Na festa de Cristo Rei

[Nesta semana em que comemorámos a solenidade de Cristo Rei, com a qual a Igreja finda o seu ano litúrgico e inicia a preparação de um novo ciclo de celebrações, publico com alegria este precioso texto sobre o Reinado de Nosso Senhor, gentilmente enviado pelo Bruno Borgarelli, a quem agradeço. Que em meio às trevas desta pós-modernidade desvairada nós nos esforcemos com denodo para que Cristo possa reinar — no pequeno mundo de nossas almas, no mundo mais amplo de nossas famílias e no vasto espaço das sociedades. Viva Cristo Rei!]

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO

Bruno de Ávila Borgarelli

De todo o esplendor da Encíclica Quas Primas, de S.S. Pio XI, instituição da Solenidade de Cristo, Rei do Universo, deve o jurista atentar-se ao trecho respeitante à “pusilanimidade de certos católicos”, que vão esquecendo o Direito de Cristo sobre todas as coisas.

Sua Santidade nota essa tibieza, oportunamente operada sob a veste laicista, já em 1925.

Tanto mais notamo-la hoje, volvido quase um século, passada a Segunda Guerra, passadas as perturbações do violento século XX, e afinal abandonado o próprio estudo do Direito Natural em prol do odioso e protorrevolucionário “constitucionalismo contemporâneo”, insistente em achar princípios desgarrados da lei moral (como fosse isso possível).

Não espanta que sob o signo desse constitucionalismo os homens tenham dado foros de legitimidade ao que de mais repugnante existe, de que a ideologia de gênero é apenas um exemplo.

Sob este mesmo aporte, derivado da mesma negação de Cristo, advém a crise moral das instituições, transformado que fica o Estado em um mecanismo contínuo e eficiente de opressão e combate ao que ainda resta de cristão no mundo, na guerra aberta que opõe as “maiorias” à natural constituição da sociedade.

A participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei natural (“participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur”; Summa Th., I-II, q.91, a.2) é o alvo por excelência de todos os combates desse ilegítimo “estado constitucional”.

Sabendo muito bem que a razão apreende a lei natural por conaturalidade, os revolucionários precisam ou usar a força para suprimir a mesma razão – e, assim, permitir que aflorem e sejam patrocinadas pelo Estado todas as tendências contrárias à natureza – como de fato ocorre; ou, melhor ainda, precisam tutelar o relativismo moral e os positivismos, frutos podres da mesma diabólica árvore.

Séculos de racionalismo laicista paralisaram a força do “justo”, petrificando-o em leis e códigos. Outros séculos de historicismo subtraíram, especialmente ao Direito Civil, o contato com a normatividade objetiva extraível da natureza humana.

O resultado pérfido veio, como fora arquitetado. Uma paralisia, uma inação, uma permissividade generalizada.

Olvidando, sob a pressão desses movimentos de brutal negação da objetividade, que as leis humanas positivas são meios de explicitação da lei natural, e de garantir sua eficácia, chega-se ao império não mais da lei, mas da corrupção das leis (pois, como diz Santo Tomás, “si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam nom erit lex sed legis corruptio”).

Mandam os códigos, governa a obsessão das leis, pouco relevando sua iniquidade, sua discordância relativamente à justiça, aos preceitos da lex naturalis. O Direito Civil, primaz na regulamentação das instituições ligadas à natureza humana, perdeu a autoridade, como recorda Galvão de Sousa, que é então ocupada pelo “poder criador das assembleias”, restando a tecnocracia em lugar da constituição natural da sociedade (in “O Direito Civil entre o ‘ius naturale’ e a tecnocracia”).

E a sobrevivência das “instituições democráticas”, tomadas como fim em si, vale mais que a razão natural, vale mais que o culto público a Deus – que é mandamento, e não solicitação.

O credo fanático no legalismo, no laicismo, a idolatria da lei positiva humana, tudo isso decorre da tentativa de destronar Cristo, o que se epitomiza em certos fatores políticos e jurídicos, dentre os quais M. Bigotte Chorão identifica a Revolução Francesa, o Estado Liberal, os regimes comunistas etc.

Esse fanatismo já ninguém o pode negar. Oprime, amedronta, e se revela com maior ferocidade no acanhamento dos cristãos, que é justamente o que sublinha S.S. Pio XI na Quas Primas, identificando a “indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia”.

E não só se pode dizer que os católicos não exercem, na sociedade civil, a autoridade que conviria aos apologistas da fé, como observa Sua Santidade. Até exercem, eventualmente.

Mas a realidade é que as instituições se recheiam de pessoas que se anunciam como católicas, metem uma tímida imagem ao canto do gabinete, esboçam (nunca em público) o sinal da cruz, murmuram uma qualquer parte da Santa Doutrina – apenas quando a conveniência dos salões o permite -, e até frequentam os Sacramentos, mas não vivem a Verdade do Reino de Cristo.

E não a vivem na medida em que não trabalham para a efetiva instituição desse Reinado, porque já as contaminou o veneno do conformismo, da acomodação: “que faria eu, pobre cristão, para reverter a marcha do tal historicismo, do tal positivismo, do tal constitucionalismo?”

E tecem contas de orações por sua sobrevivência profissional, pensando assim: “exercerei em nome de Cristo esta função institucional que me foi confiada, e, quando detiver maior poder, estrategicamente, ajudarei a arrumar a sociedade, fazendo-a voltar aos princípios da lei natural”.

Estratégias, estratégias, estratégias!

Creem ser possível justificar que se dê às leis humanas civis, ainda por um instante, um valor em si, e não uma autoridade relativa, que somente se verifica na medida – na exata medida – em que respeitam a lei natural.

E creem em tal coisa porque calculam que é mais válido não enfrentar, neste momento, a “autoridade” da lei civil, afinal, “quem sou eu para bater de frente com o laicismo, a esta altura da história? Melhor é aceitar esse estado de coisas e ir lutando para mudar o que é possível”.

Mentira! Mero oportunismo, e não prudência.

Cálculos, cálculos, cálculos!

Essa ideia – tão bem “calculada” – é fruto do medo, do zelo excessivo de si, do receio de perder a reputação perante os homens. Cria-se uma pletora de justificativas para a pior das ações: a negação objetiva de Cristo, a quem cabe toda honra e toda a glória.

Esquecem-se, contudo, que o homem não se pode justificar a si mesmo contra Deus. Pois o homem que se justifica a si julga a Deus, negando sua autoridade (Rom 3,19). Jesus Nosso Senhor, puríssimo e sem mácula, não entrou a justificar-se perante Pilatos e a multidão. Ora então, quem é o homem para assacar argumentos contra Deus? (Jo 9, 14).

Esquecem-se do que diz S.S. Pio XII, na Alocução “Ci Riesce”: aquilo que não responde à lei moral não tem nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação. Sua Santidade não faz ressalvas: àquilo que está em desacordo com a lei moral não é dado direito algum, sequer de ser propagandeado.

Esquecem-se que a ninguém Deus deu licença de pecar (Eclo 15, 20).

Esquecem-se, enfim, que o dia de amanhã não foi prometido a ninguém. “Hodie non cras!”.

E nesses esquecimentos, sinais da covardia, vai-se esvaindo a potência para o bem, vai desmoronando a ordem (i.e., a disposição das coisas segundo seus fins), vai-se consumindo a força da catolicidade, pois quem adia o Reinado de Cristo, já negou Sua Divindade sobre todas as coisas.

Cai-se daí facilmente nos respeitos humanos. Afinal, tendo-se convencido de que é possível acumular poder nas coisas do mundo e só depois agir publicamente em nome de Cristo, parece oportuno, a tais pessoas, não criar desgastes com esta ou aquela autoridade, nem figurar sob a pecha de fanatismo (que os modernos atribuem ao verdadeiro católico).

E avançam nessa miserável vida de enganos, suportando no coração – decerto – o peso desse pecado, que conhecem bem, e que consiste em negar Deus.

Que infelizes não serão! Que sofrimento experimentam já, o qual, sem o arrependimento, se tornará danação eterna.

Afinal, a recompensa da Coroa só virá para os que praticam a verdade, e não para os que a pregam ou ouvem (Venerável Fulton Sheen). Muito menos virá tal recompensa para os que apenas murmuram a verdade, quando é conveniente, e quando as altas rodas não reprimem a exposição pública da fé.

Que terror não causa também o pensar que estamos todos nós, na provação que consiste em viver nesta época, igualmente sujeitos a tal desgraça.

A desgraça de julgar conforme nossos propósitos, de olvidar a Lei de Deus, de cair nos respeitos humanos, de zelar por nossos cargos, de amar nossas reputações, de encorajar nos outros essa mesma paixão desordenada – ou de não a desencorajar, em fraternal correção, quando assim agem – de ocultar a fé para ingressar nos círculos de mando da sociedade, de oferecer justificativas para nós mesmos.

Que Nosso Senhor nos ensine a continuamente rejeitar o mundo e suas falsas benesses, e a resgatar verdadeiramente – sem pusilanimidade e tibieza – sua Lei.

Que Ele nos conceda sabedoria para nos humilharmos diante de sua Majestade e Poder.

De joelhos, hoje, na Festa instituída em recordação ao Reinado de Cristo sobre todo o Universo, brademos como está Escrito:

“Levanta-te, ó Deus, e julgue toda a Terra, porque a ti pertencem todas as nações!” (Sm 82, 8)

Viva Cristo Rei!

Bruno de Ávila Borgarelli

São Paulo, 24.XI.2019

Ainda nem chegou o Carnaval

Já estamos no final de fevereiro, já se passou um sexto do ano e o Carnaval nem chegou ainda…! A vida é efêmera e passa depressa. Passa como quatro dias de folia e brincadeira. Cuidemos para que ela não nos passe como um ano suspenso, inerte, na expectativa do Carnaval para só então engrenar e começar de fato. O ano não espera, e a nossa vida também não deve esperar. Cuidemos para que o passar do tempo não nos pegue de surpresa.

Porque enquanto o Carnaval não chega muita coisa pode acontecer e acontece. Nem falo da política nacional e mundial, que voluntariamente tenho acompanhado bem pouco — somente o que me chega nos grupos de WhatsApp, somente o que se comenta no trabalho ou à hora do almoço. Sobre estas coisas já tive a oportunidade de escrever aqui há não muito tempo: elas me interessam mais quando posso, a partir delas, tratar de algum assunto que eu julgue interessante do ponto de vista espiritual.

Não. Incomodam-me, aqui, aquelas coisas que se sucedem mais rápido do que eu as consigo acompanhar — e sobre as quais eu bem gostaria de estar melhor informado! Por exemplo, soube hoje que o senado americano rejeitou uma lei que obrigava profissionais de saúde a prestarem socorros médicos aos bebês nascidos vivos em caso de abortos mal-sucedidos. Que o aborto seja uma monstruosidade é coisa que nem os seus defensores procuram esconder mais; no entanto, que haja políticos empenhados em barrar uma lei que manda recém-nascidos receberem cuidados médicos, é coisa que ainda consegue me surpreender e indignar.

Fui procurar o texto original do Born-Alive Abortion Survivors Protection Act. O que o projeto de lei estabelece — em tradução livre — é que, no caso de aborto ou tentativa de aborto do qual resulte o nascimento vivo de uma criança, qualquer profissional de saúde presente deve prestar-lhe o mesmo cuidado profissional que exerceria diante de qualquer outra criança da mesma idade gestacional. Ou seja, trocando em miúdos, trata-se de uma lei que diz o óbvio (infelizmente o óbvio precisa ser dito nestes tempos sombrios que correm): diante de uma criança em risco de vida, qualquer médico tem a obrigação profissional de socorrê-la! Chega a ser angustiante: como é possível que um ser humano possa votar contra uma lei dessas?

É, no entanto, possível, porque o egoísmo humano não tem limites. É possível porque o tabu da liberdade sexual precisa ser mantido a todo custo, não importa quantas crianças sejam abandonadas no caminho. É possível porque a luxúria é um ídolo caprichoso que exige para si, de maneira cada vez mais explícita, o sacrifício de sangue humano inocente.

E enquanto o carnaval não chega o abortismo dá as caras e as cartas no Congresso Americano.

Também enquanto esperamos soarem os clarins de momo, leio que o Cardeal Pell — prelado australiano hoje com 77 anos — vai responder na prisão a um processo judicial no qual é acusado de abusar de dois menores. Foi considerado culpado em primeira instância; alega inocência e o seu advogado já garantiu que ele vai apelar. Trata-se de outro assunto sobre o qual eu gostaria de estar melhor informado, porque essas acusações são dolorosíssimas. O Cardeal George Pell é um prelado de reta doutrina e de clareza no falar — qualidades tão necessárias como, infelizmente, raras nos dias em que vivemos.

Não tenho ilusões acerca dos homens. Sei muito bem que firmeza doutrinária não está necessariamente ligada a retidão moral, e que do fato de um católico ser referência em ortodoxia não segue — infelizmente não segue — que ele seja, também, baluarte dos bons costumes. Alguém pode perfeitamente ter uma vida intelectual exuberante e, ao mesmo tempo, não levar uma vida moral que lhe esteja à altura. O brilhantismo doutrinário não afasta eventuais falhas morais; da mesma maneira, os pecados do pregador também não maculam a pureza da Doutrina pregada.

Isso tudo é muito claro e muito verdadeiro, e os tempos recentes da Igreja estão repletos de exemplos assim. Essas coisas não nos deveriam mais escandalizar; no entanto, que mal provoca ao combate pela expansão do Evangelho os maus exemplos dos que assumem o papel de campeões da Fé! Sim, a Doutrina não guarda relação direta com a santidade pessoal, e a teologia católica desde há muito tempo soube separar conceitualmente a Fé da Caridade — os pecados mortais, nós o sabemos, podem expulsar a caridade mantendo, no entanto, íntegra a Fé. Tudo isso é verdade; mas tudo isso o sabemos nós, que já temos a graça de ser católicos. Diante de um mundo pagão, diante da multidão de almas mais ou menos avessas ao Cristianismo que somos chamados a conquistar, impossível negar o efeito contraproducente causado por escândalos desta natureza. Domine, miserere.

E o Carnaval nem chegou ainda, e os príncipes da Igreja de Cristo já são lançados ao escárnio dos ímpios.

Enfim… são tempos difíceis. São tempos em que as coisas acontecem cada vez mais depressa (será que acontecem mesmo tão depressa assim, ou será que estamos desatentos com o mundo a nosso redor — contaminados, talvez, pela apatia generalizada?), e nós não nos apercebemos. Não nos damos conta, não prestamos atenção, não rezamos o bastante e não oferecemos suficientes sacrifícios; decerto não fazemos toda a penitência que seríamos capazes de fazer! O mal avança e conquista territórios importantes enquanto esperamos o Carnaval passar — para, só então, adentrando a Quaresma, preocuparmo-nos com a nossa vida espiritual e com o estado da Igreja.

Mas o Príncipe deste mundo não descansa. E, enquanto estamos nos guardando para quando o Carnaval chegar, ele não perde tempo e investe, furioso, virulento, contra nós. Porque ele sabe que pouco tempo lhe resta (cf. Ap XII, 12).

Quanto a nós, quem nos garante que temos ainda muito tempo…?

A Argentina resiste

E o aborto não foi legalizado na Argentina. Não desta vez. É sem dúvidas uma vitória importante, é algo a se comemorar e a agradecer, de joelhos!, a Nosso Senhor e à Virgem Santíssima; mas é também um importante aviso de que devemos — precisamos! — sair da defensiva e assumir um maior protagonismo nesta encarniçada guerra que se trava, escancarada, bem diante de nossos olhos, entre a vida civilizada e a cultura da morte. O aborto não foi aprovado de ontem para hoje na Argentina; mas ele poderia ter sido aprovado, e essa só possibilidade já é uma tragédia e uma vergonha. O avanço da barbárie foi terrível; o estrago que já foi feito é desmesurado; e talvez não estejamos levando suficientemente a sério toda a dimensão do que nos incumbe fazer.

É preciso continuar alerta. O projeto que fora aprovado na Câmara dos Deputados por uma verdadeira maioria de ocasião — 128 votos favoráveis contra 124 contrários — foi derrubado esta madrugada no Senado e não poderá voltar a ser apresentado até a próxima sessão legislativa, que só se inicia em março do ano que vem. No entanto, ainda este mês o Parlamento argentino vai começar a discutir a reforma do Código Penal — que, como não poderia deixar de ser, também vai precisar se posicionar sobre o crime do aborto. A batalha foi superada, mas a guerra está ainda muito longe de acabar.

É preciso não dar tréguas ao mal, e isso tem aqui uma dupla consequência. Por um lado é preciso sem dúvidas parar com o bom-mocismo; é preciso deixar de prestar deferência, em nome da alegada troca civilizada de idéias, aos fautores do crime horrendo do aborto. É preciso chamar o mal de mal com toda a força dos pulmões; é preciso denunciar a insuperável incivilidade da posição abortista. Duas pessoas podem discordar — inclusive de maneira muito irredutível e muito visceral — a respeito de posições, não obstante opostas, em si mesmas respeitáveis, e mesmo dois ferrenhos adversários podem ser capazes de reconhecer isso. Mas um pró-vida não pode agir com a mesma condescendência para com um abortista. Não se está aqui tratando de duas visões de mundo legítimas: antes é o embate entre uma cosmovisão e uma cosmocegueira. A maldade intrínseca do abortismo precisa ser exposta sem tréguas, porque a apologia do pecado é pior do que o próprio pecado.

E esta é a segunda consequência: a prática do aborto é pecaminosa, mas a promoção do aborto é satânica. Se é preciso combater o abortismo com todo o afã, é igualmente preciso desdobrar-se para resgatar as almas que estão à beira do abismo do aborto ou nele já caíram. O abortismo precisa ser massacrado impiedosamente; a mulher que abortou ou pensa em abortar, no entanto, esta precisa ser salva. Estatísticas bem duvidosas dizem que uma a cada cinco mulheres aos quarenta anos já terá feito um aborto; ainda que isso fosse mesmo verdadeiro, não seria verdade que vinte por cento das mulheres fossem abortistas.

Não nos deve assombrar a vastidão do pecado; ao contrário, ela pode e deve ser vista como uma oportunidade para a superabundância da graça. Já escrevi aqui outra vez sobre as mulheres que confessavam abortos: elas podem engrossar as estatísticas dos crimes que já mancharam a nossa Pátria, mas de maneira alguma servem para pavimentar a estrada do assassínio institucionalizado. Em poucas palavras, não se sabe ao certo o número de abortos praticados nos países onde ele é proibido; quanto maior for esse número, no entanto, maior deve ser o empenho para lhe pôr renovados embaraços, para dificultar ainda mais a sua prática. É próprio da honra e da virtude combater com mais ardor, com mais afinco, com mais abnegação, quanto mais vigoroso for o inimigo que nos assalta. Ao contrário, recuar perante o avanço da iniquidade é o que faz uma nação de covardes, uma sociedade de escravos.

É preciso criatividade para cativar os corações e para salvar vidas do aborto. Não podemos mais nos dar ao luxo de levantar em defesa dos indefesos apenas alguns artigos do Código Penal; é preciso dar-lhes vida e efetividade, é preciso impingir com cores vigorosas nas almas o horror deste crime. Que haja abortos, repita-se, não deveria tanto nos assombrar; que haja quem defenda o aborto, este é o maior mal e o inimigo mais macabro, este é o demônio com o qual não é possível fazer acordos, e que é preciso exorcizar à força de mais jejuns e orações que até então vínhamos fazendo.

A Argentina não caiu. No entanto, o golpe sofrido precisa nos fazer acordar. É preciso reconhecer a seriedade da guerra e a importância de nos comprometermos mais com a causa: porque do lado de lá não faltam pessoas comprometidas com o derramamento de sangue inocente. Foi-nos concedida uma pequena vitória, mas não nos enganemos: estamos ainda em plena guerra, com o inimigo à espreita, e não nos é lícito abaixar a guarda por um instante sequer.

Demos graças ao Senhor, sim, sem dúvidas; mas que aos nossos agradecimentos se unam, também, as nossas súplicas mais ardentes e nossos compromissos mais sinceros. Obrigado, ó Virgem Santa, pela batalha recém vencida; e concedei-nos força e coragem para as que ainda nos virão. Valei-nos Cristo Senhor! Por meio da dedicação às Vossas lutas fazei-nos merecedores da Vossa paz.

Desperdícios de tempo e de energia

Parece haver um grave problema de conteúdo nas nossas redes sociais, mesmo naquelas ditas “conservadoras”. Metade do tempo se gasta com superficialidades manifestas; a outra metade, dando demasiada atenção àquilo que em si mesmo tem pouca relevância. Por exemplo: parece que a política — e, por política, refiro-me principalmente à política partidária — ocupa um espaço desproporcional naquilo sobre o que se fala, que se curte e que se compartilha. Mesmo entre católicos. Isso, além de monotemático (e, em consequência, maçante), é também equivocado: porque uma visão política simplesmente contrária à esquerda não é, por si só, sinônimo de verdadeiro progresso civilizacional; e, principalmente!, não se lhe pode confundir com uma visão de mundo católica.

Que não se me entenda mal. Este blog já falou bastante sobre política e incluso sobre eleições; este autor está convencido de que esses assuntos precisam, sim, ser debatidos e assumidos também pelos católicos enquanto tais — porque é preciso exorcizar da vida pública o espectro agourento de um anticlericalismo malsão que pretende dizer que “a religião” (e, por extensão maldosa, os religiosos) não pode(m) ter vez nem voz na vida pública. Ora, quem é católico, é-o nas vinte e quatro horas do seu dia, onde quer que se encontre, o que quer que esteja fazendo: precisa ser assim, sob pena de não se valer a pena ser católico. O sujeito que se diz católico “na vida privada” mas que acha dever (ou mesmo poder!) tomar, na vida pública, decisões contrárias àquilo que a Doutrina Católica manda e prescreve, esse sujeito é, na melhor das hipóteses, uma besta — na pior, um hipócrita.

O Catolicismo não fala apenas sobre os católicos: ele importa também uma visão, mais ampla e mais geral, do homem em si mesmo, do homem enquanto homem. Essa antropologia, se é realmente antropologia, precisa se aplicar, é evidente, ao homem sem adjetivos, ao homem, simpliciter, qualquer que seja ele. Se alguém acha que a visão católica acerca do homem não se aplica, e.g., ao homem agnóstico, ou ao homem protestante, então esse alguém, na verdade, acha que a antropologia católica não é verdadeira. Ora, se se acha que o Catolicismo está errado neste particular, qual o sentido de se afirmar católico? Se a Doutrina Cristã está errada quanto ao homem, quem garante que ela não esteja igualmente errada quanto a Deus? É por isso que a Fé não comporta escolhas (em grego, heresias): ou Aquela de quem se recebe a Fé é fiável e, portanto, à Mensagem d’Ela se deve aquiescer, ou então é preciso a tudo pôr sob escrutínio — e, nesse caso, quem é digno de confiança não é mais a Mensageira, e sim o escrutinador da Mensagem. Ainda que ambos os caminhos possam eventualmente levar ao mesmo resultado prático, os fundamentos de um e outro são completamente diferentes — e, por isso, apenas um deles merece ser chamado de “Fé”, daquela Fé sem a qual não é possível agradar a Deus.

Enfim, este blog sempre pugnou para que o católico pudesse, sim, assumir-se como católico em tudo o que faz: nas suas relações para com Deus, mas também, e principalmente, nas suas relações para com o próximo e para com a sociedade. Impedi-lo de agir dessa maneira é, em última instância, impedi-lo simplesmente de ser católico. Afirmar que religião é assunto de foro íntimo é uma estupidez sem medidas; somente é capaz de proferir um absurdo desses quem não faz a menor idéia do que seja uma religião.

Isso é uma coisa. Uma outra coisa, completamente diferente, é se deixar ser tragado pela voragem política dos arranjos partidários de ocasião, exaurindo, nas tomadas de posição contrárias ou favoráveis a tais ou quais políticos ou partidos, a própria atuação pública. E, o que é pior, confundindo isso com vitórias ou derrotas estratégicas no campo social, perdendo completamente de vista a amplidão do cenário onde se precisa atuar de maneira verdadeiramente eficaz.

O exemplo mais recente (?), que é apenas um entre muitos e que trago aqui apenas para ilustrar o que estou dizendo, foi o vai-e-volta do habeas corpus do ex-presidente Lula no último fim de semana. Todos viram a história, que envolveu três desembargadores, um juiz de primeira instância e uma sucessão desenfreada de despachos atrás de despachos, em pleno domingo, cada um dos quais pretendendo portar a mais lídima justiça, todos demandando cumprimento imediato. Não se trata de perquirir as más intenções do desembargador plantonista e nem de dissertar sobre os mecanismos de reforma de decisões judiciais providos por um direito dogmaticamente organizado; o ponto aqui é, tão-somente, apontar para a enorme quantidade de energia e atenção gastas (por este blogueiro inclusive, para o meu embaraço) em tão pouco tempo, com um assunto tão banal.

Porque não se trata de nenhum evento histórico — muito pelo contrário, é mesmo como se fosse um evento anti-histórico. Porque, domingo, as informações se sucediam e contradiziam em um ritmo tão descomedido que (acho até que já usei a imagem alhures) mesmo as últimas notícias já saíam velhas. A situação exigia um acompanhamento constante, real-time, para que não se tivesse uma informação desatualizada. E uma informação com prazo de validade exíguo é, exatamente, o tipo de informação que não entra para a história. É a exata definição de algo desimportante.

Ora, sejamos sensatos: a informação que agora serve mas que pode estar desatualizada daqui a vinte minutos não deve ocupar senão um lugar muito modesto na hierarquia de nossos conhecimentos. E, definitivamente!, não merece consumir os nossos domingos, nossas conversas, nossos pacotes de dados do celular. Se parte considerável daquilo que para nós importa não tem senão um interesse imediato, descartável, como poderemos almejar alguma espécie de permanência? Como poderemos nos elevar acima da bruta correnteza dos fatos, se é majoritariamente por eles que nos interessamos?

Como eu disse, o pandemônio do último domingo é apenas um exemplo. Porque a impressão que eu tenho é que as nossas redes sociais estão inundadas de questões da mesma natureza: as polêmicas versam sobre futilidades efêmeras e são, elas próprias, efêmeras também. É por isso que fazem tanto sucesso a timeline do Facebook ou as stories do Instagram: são, em essência, coisas que a gente vê agora e que daqui a cinco minutos podem não estar mais lá, e ninguém se importa.

A internet é uma coisa maravilhosa. Há uns anos, poucos anos!, desempenhou inestimável papel civilizacional ao franquear a palavra àquelas vozes que estavam excluídas dos meios de comunicação oficiais; hoje, no entanto, corre grande risco de dissipar esforços ao invés de os fazer convergir. Evitar essas armadilhas é empresa difícil, mas também necessária: seria um grande retrocesso permitir que a internet, após abrir um mundo de possibilidades aos homens do início do Terceiro Milênio, terminasse reduzida ao éter das redes sociais em que consiste atualmente.

O Magistério da Igreja e o Direito secular

Um amigo perguntou, dia desses, se o Papa era como o STF da Igreja Católica. A analogia na qual ele estava pensando era a seguinte: assim como é o Supremo Tribunal Federal quem diz definitivamente o que é constitucional e o que não é constitucional dentro da ordem jurídica brasileira, seria, na Igreja Católica, o Papa quem por último diria o que é ortodoxo e o que é herético dentro da Doutrina Católica. Assim como o STF diz o que é que a Constituição diz, o Papa seria aquele que diz o que é que a Revelação diz.

O Direito me parece fortemente tributário da Teologia, sem dúvidas, e é possível — mais até, é fácil — encontrar diversos paralelos entre os juristas e os teólogos. Não obstante, penso que é preciso ressaltar as diferenças entre um acórdão do STF e uma bula papal, a despeito de a metáfora acima parecer sedutora. Ou melhor, é preciso enfatizar, por todas, uma única diferença crucial e insuperável entre as duas esferas: o direito é essencialmente mutável, a doutrina não pode mudar jamais.

Isso porque o direito deve se adaptar às peculiaridades (obviamente, apenas àquelas legítimas) dos diversos tempos e lugares, dos usos e dos costumes dos homens. Com a doutrina acontece exatamente o contrário: são os homens que devem se adaptar a ela, às suas consequências e suas exigências. Daí porque é legítimo (mais até, é perfeitamente razoável, é até esperado) que um Tribunal modifique o seu entendimento a respeito de determinada norma jurídica levando em conta as transformações sociais, ao passo em que a Igreja não pode mudar jamais um jota da lei de Deus mesmo que uma centena de cidades dos homens sejam edificadas sobre os escombros da Cidade de Deus.

Sim, é claro que existe um direito natural imutável do qual o direito positivo deriva — ou ao menos deve derivar. Ainda assim a lei humana pode (e, em muitos casos, até deve) mudar. É o que ensina Santo Tomás (Summa, I-IIae, q. 97, a. 1): conquanto a lei natural não mude nunca, deve a lei positiva mudar por um duplo motivo. Primeiro, porque a razão humana é imperfeita e, portanto, as leis por ela ditadas podem ser sempre aperfeiçoadas a fim de que correspondam melhor aos ditames do direito natural. E, segundo, porque mudam naturalmente as condições dos homens, e a estes «convêm coisas diversas segundo as suas diversas condições» (id. ibid, Resp.).

O Papa (ou, melhor dizendo, o Magistério da Igreja) é infalível em determinadas condições, e aquilo que é verdadeiro não pode simplesmente passar a ser falso depois: o aprofundamento da Revelação no curso da história da Igreja, que existe, só pode ser integrativo e não superativo. Isso quer dizer que coisas distintas podem vir a se acumular no corpo doutrinário e moral da Igreja Católica, mas aquilo que era doutrinariamente certo não pode passar um dia a ser incerto, e aquilo que era moralmente ilícito não pode passar a ser lícito nem vice-versa. Com o direito é diferente, as diversas teses jurídicas podem (e em alguns casos até devem) se superar umas às outras, inclusive eivando de ilicitude aquilo que em outros tempos era perfeitamente jurídico, e isso é completamente natural. Não dá para estabelecer nenhuma comparação entre o ordenamento jurídico e o magistério eclesiástico desconhecendo essas coisas.

Certamente não faltará entre meus interlocutores quem me interpele sobre os juros, ou a tortura ou a escravidão. A isso é preciso responder sucintamente, primeiro, que nenhuma dessas coisas é intrinsecamente má; segundo, que em tempos passados determinadas condições dos homens, distintas das atuais, autorizaram-nas ou as vedaram, legitimamente; terceiro, que a consciência moral da humanidade encontra-se hoje em um patamar superior — quando menos de acúmulo de experiências históricas –, em melhores condições portanto de apreciar o que melhor convém à comunidade humana. Antes do ensino da Igreja, portanto, o que mudaram foram as condições dos homens; outrossim, o rol exíguo, restritíssimo destes exemplos históricos aponta antes para o caráter extraordinário do fenômeno do que para uma superabilidade essencial da moral católica que a pudesse tornar análoga ao direito humano.

Voltando à comparação entre o Magistério e o Judiciário, o maior problema com ela é o pressuposto que ela enseja: assim como o direito deve ser sempre revisto para melhor corresponder às mudanças sociais, então assim também o Magistério católico deveria (ao menos eventualmente) superar o seu ensino em atenção às modificações sofridas pela sociedade. Tal compreensão é falsa e ignora as sensíveis diferenças existentes entre a Igreja e o Direito secular, conforme exposto. E, por conta disso, a fim de evitar nefastas confusões, não convém traçar analogias entre os dois campos sem atentar criteriosamente para aquilo que é próprio de cada um.

O ensino religioso e a laicidade do Estado Brasileiro

Está atualmente em curso no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) onde se pede que o ensino religioso confessional nas escolas públicas seja considerado inconstitucional. No entender do Ministério Público, “o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas”. O julgamento começou na última quarta-feira e, após cinco votos, foi suspenso até o próximo dia 20 de setembro. Até o presente momento há três votos pela procedência da Ação (Barroso — que é o relator –, Rosa Weber e Fux) e dois votos contrários a ela (Alexandre de Moraes e Fachin).

De tudo o que li sobre o assunto, o texto do Dr. Rodrigo Pedroso (publicado no Senso Incomum) é seminal. Nele o Procurador da USP demonstra com clareza que, em mais de setenta anos, desde 1934, sempre se entendeu que o ensino religioso confessional ministrado nas escolas públicas não violava a laicidade do Estado Brasileiro. Ora, o Estado é Laico desde a República, com a Constituição de 1891. O ensino religioso nas escolas públicas tem sede constitucional desde 1934. Durante todo esse tempo ninguém jamais pretendeu que houvesse qualquer oposição entre as duas coisas — porque uma coisa é o Estado institucionalmente não professar qualquer credo (ou melhor, para ser mais exato, professar o credo irreligioso) e outra coisa, completamente diferente, é haver matéria religiosa facultativa nas escolas públicas.

A uma porque uma coisa é a crença que se professa e, outra coisa, a crença que se conhece. A duas porque, se o Estado fosse confessional, então por força de coerência o ensino religioso nas escolas públicas deveria ser obrigatório e não facultativo. E a três porque, se fosse confessional o Estado, então deveria ministrar somente um ensino religioso, de uma única religião — aquela da sua confessionalidade –, e não de todas as religiões que manifestassem interesse.

Quanto à primeira, diga-se que é possível relacionar-se com uma religião — com qualquer religião, mesmo com o ateísmo — de duas maneiras. É possível aderir a uma religião aceitando como válidos e verdadeiros seus princípios, seus dogmas, sua cosmovisão, e neste caso você se torna um adepto daquela religião; mas é também possível conhecer os princípios, dogmas e cosmovisão de uma religião qualquer sem necessariamente fazer qualquer juízo de valor pessoal quanto à veracidade ou validade desta religião — e neste caso você é meramente um conhecedor daquele fenômeno religioso.

Ora, o Estado ser Laico — é dizer, aderir a uma determinada cosmovisão de mundo segundo a qual Deus não existe ou não importa socialmente — significa que ele não adere a nenhuma religião tradicional (e.g. ao Catolicismo, ou ao Budismo ou ao Islamismo). Isso de maneira alguma o impede de conhecer as características de todas essas religiões e — mais ainda — de reconhecer a existência de todas elas no seio da sociedade. Ser capaz de conhecer os princípios e dogmas de uma religião em nada afeta a laicidade do Estado, da exata mesma forma como conhecer, por exemplo, a cosmovisão budista não faz com que o fiel católico seja menos católico por conta disso. Em uma palavra, ensinar (ou, antes, permitir o ensino de) uma religião não faz com que alguém se torne por conta disso adepto dessa religião — donte a argumentação da sra. Procuradora-Geral da República é um verdadeiro e escandaloso non sequitur.

Quanto à segunda, a própria posição que o ensino religioso ostenta no sistema jurídico brasileiro dá testemunho da laicidade do Estado. Afinal de contas, tal ensino é facultativo — isso quer dizer que qualquer aluno pode, à sua livre-eleição, participar dessas aulas como igualmente não participar. Ora, uma coisa que não seja obrigatória evidentemente não faz parte dos valores elegidos como constituintes por uma determinada ordem jurídica.

Porque os valores que o Estado Brasileiro considera efetivamente como próprios, ele os impõe e não teria como ser diferente. Por exemplo, a Constituição Federal garante o direito de propriedade (CF, Art. 5º, XXII). Não está ao alvitre de qualquer cidadão respeitar a propriedade privada ou não a respeitar: ao contrário, quem a desrespeita viola a ordem jurídica e pratica um ato ilícito. Suponhamos que a Constituição determinasse que a proteção à propriedade privada seria “facultativa” (por exemplo, que cada Estado-Membro da Federação poderia optar entre a propriedade privada ou a propriedade coletiva). Poder-se-ia dizer de um Estado desses que ele fosse adepto da propriedade privada? Decerto que não! Ora, por que razão então querem acusar de “religioso” um Estado que simplesmente deixa ao arbítrio dos alunos da escola pública ter ou não ter aulas de religião?

Por fim, quanto à terceira, é forçoso notar que a coexistência de posições opostas sobre determinado assunto é característica justamente de quem não tem nenhuma dessas posições como própria. Quem adota uma determinada posição precisa, necessariamente, por força de coerência, repelir todas as posições que lhe são contrárias: assim o Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (CF, Art. 1º, III), e não pode portanto assumir nenhum comportamento institucional que contrarie essa dignidade. Admitisse a República Federativa do Brasil a facultatividade na promoção da dignidade humana, ou mesmo que ela fosse ou não promovida a depender dos cidadãos, então não se poderia dizer que o país a tem como fundamento. Isso é lógico. Por que, então, haveria ofensa à laicidade em admitir o ensino religioso facultativo?

Por outra: o Estado Brasileiro tem por fundamento o pluralismo político (CF, Art. 1º, V) e, justamente por isso, encontram-se (ou, ao menos, dever-se-iam encontrar) manifestações políticas de todas as matizes em seus órgãos públicos. Quem dissesse que o Brasil não adota como própria ideologia política alguma e, por conta disso, não poderia subvencionar os diversos partidos políticos, não entenderia, em absoluto, o que significa pluralismo político. Pois bem: o discurso que intenta proibir o ensino religioso confessional é tão sem sentido quanto o que quisesse confinar os partidos políticos à esfera privada.

Neste sentido, o valor que é próprio ao Estado Brasileiro é a liberdade religiosa, e ela exige precisamente que a diversidade das religiões brasileiras esteja representada no ensino religioso confessional das escolas públicas. É justamente porque o Estado é laico e não pode adotar cosmovisão religiosa nenhuma que ele não pode impôr a todos os alunos o modelo único de “ensino religioso de natureza não-confessional” que o MPF pretende impingir às escolas públicas brasileiras. Semelhante ação judicial não pode prosperar. Sob nenhuma hipótese o Estado Brasileiro pode privilegiar a visão religiosa da Sra. Duprat em detrimento da diversidade das religiões do país.

Charlie Gard glorioso

Morreu na última sexta-feira, 28 de agosto, o pequeno Charlie Gard, o bebê britânico que recentemente comoveu o mundo enquanto sofria de uma doença mitocondrial rara para a qual seus pais buscavam desesperadamente um tratamento. Chris Gard e Connie Yates lutaram furiosamente por sua prole, desafiaram os poderosos do mundo e, com isso, angariaram a simpatia e a admiração de milhões. Pode parecer que foram baldados os seus esforços, uma vez que a criança foi morrendo lentamente, pouco a pouco, enquanto burocratas em repartições públicas discutiam pormenorizadamente em quê consistiria o “melhor interesse” de Charlie. A situação do pequeno foi ficando cada vez pior enquanto sucessivas audiências judiciais eram realizadas, até que ele não pôde mais resistir. Ao final rejubilaram-se os próceres da cultura da morte: Charlie Gard morreu, os assassinos venceram! Mas nós cristãos sabemos que nem sempre a morte é o fim da história. Pois houve um dia em que as coisas mudaram. Há dois mil anos que a morte não é uma derrota. Não mais.

Charlie Gard morreu, e agora? Apesar de tudo, penso que há fundadas razões para alegria e esperança. Em primeiro lugar, ele fez mais durante a sua curta vida do que é dado à maior parte dos infantes fazer. Ele permitiu que os seus pais fizessem ecoar pelo mundo inteiro um brado pela vida: um grito pelo direito de não medir esforços pela saúde dos que padecem enfermidades. O fato é que Charlie comoveu multidões. Muitos se interessaram pela história da criança, rezaram por ela, conversaram sobre ela, procuraram os jornais britânicos e pesquisaram sobre o sistema jurídico inglês. Charlie mereceu chamadas televisivas, capas de jornais, artigos de opinião inflamados, análises jurídicas. Conheceram a sua história, neste mundo onde é quase possível nascer, viver e morrer praticamente no anonimato.

Além disso, podem dizer que a batalha judicial foi perdida: eu, ao contrário, digo que ela foi brilhantemente vitoriosa. Não existe nenhuma possibilidade concreta de o indivíduo atual, o cidadão dos dias que correm, fazer frente ao poder burocrático quase ilimitado do Estado Moderno, do Leviathan contemporâneo. A desproporção é gigantesca e provavelmente não foi jamais tão grande: a vontade estatal tem, hoje, meios de se impôr sobre os cidadãos com os quais os maiores déspotas da Antiguidade não puderem sequer sonhar. Para se ter uma idéia do tamanho da iniquidade, os pais de Charlie não puderam falar pelo seu filho nos tribunais, e a advogada que o Estado nomeou para representar judicialmente os interesses da criança é diretora de uma associação pró-eutanásia. Jogo com maior número de cartas marcadas não poderia haver.

Aquele jovem casal britânico, no entanto, fez o impossível. Recusou-se a baixar a cabeça mesmo diante da vastidão dos exércitos de César: reclamou em público, altissonantemente, o seu direito — inalienável e sagrado! — de lutar pela vida do filho, independente do que pudessem dizer todos os juízes togados do mundo. Esta história foi uma Antígona moderna. Ao final foram eles próprios que desistiram da batalha legal, e foi somente então que o assunto ficou, com o perdão do termo, pacificado: antes a Suprema Corte já havia dado a última palavra, e a Corte Europeia de Direitos Humanos também, e ainda assim aquele casal tornou a mover mundos e fundos para conseguir — e conseguiu — levar o assunto mais uma vez aos tribunais britânicos! Ora, o Estado detém o monopólio da jurisdição, de dizer o direito, de encerrar os litígios. Em GOSH v. Gard, no entanto, parece que a disputa — mesmo a jurídica — não cessou enquanto os pais não disseram “basta”.

E mais ainda. Muito se escreveu sobre o bebê Gard; muitos inclusive ousaram defender abertamente que a vontade dos médicos devesse prevalecer sobre a vontade dos pais. Por exemplo, a BBC:

Daniel Sokol, um médico especialista em ética e advogado, disse que o caso lançou uma luz sobre esta questão [a discordância entre profissionais e familiares a respeito de um tratamento médico]. “Isto nos lembra que os direitos dos pais sobre os seus filhos não são absolutos. Eles são limitados por aquilo que é o melhor interesse da criança”.

[Aliás, pelo que andei vendo, a BBC tomou desabridamente o partido do hospital contra os pais da criança, para sua perpétua vergonha. Ao que parece, foi o mais tendencioso e insistente dos veículos de comunicação sobre o assunto.]

Mas o que se viu realmente brilhar — quase por toda a parte, mesmo na mídia secular — foram críticas à atuação das cortes e apoio à luta dos pais de Charlie. Veja-se:

The Telegraph, reproduzindo o pronunciamento de Connie Yates, mãe da Charlie: “Charlie teve uma chance real de melhorar. Agora é infelizmente tarde demais para ele, mas não é tarde demais para outros que possuam a mesma doença ou outras doenças horríveis. Nós vamos continuar a ajudar famílias de crianças doentes e tentar fazer Charlie viver nas vidas dos outros. Nós devemos isso a ele para que a sua vida não tenha sido em vão”.

The Guardian: “Vivemos em um mundo de uns e zeros (…) [e] agora até mesmo a compaixão precisa se encaixar na racionalidade empírica. É por isso que aqueles que jamais sentiram o perfume do pescoço de Charlie, aqueles que jamais o abraçaram, que jamais choraram rezando pelo seu bem-estar, são considerados os mais adequados para decidir como ele deve viver e morrer”.

The New York Times, em um artigo que defende a eutanásia: “O que torna este caso particularmente difícil é que há argumentos válidos de ambos os lados. Algumas questões morais não têm uma resposta certa. Mas, ora, se há razão em ambos os lados, há também motivos para se questionar o julgamento dos tribunais”.

E finalmente, há o próprio Charlie Gard, hoje liberto da corrupção da carne, da fraqueza, da doença. Charlie agora se encontra diante de Deus — é certo. Tendo sido validamente batizado não detinha mais a mácula do Pecado Original; morrendo antes da idade da razão, não teve pecados atuais que lhe embaraçassem a visão de Deus. Morreu portanto filho de Deus, em estado de graça, em heroico sofrimento e após comover o mundo: sua alma encontra-se na presença do Onipotente, unida à multidão de anjos e santos que, de pé, diante do Trono de Deus, intercedem em uníssono por nós que ainda mais um pouco aqui ficamos. E as almas são todas “adultas”, i.e., detêm inteligência e vontade na inteireza da natureza humana. Charlie não é mais o bebê cego e surdo que foi nos seus últimos dias: é agora uma alma humana perfeita, na plenitude de suas potências naturais, vivo e glorioso na presença do Deus Altíssimo, intercedendo por nós.

Chris Gard e Connie Yates perderam um filho; a Igreja ganhou um santo. Charlie Gard, mártir da burocracia e do utilitarismo, da sanha estatal e da cultura da morte! Que ele olhe por nós, agora que pode mais diante de Deus. Que a história dele não seja esquecida. Que a luta por ele iniciada nesta terra possa continuar e dar frutos. Que os dias vindouros sejam melhores.

A história ainda não terminou (RIP Norma McCorvey)

Não encontrei quase nenhuma repercussão na mídia nacional (em G1 há uma lacônica nota), mas faleceu no último sábado a americana Norma McCorvey, mais conhecida como Jane Roe — sim, a Roe de “Roe v. Wade”. Tinha 69 anos e foi vítima de insuficiência cardíaca (The Washington Post, BBC).

Roe v. Wade é provavelmente a maior fraude jurídica jamais realizada: em 22 de janeiro de 1973 a Suprema Corte americana legalizou o aborto nos Estados Unidos com base em uma mentira. Poucos anos antes, “Jane Roe” — que estava grávida — declarou ter sido estuprada e reclamou na Justiça o direito de abortar a criança; a decisão só veio em 73 (e Roe teve a sua filha e a entregou para adoção), mas terminou por conferir às mulheres um vergonhoso e infame «direito absoluto ao aborto» que, conquanto fosse inicialmente circunscrito ao primeiro trimestre, historicamente justificou até mesmo os partial-birth abortions que ainda hoje mancham o solo americano.

Posteriormente a própria Norma McCorvey denunciou a farsa. Em 1998 ela se converteu ao Catolicismo e, desde então, dedicou a sua vida à causa antiaborto. Ela escreveu uma autobiografia (Won by love, em ebook ou em formato impresso) que eu tenho muita vontade de ler — está na minha lista. Mas de todo modo o ponto central da celeuma é amplamente conhecido: há quarenta anos, duas advogadas feministas se aproveitaram de uma jovem confusa que, mediante uma falsa alegação de estupro, terminou sendo responsável pela legalização do aborto nos Estados Unidos. Ou seja, não apenas a decisão judicial extrapolou — em muito! — os contornos do drama de Jane Roe como a própria violência então alegada era uma mentira.

«Vou carregar este fardo para o meu túmulo», disse Norma em 2012. Infelizmente ela não conseguiu ver em vida a revogação do precedente que, de certa forma, carrega o seu nome: a infame decisão judicial continua em vigor, ceifando a cada ano centenas de milhares de vidas de crianças inocentes só nos Estados Unidos. Não foram «milhares de abortos (…) feitos legalmente no país» desde Roe v. Wade, como G1 reproduziu; na verdade o número já chega perto dos 60 milhões. É o maior assassinato em massa de que se tem notícia, ocorrendo sob o olhar indiferente de duas gerações. É um morticínio ao qual urge pôr fim.

As taxas de aborto nos Estados Unidos são, nos últimos anos, cada vez menores — porque a absurda propaganda pró-aborto é cada vez mais ineficiente em um mundo onde o acesso à informação é cada vez maior. As pessoas têm cada vez mais consciência de que a criança não-nascida é um ser humano como elas próprias e que, portanto, o seu direito à vida não pode ser relativizado em favor da “liberdade de escolha” da mulher. Fala-se que nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe, coisa com a qual todo mundo está de acordo; mas acontece que  a mulher grávida já é mãe e o que se discute é se ela tem ou não direito de vida e morte sobre o filho que carrega no ventre. É estarrecedor que, vinte séculos depois, o nefasto vitae necisque potestas que o paterfamilias romano detinha sobre os seus filhos seja ressuscitado sob a égide do barbarismo feminista. Há certas idéias que não merecem cidadania em uma sociedade civilizada; ninguém deveria aceitar discutir, por exemplo, se os negros podem ou não ser escravizados, ou se os ordenamentos jurídicos nacionais deveriam ou não proteger minorias étnicas do genocídio em seu território. Se isso é assim — e é bom que seja assim –, por que misteriosa razão deveríamos conceder aos propugnadores do crime horrendo do aborto a deferência que com toda a justiça negamos a outros tipos de assassinos?

A mera objeção de consciência não é suficiente; diante de uma injustiça clamorosa — lembremo-nos, o homicídio voluntário é pecado que clama aos Céus vingança — não é suficiente abstermo-nos de a realizar. É necessário combater incansavelmente para que o mal seja erradicado, se não do mundo dos fatos, ao menos do horizonte moral da sociedade: é impossível fazer com que os crimes deixem de ser cometidos, mas é possível e necessário batalhar para que, diante de qualquer crime, a reação pública do corpo social seja da mais taxativa reprovação. A sociedade mais avançada não é aquela onde ocorrem menos crimes, mas sim aquela onde os crimes são mais veementemente reprovados. Somente os juristas modernos são incapazes de entender isso.

No final do ano passado um comentarista político da Fox News surpreendeu ao afirmar que os Estados Unidos ainda agradeceriam à Igreja por sua posição contrária ao aborto. «A Igreja foi a única instituição que não recuou, apesar de ser ridicularizada, apesar das zombarias e dos ataques que sofreu». Contemplando ainda que com resistência o horror ao qual a depravação abortista já conduziu o mundo, Charles Krauthammer vaticinou que, um dia, «nós vamos agradecer à Igreja por ter reduzido os danos e impedido uma espécie de legalização radical, de recurso generalizado e radical ao aborto».

Norma McCorvey graças a Deus percebeu ainda em vida o mal que provocou na juventude; e a nós, os herdeiros da sua luta, cumpre não descansar enquanto o sonho dela não for realizado. Jane Roe, a militante pró-vida, partiu enquanto a Roe v. Wade ainda permanece neste mundo — e isso não deixa de nos provocar uma incômoda sensação de incompletude, como se a história tivesse terminado de forma trágica. Mas na verdade a história ainda não terminou. Que Nosso Senhor possa ter misericórdia de Norma e levar em consideração mais as suas lágrimas de penitência que o sangue das crianças mortas sob o nome dela; que a sua militância pró-vida dos últimos anos possa lhe valer o perdão dos pecados e o seu ingresso — o quanto antes! — no Reino dos Céus. E que, de lá, quando puder mais junto a Deus, ela enfim nos alcance o fim desta vergonha pelo qual batalhou até o último suspiro.

Requiem aeternam dona ea, Domine;
Et lux perpetua luceat ea.

Requiscat in pace.
Amen.

O pecado original e as tragédias sociais

O status naturalis hobbesiano em que atualmente se encontra o estado do Espírito Santo por conta da greve da PM (parece que já foram registradas 90 mortes violentas desde sábado), bem como as chacinas nos presídios que rebentaram no início do ano (por exemplo, com presos decapitados e eviscerados em Manaus) dão ensejo a algumas considerações.

Antes de tudo, é relevante registrar que as tragédias oferecem uma demonstração concreta, empírica, quase produzida em balão de ensaio, de um dos postulados mais básicos do Cristianismo: com o pecado original, a desordem foi introduzida na criação e o homem passou a sofrer uma como que inclinação natural para a prática do mal. Foi Chesterton quem disse que o pecado original era um dogma quase auto-evidente, podendo ser inferido do prosaico fato de (p. ex.) um homem esfolar um gato: diante da crueldade sem propósito ou se nega a existência de Deus (posição dos ateus) ou se afirma que existe, atualmente, uma separação entre Deus e o homem (visão de mundo cristã).

Ironicamente, o inglês acrescentava que os modernos materialistas haviam chegado a uma genial solução inovadora, negando o gato. Um século depois do Ortodoxia, os intelectuais contemporâneos — tributários daqueles contra os quais Chesterton levantou o seu gênio — chegam hoje à mesmíssima “brilhante” conclusão com cem anos de atraso.

Sobre a crise penitenciária, um ministro do STF chegou a sugerir, a sério, a legalização das drogas. A dar crédito ao ministro Barroso, então, bandidos de facções rivais só estão se matando dentro das penitenciárias porque a maconha é proibida no Brasil. “Dando certo” com a maconha — seja lá o que isso signifique –, o visionário ministro acha que se deve, também, legalizar a cocaína (!). Tudo, claro, para «quebrar o tráfico». Parece não ocorrer ao senhor ministro a hipótese de o tráfico continuar funcionando a despeito da legalização — como, mutatis mutandis, os cigarros ilegais movimentam bilhões de reais anualmente no país, mesmo não havendo notícia de que o tabaco tenha sido algum dia criminalizado. Igualmente não interessa a Luís Roberto Barroso o singelo fato de a cocaína não ser legalizada em lugar nenhum do mundo; a legislação estrangeira só brilha aos olhos do ministro quando é para introduzir o aborto por vias escusas no país.

No mesmo contexto, um artigo da Carta Capital enumera diversos problemas dos presídios capixabas; curiosamente, é o último artigo do «Justificando» sobre o Espírito Santo, escrito pouco antes da barbárie que tomou conta das ruas do final de semana para cá. Longe do portal pretensamente jurídico, a página inicial da revista ostenta uma chamada dizendo que a culpa da crise é do «ajuste fiscal» do governador pemedebista. Last but not least, o Sakamoto acredita que o problema só se pode resolver com a desmilitarização da polícia, a qual o articulista considera mero «instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém».

É preciso muito sangue frio, reconheça-se, para usar o assassinato de noventa capixabas com o fito de atacar o governo do PMDB; do mesmo modo se exige uma dose particularmente refinada de psicopatia para achar que uma rebelião penitenciária (onde os presos estão literalmente arrancando as cabeças dos membros das facções rivais) é uma boa oportunidade para defender a legalização da cocaína. Sob a tagarelice da mídia fica assim diluída a responsabilidade individual, à qual ninguém parece dar grande importância; ao mesmo tempo, pontificando soluções mirabolantes, as pessoas fingem se esquecer de que existe, no âmago de qualquer «crise social», (i) indivíduos humanos que respondem a estímulos e (ii) cujos atos exigem responsabilização.

Indivíduos que respondem à estímulos: se o número de assaltos, saques e assassinatos aumenta precisamente quando se sabe que o policiamento ostensivo não está nas ruas, e sendo esta a única variável relevante sofrendo alteração considerável, é imperativa a conclusão de que fulano é menos propenso a assaltar, saquear ou assassinar quando sabe que corre risco maior de ser pego pela polícia. Em poucas palavras, a sensação de impunidade favorece o crime. Isto, que é óbvio e empiricamente verificável, quase não se encontra no discurso público oficial — e, ao contrário, não falta quem defenda que o «poder de punir do Estado» precisa urgentemente ser revisto porque, na verdade, ele existe para garantir «a permanência de um projeto de exploração».

Atos que exigem responsabilização: toda ação humana tem consequências e todo ato mal realizado introduz no mundo uma desordem que cumpre ser reparada. Isso está no âmago da consciência moral de todo mundo; não é outra a razão pela qual a função retributiva da pena foi sempre universalmente aceita pela totalidade das civilizações, só passando a ser questionada em alguns estratos da sociedade decadente contemporânea — nada coincidentemente, uma sociedade que perdeu a própria noção de mal moral (a «negação do gato» de Chesterton erigida a senso comum). Sim, a pena de morte é uma leprosa; mas mesmo os que não querem nem ouvir falar dela sentem um certo incômodo diante da ideia de que não há nada que possa ser feito com um sujeito que, já preso, mata, esquarteja e eviscera seres humanos.

Mas tudo isso é somente a parte, digamos, externa da questão — aquela que diz respeito à proteção dos terceiros inocentes. Há que se falar também — e principalmente! — das questões envolvendo o indivíduo criminoso, tanto para evitar que ele delinqua quanto para a sua eventual redenção. A experiência de Vitória nos ensina que colocar a polícia nas ruas é uma forma eficaz de minimizar os saques e arrastões; no entanto, não seria melhor se as pessoas não fizessem o mal independente de haver ou não quem as castigue?

O mal é uma contingência permanente da liberdade humana e, como tal, não pode ser erradicado. Mas é possível e necessário consumir a nossa vida na luta contra ele. É preciso educar para a virtude — essa expressão que se encontra atualmente tão fora de moda. É preciso incutir nas pessoas a idéia de que existe no mundo uma ordem que as transcende. Um assaltante sabe que assaltar é errado e alguém que saqueia uma loja de eletrodomésticos não gostaria de ter a própria casa saqueada; por quê, então, ele saqueia?

Todo pecado é uma desordem no sentido de que é antepôr um bem menor a um bem maior. Um televisor é um bem, mas o fato de que este bem pertence ao seu dono legítimo (àquele que empregou tempo e dinheiro na sua produção ou aquisição) é um bem maior. O problema dos assaltantes não é que eles não entendam ou não reconheçam o direito de propriedade; o problema é que eles sacrificam o direito de propriedade alheio (o bem maior) à satisfação da própria vontade (o bem menor). Esta é a desordem essencial. Respeitar o direito alheio só é possível em detrimento da própria vontade, impondo-lhe limites, dizendo-lhe que ela não pode ter aqui, agora e sem mais o bem de que desejaria fruir já. Isto, na verdade, é o antiquíssimo exercício de mortificação da própria vontade proposto pela Igreja há vinte séculos e ao qual os poderosos há dois mil anos dão as costas.

Nietzsche chama isso pejorativamente de «moral de escravos»; mas não era preciso que o caos se instalasse em uma metrópole brasileira para que se percebesse que a satisfação universal das vontades particulares é impossível. É bastante evidente que se as pessoas forem condicionadas antes a satisfazer que a renunciar às próprias vontades a violência vai cedo ou tarde exsurgir. Nada surpreendentemente, a moral que o alemão desdenhava como «escrava» é a única possível em sociedade e, por isso mesmo, é a única que torna os homens livres. Fora dela o que existe é a barbárie e a lei do mais forte.

Há décadas a nossa sociedade ocidental vem publicamente rejeitando a moral cristã, e os resultados estão aí para quem quiser ver: demonstrados na teoria e verificados na prática. A mera repressão jurídica, policial, conquanto evidentemente necessária, fornecesse apenas um verniz de civilização: o verdadeiro problema é mais profundo. Vem lá do Éden! E para ele somente a Igreja tem solução. Franquear-Lhe publicamente o pastoreio das almas, assim, é o mais eficaz remédio para a paz e a prosperidade, quando todas as panacéias apresentadas pelos Seus detratores se mostraram catastróficas.

Para Barroso, aborto no primeiro trimestre não é crime

A decisão de ontem do STF — 1ª Turma afasta prisão preventiva de acusados da prática de aborto — padece de graves problemas éticos e jurídicos, diante dos quais o estupor nacional que ora acomete a população não pode chegar ao ponto de a deixar inerte. Há diversos problemas em curso no país, sem dúvidas, mas este aqui é de longe o de maior importância — e portanto é o que requer a nossa atenção imediata e o dispêndio dos nossos melhores esforços.

Trata-se de um Habeas Corpus (HC 124306) onde se pedia o relaxamento da prisão preventiva de alguns médicos que haviam sido presos, no Rio de Janeiro, por dirigirem uma clínica de aborto. A medida já havia sido liminarmente concedida mas, ontem, no julgamento definitivo, o ministro Barroso trouxe uma nova argumentação para afastar a prisão preventiva: o aborto no primeiro trimestre de gestação não seria crime e, portanto, não é possível aplicar a prisão preventiva porque ela tem como pré-requisito, como é óbvio, a «existência do crime» (CPP, caput do 312, in finis).

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A íntegra do voto do Barroso está aqui. A sua tese é a de que «é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre», em cuja “demonstração” o ministro consome a paciência dos seus leitores ao longo de muitas laudas. Ora, os absurdos são patentes.

Em primeiro lugar, é evidente, à toda evidência, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não considera o aborto um direito fundamental. Isso é bastante óbvio e exsurge imediatamente

a) quer da leitura do próprio texto da Carta Magna (onde o aborto não é mencionado),
b) quer do desenvolvimento histórico do direito brasileiro (para o qual o assassinato de crianças no ventre das suas mães sempre constou entre aqueles atos tão socialmente reprováveis a ponto de merecerem a censura do Direito Penal),
c) quer da realidade social brasileira, sempre majoritariamente contrária ao aborto (e que nem mesmo todo o lobby dos grupos sedizentes feministas e das ONGs financiadas a peso de ouro por organizações internacionais pró-aborto logrou modificar),
d) quer da legislação internacional sobre direitos humanos da qual o Brasil é signatário (v.g. a Convenção Americana de Direitos Humanos).

Enfim, a mais comezinha percepção da realidade dá notícia de que a Constituição não permite o aborto. Ora, dizer que, por força de dispositivo constitucional, o aborto no primeiro trimestre da gestação deve ser excluído do «âmbito de incidência» das normas penais que incriminam o aborto outra coisa não é que dizer que a Constituição consagra o direito ao aborto — o que é uma patente inverdade. Quando o Barroso diz isso, portanto, ele não está preocupado com a realidade objetiva do ordenamento jurídico brasileiro: ele simplesmente tem uma vontade e a quer fazer valer independente de qualquer coisa. Não se trata portanto de legítimo lavor jurídico, mas sim de impôr uma vontade particular sobre uma população que já deu todas as mostras possíveis de que taxativamente a rechaça. O que à evidência não é democrático.

E a farsa também se reveste de notas pouco republicanas quando se observa o seguinte: foram cinco os ministros que discutiram essa questão, sozinhos, sem fazer alarde, sem convocar a população, sem nada. Ora, são duzentos milhões de brasileiros, 513 deputados, 81 senadores… e o que vale é a opinião de cinco sujeitos que chegaram à Suprema Corte pelas vias escusas da indicação política? Se todas as tentativas de impôr o aborto ao Brasil mediante os procedimentos democráticos fracassaram, tal é porque a sociedade brasileira não o quer. Não se pode nem dizer que não haja consenso sobre o tema: não é verdade, há consenso, há um enorme e massivo consenso de que a legislação atual — com o aborto proibido, não sendo punido apenas em poucas situações excepcionais — é satisfatória. Isso é outra daquelas coisas que a realidade grita aos nossos ouvidos; mas o ministro Barroso não tem preocupações com a realidade democrática, pois o que ele quer é moldar um mundo de acordo com a sua vontade onipotente.

Reduzir o colegiado da discussão — trazendo-a para o âmbito restrito de cinco colegas de trabalho — quando o consenso obtido pelo âmbito mais amplo é contrário ao que se deseja é desonesto. É óbvio que é desonesto: se eu não consigo convencer abertamente as pessoas de que a minha posição é melhor, reunir-me os com meus amigos para decidir a questão a portas fechadas e depois impô-la a todos aqueles que eu não logrei convencer é um expediente censurável sob qualquer ótica que se o considere. Isso independe do mérito da questão: ainda que se tratasse não do assassinato horrendo de crianças mas da coisa mais justa do mundo, ainda assim, não seria aceitável, não seria honesto, democrático, republicano, não seria decente decidir a portas fechadas o contrário do que se vem consistentemente decidindo nos espaços democráticos de tomada de decisão. Isso não se pode admitir, não se pode aceitar, não se pode abaixar a cabeça e deixar por isso mesmo.

A argumentação do Barroso, como sempre, é repleta de engodos e circunlóquios capciosos: na verdade não existe um único argumento a favor do aborto que não se baseie, no fundo, em algum sofisma. O aborto viola “direitos fundamentais da mulher” (nn. 23-31)? Ora, em qualquer conflito de direitos fundamentais, é evidente que o direito à vida deve prevalecer sobre a “integridade psíquica”, ou a “autonomia” da mulher, ou qualquer outra coisa parecida — a idéia de que «o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação» (n. 45) é simplesmente infame e abre, escancara as portas ao mais odioso utilitarismo. A humanidade já viu ordenamentos que sopesavam o direito à vida de acordo com suas características (com, por exemplo, a vida dos deficientes tendo um «peso concreto» menor frente a outros direitos), e isso não foi bom. A criminalização não protege o nascituro (nn. 35-39)? Ora, mas é evidente que protege — os números de abortos clandestinos (cuja exata dimensão ninguém conhece justamente por eles serem clandestinos) são sempre inflados pelos grupos pró-aborto, todo mundo sabe disso. É evidente que o número de abortos aumenta com a legalização, porque não tem lógica absolutamente nenhuma sustentar que uma mesma população, em igualdade de condições, possa hoje praticar menos um procedimento seguro e legal do que praticava, ontem, um inseguro e criminoso. Existem «diversos países desenvolvidos do mundo» (n. 41) onde o aborto é descriminalizado? Ora, e daí, somos agora capachos do Primeiro Mundo? O Brasil não é mais um país livre com uma população soberana capaz de se autodeterminar?

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Em suma: uma imposição autoritária, feita de maneira oblíqua e pouco democrática, mediante sofismas os mais grosseiros, em prejuízo da vida humana inocente e indefesa: eis o golpe que o Brasil sofreu ontem. Em um país sério seria de se esperar a imediata exoneração desses senhores: mas aqui eles zombam e escarnecem de nós, confiantes na impunidade que sua posição lhes acarreta. Quando Luís Roberto Barroso foi nomeado para o STF eu disse aqui que «mesmo na hipótese do Partido [dos Trabalhadores] deixar hoje a presidência do país, bastar-lhe-ia sentar e esperar a colheita maldita que inexoravelmente viria» — isso foi em 2013! Ontem a conta chegou e Barroso não fez mais que cumprir o papel anunciado, combinado e acordado. Vergonha para o país, castigo para nós.