaindo, de Seus pés e mãos transpassados, da agonia do corpo exausto e ferido, dependurado à vista de todos, morrendo para que tivéssemos vida… Nós não queremos a falsa segurança de uma vida a salvo da morte, mas – ao contrário – a esperança de uma Vida apesar da morte. É disso que precisamos: da Verdade. A Cruz de Nosso Senhor nos traz à memória, de súbito, todo o cerne da mensagem de Salvação das Escrituras Sagradas: somos pecadores, Deus nos ama, temos esperança.

O mundo odeia a Cruz de Cristo… até onde pode ir um mundo que odeie o sofrimento? Como não perceber que uma concepção da vida que exclua a dor não vai poder produzir senão traumas e decepções, quando as pessoas se depararem – e fatalmente se depararão – com o mundo real? Busquemos o Crucificado, esforcemo-nos para estarmos sempre juntos de Nosso Senhor. E, junto com São Paulo, anunciemos com destemor “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; mas, para os eleitos – quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 23-24).

A precisão das imprecisões

O acesso a elas [às encíclicas papais] não é dos mais fáceis. A dificuldade não está no fato de serem escritas num latim de chancelaria florido de elegâncias humanistas, mas no fato de nem sempre ser facilmente perceptível o sentido da doutrina. Decide-se então traduzi-las e, ao tentar fazê-lo, acaba-se por compreender pelo menos a razão de ser de seu estilo. Não se podem substituir os termos desse latim pontifical por outros emprestados de alguma dessas grandes línguas literárias modernas, e muito menos desarticular as frases para articulá-las de outra maneira, sem logo perceber que, por mais cuidadoso que se tente ser, o original perde muito de sua força ao longo da tradução, e não somente de sua força, mas de sua precisão, o que ainda não é o mais grave, pois a verdadeira dificuldade, bastante conhecida daqueles que se arriscam nesse desafio, é a de respeitar exatamente o que se poderia chamar, sem nenhum paradoxo, de a precisão de suas imprecisões. A precisão sabiamente calculada de suas imprecisões desejadas. Quantas vezes não se pode pensar, após madura reflexão, que se sabe o que, num determinado aspecto, a encíclica quer dizer, mas ela não o diz expressamente e, sem dúvida nenhuma, ela tem seus motivos para interromper, em determinados princípios, a determinação mais precisa de um pensamento preocupado em se manter sempre aberto, pronto a dar acolhida a novas possibilidades. Além do curso de teologia que lhes faz falta, e que demandaria vários anos, seria útil aos filósofos cristãos freqüentar por algum tempo uma escola de aperfeiçoamento, uma finishing school, situado em algum lugar entre a Basílica do Latrão e o Vaticano, e vinculada preferencialmente à Gregoriana, onde se ensinaria a arte de ler uma encíclica pontifícia.
[Gilson, Étienne; “O Filósofo e a Teologia”, pp. 184-185. São Paulo, Paulus, 2009]

Eu já tive a oportunidade de comentar aqui sobre o que eu considerava ser a verdadeira intransigência, necessária aos católicos de todos os tempos. Aproveito o texto em epígrafe para fazer algumas outras considerações sobre o tema, que tem uma importância capital nos dias de hoje, em que os católicos atravessam, além de outras, uma crise intelectual.

Desnecessário julgo reafirmar a importância capital das expressões com as quais os dogmas católicos foram expostos ao longo dos séculos; a Fé é uma virtude intelectual, definida como a adesão – voluntária e movida pela graça – do intelecto às verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja. A célebre definição do Doutor Angélico (credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam) complementa-se com o Actus Fidei ([m]eu Deus, eu creio tudo o que Vós revelastes e a Santa Igreja nos ensina) e com o Credo do Povo de Deus ([n]ós cremos todas essas coisas que estão contidas na Palavra de Deus por escrito ou por tradição, e que são propostas pela Igreja): não há veritati divinae à qual aderir que não nos venha mediante o ensino da Igreja, de modo que negar este é negar a Verdade e, por conseguinte, perder a Fé.

No entanto, permanece sempre a radical incapacidade da linguagem humana de exprimir plenamente o infinito. As fórmulas utilizadas pela Igreja expressam, efetivamente, a Verdade Divina, e isto é evidente e incontestável. Não esgotam, contudo, esta mesma Verdade; há sempre espaço para que – sem que as fórmulas antigas deixem de ser verdadeiras, óbvio – as coisas sejam ditas de uma forma diferente. Gilson fala, aliás, de uma maneira muitíssimo curiosa, das imprecisões desejadas com as quais a Igreja se expressa. E isso foi escrito antes do Concílio Vaticano II…

Por que motivo seria útil à Igreja manter imprecisões no Seu ensinamento? Justamente por uma questão de fidelidade à Verdade Revelada, que a Igreja não pode trair com as fórmulas que propõe. Não há interesse da Igreja em “esgotar” um certo aspecto do Dogma, exatamente porque Ela sabe que a Verdade é “inabarcável” e, se por um lado é possível garantir a perfeita correspondência entre uma fórmula e a Verdade, por outro lado não é possível fechar à inteligência humana a possibilidade de expressar a Verdade de uma outra maneira.

E, mais ainda: se por um lado é relativamente fácil dizer o que uma coisa não é, em contrapartida é extremamente difícil dizer o que a mesma coisa é. Dizer o que algo não é, é excluir uma tese errônea; dizer o que algo é, é excluir todas as teses, concebidas ou por conceber, que contradigam a afirmação realizada. Para utilizar um exemplo meramente ilustrativo, se eu mostro uma mão fechada e pergunto para alguém o que tem dentro, é muito mais fácil ele dizer o que não tem dentro (não tem um elefante, não tem um piano de cauda, não tem um alienígena) do que o que tem dentro. Muitas vezes é necessário dizer o que as coisas não são, apontar simplesmente o erro, ao invés de afirmar categórica e univocamente o que elas são; e a Igreja, que é sábia, muitas vezes apenas delimita o espaço da investigação teológica, sem contudo traçar uma linha única que deva ser universalmente seguida. Para tanto, Ela Se utiliza de imprecisões deliberadas.

Há, infelizmente, incontáveis exemplos de pessoas que não percebem e não respeitam estas imprecisões desejadas no ensino da Santa Igreja. A maneira mais fácil de se apontar uma “contradição” entre o “Magistério pré-conciliar” e o “Magistério pós-conciliar” é, exatamente, atropelar este terreno voluntariamente impreciso e restringir os limites que a Igreja manteve deliberadamente flexíveis. É sem dúvidas necessário, sim, ser intolerante e defender a Doutrina Católica de deturpações; no entanto, é igualmente necessário ter a sensibilidade intelectual para identificar e respeitar, nos ensinos dos Papas, “a precisão de suas imprecisões”. Referindo-se a tal arte, que não é fácil, Gilson diverte-se falando que, para dominá-la, seria necessário um curso específico em Roma para isso… no entanto, quantos leigos auto-intitulados teólogos nós encontramos, atacando – sem pudor e sem prudência – a Igreja de Nosso Senhor!

Que a Virgem, Sedes Sapientiae, alcance-nos as luzes do Alto, do Espírito Santo de Deus, a fim de que não percamos o rumo em meio aos nossos combates. E que nos esforcemos para estarmos sempre muito bem unidos à Igreja de Nosso Senhor, em comunhão afetiva e efetiva com o Sucessor de Pedro, o Doce Cristo na Terra e cabeça da Igreja de Deus, Ela que é Coluna e Sustentáculo da Verdade, contra a qual podemos ter a certeza de que as portas do Inferno jamais prevalecerão.

Homeschooling…

Enquanto no Brasil, o casal Cleber e Bernadeth Nunes foi condenado por educar os seus filhos em casa num tribunal de segunda instância com as justificativas mais esdrúxulas que se pode haver, como o juiz Almeida Diniz que no processo afirmou: “Não podemos permitir a análise aqui da qualidade da educação que está sendo dada em casa, pois a educação escolar em casa jamais poderá substituir a instrução normal”. Ora, a “instrução normal”, a que o juiz se refere, é depois classificada por um dos 3 juízes da turma de tal forma: “a qualidade de nossa educação é inegável. Se compararmos, por exemplo, os cidadãos brasileiros normais com os cidadãos norte-americanos normais, a conclusão é devastadora. Os norte-americanos sabem pouco… em comparação com os brasileiros. Nosso sistema escolar é, ao contrário, muito bom em comparação com outros países”

A má-fé torna-se clara. Enquanto o Brasil despenca nos índices de compreensão de texto — o que aliás não precisava de medição, bastando que cada um nós olhasse ao redor e visse quantos têm capacidade de entender um texto de profundidade mediana — o juiz acha a nossa educação muito boa “em comparação com outros países”. Curiosíssimo fico eu, querendo saber de que países trata o juiz…

Além do mais, o juiz não fez distinção entre o saber dos cidadãos norte-americanos que estudaram em casa e que estudaram “normalmente”. O que por si só evidencia uma distorção na análise. Se o juiz brasileiro não se dá por satisfeito com a perfomance do cidadão americano, talvez seja esse o motivo comum que leva a população americana ao homeschooling!

Como noticia o Worldnetdaily a insatisfação com a instrução acadêmica das demais escolas é razão para 73% dos pais entrevistados tirarem os filhos dos colégios. O desejo de prover educação moral ou religiosa, 83%. O receio do ambiente escolar (inclusive violência e drogas), 88%. Vale salientar que os que são educados em casa, atingem entre 65% e 80% dos testes-padrão, enquanto a média das escolas públicas não passa de 50%.

O movimento de homeschooling cresceu 73% nos Estados Unidos desde 1999, sendo que nos últimos 5 anos, o percentual é de 36%. Estima-se que hoje nos EUA 1,5 milhão de crianças sejam educadas em casa, com estudos indicando que os homeschooled não só não têm prejuízo no desenvolvimento social, psicológico e emocional, como às vezes levam vantagem em relação aos demais estudantes.

Fico me perguntando se o juiz aprendeu honestidade intelectual no colégio que certamente lhe fez tão bem…

Estados Unidos e objeção de consciência

Apenas comentando: segundo o Noticias Globales, foram apresentadas pelo governo norte-americano as novas leis que regulamentam o direito à objeção de consciência por parte de profissionais da saúde. Elas salvaguardam inclusive – e principalmente – o direito dos médicos de se recusarem a realizar procedimentos abortivos, mesmo que o assassinato de crianças seja legalizado.

Entrará em vigor dois dias antes do presidente abortista assumir o cargo. Considerando que o primeiro ato do sr. Obama será – pelo que se diz – assinar o Freedom Of Choice Act, e considerando que está nos seus planos inclusive violar a consciência dos profissionais de saúde no que se refere à prática nefasta do aborto, vamos ver no que isso vai dar. Deus salve os Estados Unidos.