O Natal por trás dos natais

Você vai ficando velho e os natais começam a se acumular sobre as suas costas com um peso ancestral. Chega mais uma vez dezembro e parece que tudo vira rotina mais uma vez: as mensagens enviadas, os presentes que precisam ser trocados, as ceias que temos que cear. E, conforme o tempo passa e as vivências vão se avolumando, é inevitável comparar o presente ano com os anteriores: houve natais passados junto aos amigos, em meio a bebedeiras, natais em que saíamos de casa em casa para tomar parte em diversas ceias, natais em que uma ceia só nos satisfazia e quem quisesse que nos viesse visitar. Já destruí um carro contra um muro em uma noite de Natal, já passei um Natal sozinho com meu irmão na Europa e, outro, no hospital, logo após me descobrir com câncer. Já lá se vão muitas experiências nos meus trinta e tantos natais!

E é bastante ruim quando as coisas se tornam rotina: quando perdemos a capacidade de perceber que esta Noite é diferente das outras noites, quando estamos tão preocupados com as coisas do mundo que nem enxergarmos a Estrela a brilhar no Céu bem acima de nossas cabeças, quando os nossos ouvidos não são mais capazes de discernir, entre os ruídos da noite, o Cântico dos Anjos e o louvor dos pastores. Não celebrar o Natal é uma coisa horrível — e, este ano, graças às restrições impostas pelos governantes por conta da pandemia, corremos um grave risco de não O poder celebrar! No entanto, há uma coisa ainda pior, que é celebrá-Lo como se fosse uma coisa qualquer, celebrá-Lo como se fosse qualquer festa, qualquer compromisso social entre dezenas de outros ao longo do ano, que cansa e desgasta, que é uma obrigação social reduzida à comida e à bebida e às fotos das redes sociais. Sim, deturpar o Natal é uma forma de não O celebrar. E nós, que nos escandalizamos tanto este ano com as tentativas dos governantes de limitar a realização das Missas e o tamanho das confraternizações… por que não nos escandalizamos antes, e em ainda maior medida, com o materialismo nos quais passaram submersos tantos dos nossos natais?

Ficamos velhos, talvez, como Herodes, ciosos do conforto de nossa posição, e nossos olhos já não brilham mais com a peregrinação dos Magos do Oriente em busca do Menino que há-de nascer. Tantos meninos já nasceram — nós já vimos tantos Natais…! — que não há razão para se alvoroçar tanto com mais Este. Cansados, não estamos dispostos a suportar os incômodos da noite apenas para encontrar um Menino com Sua Mãe, envolto em faixas e depositado em uma Manjedoura. Essas coisas se tornaram demasiado simples para nós com o passar do tempo. Nós já conhecemos a história; e, com tantas e tantas coisas que temos ainda para conhecer, por que gastar tempo revivendo essa História que desde a infância conhecemos de cor e salteado?

Ficamos velhos, talvez, como homens sérios, preocupados com os nossos negócios, em cujos cuidados não há tanto espaço assim para o serviço e a generosidade. Parece-nos inclusive desrespeitoso o comportamento dos pobres nesta época do ano, acumulando-se nas nossas ruas, batendo-nos à porta das casas, pedindo por algum dinheiro, por alguma esmola, atrapalhando o nosso Natal. E, daí a pouco, sem nem nos apercebermos, talvez já nos solidarizemos com aquele estalajadeiro que, certa vez, disse que não podia fazer nada por um pobre Casal de viajantes que não tinha onde passar a Noite. Sim, nós o entendemos porque nos acostumamos a agir como ele! O mais provável, aliás, é que, ao longo destes anos todos, já tenhamos fechados muito mais portas do que aquela estalagem censurada pelo Evangelho.

Ficamos velhos…! Mas para nós também há esperança nesta Noite, porque o Menino nasceu também para nós. Em meio às trevas escuras da nossa alma, à escuridão e ao negrume que é resultado da sujeira acumulada ao longo dos meses, dos anos, das décadas, nesta Noite santa uma Luz anseia por resplandecer. Sim, é preciso enxergar o Natal por trás dos natais. Se os nossos olhos cegos já não enxergam a Estrela e os nossos ouvidos moucos não ouvem os Anjos cantarem, então que ao menos estendamos as nossas mãos para tocar na palha santa do Cocho onde o Criador repousa o sono de Quem acabou de vir ao mundo. E, nos Seus suspiros de Recém-Nascido, reencontremos a alegria da vida, a alegria do Natal, aquele jubiloso anúncio primeiro que, de tão imenso, precisa ser repetido ano após ano até a consumação dos séculos:

Eis que vos anuncio uma Boa-Nova que será alegria para todo o povo: hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor.

Que este anúncio nos alcance o coração, nos converta e nos dê a paz. Feliz e Santo Natal a todos!

Depois do Natal

A cidade está vazia e deserta porque é Natal. Passados mais de dois mil anos, a celebração do Nascimento de Cristo ainda impõe marcas profundas mesmo às feições de nossas sociedades dessacralizadas. O burburinho dos dias anteriores — os dias mais angustiantes do ano — arrefece, põe-se de lado e é substituído pelo barulho do interior dos lares, que contrasta com o deserto do exterior. O Natal é festa íntima, familiar, que se comemora com os consanguíneos (e, também, com os amigos mais próximos) em torno a uma mesa comum. A tradição se repete. Mas por quê?

Não é por acaso que o Natal é colocado no início do ano litúrgico; trata-se de acontecimento inaugural e não escatológico. É a ária que abre o espetáculo e não a apoteose. E, inserido no ritmo cíclico do temporal da Liturgia, repetindo-se ano após ano, assume os ares de um perpétuo recomeço, possibilitando a periódica experiência daquela excitação que precede as grandes aventuras.

Por que, afinal de contas, o que é o Natal? É o nascimento de Cristo. E a história nos dá conta de que, quando Cristo nasceu, tudo mudou e, ao mesmo tempo, não mudou nada.

Os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador; e, nos nossos presépios, nós até hoje representamos aqueles homens do campo que deixaram os seus rebanhos e saíram, em uma noite escura, em busca de um Recém-Nascido envolto em faixas. Encontraram o Menino e O adoraram; mas, embora a Bíblia não nos fale, é certo que, na noite seguinte, e ao longo de todas as noites seguintes, os mesmos pastores precisaram voltar aos mesmos campos para guardar os mesmos rebanhos. E os anjos não tornaram a aparecer.

Foi uma Noite única; mas o fulgor daquela noite, é certo, foi capaz de iluminar a vida inteira dos que A vivenciaram. É provável que, naqueles campos, anos depois, os velhos pastores conversassem ainda sobre aquela Noite, passado já tanto tempo!, em que os Céus se iluminaram para o nascimento de um Menino. É provável que então o gloria in excelsis não ressoasse mais por aquelas paragens; mas aquela pax prometida aos homens de boa vontade, esta é certo que ainda perdurava naquela terra, e os pastores a podiam ainda experimentar mesmo a tantos anos de distância.

Hoje a distância é ainda maior: mas a força do Natal atravessa os séculos e é sempre nova — como o Evangelho que ele inaugura. Ontem nós mais uma vez fomos à Missa; mais uma vez ouvimos o canto secular das Kalendas, mais uma vez escutamos o anúncio da grande alegria do nascimento do Salvador, que é Cristo Senhor. Mais uma vez nós paramos em frente ao Presépio, enfim completo, com o Deus-Menino envolto em faixas e repousando, sereno, sobre a manjedoura. Olhamos-Lhe como se O encontrássemos pela primeira vez na vida! E pedimos-Lhe paz para nós mesmos, para nossas famílias, para o mundo, para a Igreja: aquela paz anunciada pelos anjos no Natal primevo. E, ao mesmo tempo, pedimos a graça de trabalhar a nossa vontade, a fim de torná-la boa, para que possamos ser — um dia — contados entre os homens aos quais aquela paz foi prometida. E voltamos para casa.

O que importa perceber aqui é o seguinte: o Natal não tem o arroubo de um fim de mundo, de uma mudança radical de vida, da chegada a uma terra prometida onde tudo passa a ser diferente. Na verdade, o Natal mantém as coisas exatamente como estavam antes e é esta a sua força avassaladora. Na noite anterior, como na noite seguinte, os pastores estavam nos campos guardando os rebanhos. Os sábios do Oriente, que antes do Natal estavam viajando rumo a Belém, após o Natal estavam mais uma vez viajando, de volta para casa. Mesmo a Sagrada Família, que na véspera estava, de porta em porta, procurando abrigo para a noite, longe de casa, após o nascimento de Cristo estava também longe de casa, em terra estrangeira, no Egito, fugindo à sanha assassina de Herodes. O Natal não encerra ciclos. Ele irrompe em meio aos ciclos da vida, deixando-os intactos após si.

Intactos, mas não intocados. A vida segue após a ceia do Natal: as mesmas lutas, os mesmos problemas, os mesmos defeitos, tudo, tudo. Os mesmos rebanhos a pastorear por campos escuros. Mas fica algo de diferente justamente porque passou o Natal: mais uma vez nós nos encontramos com pessoas que nos são caras, mais uma vez nós nos permitimos esquecer os trabalhos e as dificuldades da vida — por uma noite que seja! — para simplesmente celebrar, mais uma vez nós trocamos votos de felicidades e expressamos os nossos sinceros desejos de que o futuro — o Ano-Novo que está às portas — seja melhor. E, por conta disso, os próximos dias serão iguais aos últimos, mas serão diferentes. Graças ao Natal. Graças ao Menino que hoje nos foi dado.

A Vigília dos Pastores – Nelson Rodrigues

Escrevo à noite. Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é essa vigília e nós somos eternamente os pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda a parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores – na vigília docemente infinita. Uma noite, Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto da nossa agonia. Entenderá nossa última lágrima de vida.

Nelson Rodrigues, em crônica natalina publicada n’O Globo da qual só encontrei, infelizmente, este pequeno excerto