Não basta não ser pecador, é preciso ser santo

Ainda sobre a questão dos abusos sexuais praticados por membros do clero, foram publicados nos últimos dias diversos textos abordando aspectos bastante pertinentes do problema. Comento aqui somente um ou outro ponto deles, escolhidos por afinidade temática e não por serem necessariamente os mais importantes. O assunto é bem grave e demanda mesmo textos longos, cuja leitura na íntegra este post não tem a pretensão de suprir.

Chamo a atenção, em primeiríssimo lugar, para o Carlos Ramalhete apontando o homossexualismo como a verdadeira raiz do problema. «O que agora vem se tornando claro, ainda que disso pouco se falasse no começo do escândalo, mas que eu vinha falando desde que estes horrores inomináveis começaram a vir à luz, é que as vítimas, em sua imensíssima maioria, não eram criancinhas, mas rapazinhos. Em outras palavras, não se trata, nunca se tratou, de um escândalo de pedofilia, sim de efebofilia. Ou, em outras palavras, de homossexualismo.» 

Esta análise, é importante frisar, não é característica exclusiva de católicos conservadores. Gostaria de lembrar que mesmo os ataques virulentos de um Reinaldo Azevedo contra o celibato católico têm esse mesmíssimo pano de fundo. Veja-se, por exemplo, velharias como “Igreja não é armário”, “Ou a Igreja acaba com o celibato ou o celibato acaba com a Igreja” (sic) e “Sacerdócio não é armário”. Naturalmente, este blog por diversas vezes já se levantou contra a tagarelice do sr. Reinaldo quando de suas incursões pouco piedosas no terreno do Catolicismo; neste caso específico, no entanto, o erro dele é de terapêutica e não de diagnóstico. A constatação de que há homossexuais infiltrados no clero católico é uma constatação verdadeira; a idéia de acabar com o celibato por conta disso é que é uma estupidez.

É compreensível que as pessoas — de boa ou de má vontade — queiram apontar soluções para o problema; talvez mais do que nunca, esta é uma marca dos dias atuais. Mas existem alguns pontos que não podem ser obscurecidos. Primeiro, que a reforma da vida sacerdotal virá dos sacerdotes e não dos leigos — e, portanto, as intermináveis laudas publicadas na internet sobre o assunto não podem aspirar senão a um papel bem modesto nesta batalha. Segundo, que a abominação da desolação exige de nós orações redobradas: o Papa Francisco chegou a pedir ao povo de Deus jejum e oração, lembrando que — segundo Nosso Senhor — é somente à força deles que certos demônios podem ser expulsados. E, terceiro, que a vastidão dos pecados do clero não nos pode fazer perder de vista — nem por um segundo — a multidão ainda mais inumerável de padres honestos, que decerto prefeririam morrer a desonrar a vocação sacerdotal a que um dia foram chamados. É preciso, mais do que nunca, rezar por eles.

Este último ponto, no entanto, precisa de maiores desenvolvimentos. É que o lobby gay dentro da Igreja aparenta ser tão vasto que houve até quem falasse em uma corrupção do clero a rivalizar com a da época dos Bórgia (!). A retórica é exagerada e até mesmo injusta; mas que se deixe isso um pouco de lado por enquanto, porque a situação é calamitosa, e às vezes acontece de pessoas bem intencionadas errarem a mão na hora de se levantarem contra injustiças. O fato é que um laxismo generalizado paira sobre a Igreja, e isso é escandaloso e atrai a ira de Deus. «O triunfo da degradação homossexual em tantas dioceses e ministérios na Igreja Católica», diz o artigo do Matthew Hoffman, «deve-se a uma causa fundamental: a aceitação generalizada de um laxismo moral que minimiza a gravidade do pecado sexual e entende a continência como um simples “ideal”, fora do alcance de um católico comum.»

Trata-se de um naturalismo grosseiro que desdenha da graça de Deus e que, em última instância, almeja confinar a sublime vocação humana à santidade em uma vida medíocre e acomodada. Trata-se de uma completa inversão do ideário missionário da Igreja, que sempre consistiu na elevação moral dos católicos para muito além do espírito do seu tempo e, hoje, parece empenhado em reduzir as sublimes exigências do Cristianismo à altura de homens tíbios e pusilânimes, satisfeitos em se arrastar mundo afora curvados sob o peso da própria sensualidade. Trata-se, em suma, de algo indigno da Igreja nascida do costado traspassado de Cristo no alto da Cruz, que foi fundada para arrancar dolorosamente o pecado do mundo e não para acomodar confortavelmente o mundo no pecado.

Essas cores podem parecer demasiado vívidas, mas é sinceramente difícil escolher outras com as quais se possa pintar honestamente o panorama atual. Cada notícia que nos chega é mais escabrosa do a anterior. Agora o Michael Voris denunciou uma rede de tráfico de seminaristas homossexuais (!) da Colômbia para os Estados Unidos, que funcionou durante anos e se estendia por diversas paróquias e dioceses do leste americano. A matéria fala em “por lo menos seis diócesis implicadas”, número que, por conta das informações que continuam chegando, “sigue creciendo”.

Tudo isso é um acinte, é um escárnio, é uma vergonha. E uma situação assim drástica exige uma reação também vigorosa, enérgica, radical. Diante de tamanha podridão não é suficiente se manter fleumaticamente afastado: é preciso o combate explosivo, colérico, visceral. Os pecados são muitos e muito graves; é preciso contrapôr a eles um clero santo. Não é o suficiente guardar a própria castidade, é preciso fazer violência contra o laxismo hegemônico. Não basta não ser homossexual, não basta não estar envolvido em escândalos, é preciso denunciar e combater os que desonram a Igreja de Nosso Senhor. Não basta levar uma vida meia-boca, dessas que, como se diz, “não fede nem cheira”: é preciso ser trigo sadio e vistoso, que se ergue, dourado, em direção ao sol, abafando e sufocando com a própria virtude o joio circundante. Não basta não ser pecador; é preciso ser santo.

E que nós, leigos, possamos rezar mais e nos mortificar mais, que passemos a nos voltar para Deus com mais frequência e com mais confiança, e que levemos mais a sério a Fé em Cristo que a Igreja nos legou. Ela sofre e agoniza. Nós queremos vê-La saudável e resplandecente, iluminando todos os homens e sendo, na História, instrumento eficaz da glória de Deus e da salvação das almas. Mas nossas mãos estão atadas. Sacerdotes de Cristo, tomai sob vosso encargo, corajosamente, virilmente, a defesa da Esposa de Nosso Senhor! É a vós que primeiro compete restaurá-La. Sem vós nada podemos fazer.

A Argentina resiste

E o aborto não foi legalizado na Argentina. Não desta vez. É sem dúvidas uma vitória importante, é algo a se comemorar e a agradecer, de joelhos!, a Nosso Senhor e à Virgem Santíssima; mas é também um importante aviso de que devemos — precisamos! — sair da defensiva e assumir um maior protagonismo nesta encarniçada guerra que se trava, escancarada, bem diante de nossos olhos, entre a vida civilizada e a cultura da morte. O aborto não foi aprovado de ontem para hoje na Argentina; mas ele poderia ter sido aprovado, e essa só possibilidade já é uma tragédia e uma vergonha. O avanço da barbárie foi terrível; o estrago que já foi feito é desmesurado; e talvez não estejamos levando suficientemente a sério toda a dimensão do que nos incumbe fazer.

É preciso continuar alerta. O projeto que fora aprovado na Câmara dos Deputados por uma verdadeira maioria de ocasião — 128 votos favoráveis contra 124 contrários — foi derrubado esta madrugada no Senado e não poderá voltar a ser apresentado até a próxima sessão legislativa, que só se inicia em março do ano que vem. No entanto, ainda este mês o Parlamento argentino vai começar a discutir a reforma do Código Penal — que, como não poderia deixar de ser, também vai precisar se posicionar sobre o crime do aborto. A batalha foi superada, mas a guerra está ainda muito longe de acabar.

É preciso não dar tréguas ao mal, e isso tem aqui uma dupla consequência. Por um lado é preciso sem dúvidas parar com o bom-mocismo; é preciso deixar de prestar deferência, em nome da alegada troca civilizada de idéias, aos fautores do crime horrendo do aborto. É preciso chamar o mal de mal com toda a força dos pulmões; é preciso denunciar a insuperável incivilidade da posição abortista. Duas pessoas podem discordar — inclusive de maneira muito irredutível e muito visceral — a respeito de posições, não obstante opostas, em si mesmas respeitáveis, e mesmo dois ferrenhos adversários podem ser capazes de reconhecer isso. Mas um pró-vida não pode agir com a mesma condescendência para com um abortista. Não se está aqui tratando de duas visões de mundo legítimas: antes é o embate entre uma cosmovisão e uma cosmocegueira. A maldade intrínseca do abortismo precisa ser exposta sem tréguas, porque a apologia do pecado é pior do que o próprio pecado.

E esta é a segunda consequência: a prática do aborto é pecaminosa, mas a promoção do aborto é satânica. Se é preciso combater o abortismo com todo o afã, é igualmente preciso desdobrar-se para resgatar as almas que estão à beira do abismo do aborto ou nele já caíram. O abortismo precisa ser massacrado impiedosamente; a mulher que abortou ou pensa em abortar, no entanto, esta precisa ser salva. Estatísticas bem duvidosas dizem que uma a cada cinco mulheres aos quarenta anos já terá feito um aborto; ainda que isso fosse mesmo verdadeiro, não seria verdade que vinte por cento das mulheres fossem abortistas.

Não nos deve assombrar a vastidão do pecado; ao contrário, ela pode e deve ser vista como uma oportunidade para a superabundância da graça. Já escrevi aqui outra vez sobre as mulheres que confessavam abortos: elas podem engrossar as estatísticas dos crimes que já mancharam a nossa Pátria, mas de maneira alguma servem para pavimentar a estrada do assassínio institucionalizado. Em poucas palavras, não se sabe ao certo o número de abortos praticados nos países onde ele é proibido; quanto maior for esse número, no entanto, maior deve ser o empenho para lhe pôr renovados embaraços, para dificultar ainda mais a sua prática. É próprio da honra e da virtude combater com mais ardor, com mais afinco, com mais abnegação, quanto mais vigoroso for o inimigo que nos assalta. Ao contrário, recuar perante o avanço da iniquidade é o que faz uma nação de covardes, uma sociedade de escravos.

É preciso criatividade para cativar os corações e para salvar vidas do aborto. Não podemos mais nos dar ao luxo de levantar em defesa dos indefesos apenas alguns artigos do Código Penal; é preciso dar-lhes vida e efetividade, é preciso impingir com cores vigorosas nas almas o horror deste crime. Que haja abortos, repita-se, não deveria tanto nos assombrar; que haja quem defenda o aborto, este é o maior mal e o inimigo mais macabro, este é o demônio com o qual não é possível fazer acordos, e que é preciso exorcizar à força de mais jejuns e orações que até então vínhamos fazendo.

A Argentina não caiu. No entanto, o golpe sofrido precisa nos fazer acordar. É preciso reconhecer a seriedade da guerra e a importância de nos comprometermos mais com a causa: porque do lado de lá não faltam pessoas comprometidas com o derramamento de sangue inocente. Foi-nos concedida uma pequena vitória, mas não nos enganemos: estamos ainda em plena guerra, com o inimigo à espreita, e não nos é lícito abaixar a guarda por um instante sequer.

Demos graças ao Senhor, sim, sem dúvidas; mas que aos nossos agradecimentos se unam, também, as nossas súplicas mais ardentes e nossos compromissos mais sinceros. Obrigado, ó Virgem Santa, pela batalha recém vencida; e concedei-nos força e coragem para as que ainda nos virão. Valei-nos Cristo Senhor! Por meio da dedicação às Vossas lutas fazei-nos merecedores da Vossa paz.

Desperdícios de tempo e de energia

Parece haver um grave problema de conteúdo nas nossas redes sociais, mesmo naquelas ditas “conservadoras”. Metade do tempo se gasta com superficialidades manifestas; a outra metade, dando demasiada atenção àquilo que em si mesmo tem pouca relevância. Por exemplo: parece que a política — e, por política, refiro-me principalmente à política partidária — ocupa um espaço desproporcional naquilo sobre o que se fala, que se curte e que se compartilha. Mesmo entre católicos. Isso, além de monotemático (e, em consequência, maçante), é também equivocado: porque uma visão política simplesmente contrária à esquerda não é, por si só, sinônimo de verdadeiro progresso civilizacional; e, principalmente!, não se lhe pode confundir com uma visão de mundo católica.

Que não se me entenda mal. Este blog já falou bastante sobre política e incluso sobre eleições; este autor está convencido de que esses assuntos precisam, sim, ser debatidos e assumidos também pelos católicos enquanto tais — porque é preciso exorcizar da vida pública o espectro agourento de um anticlericalismo malsão que pretende dizer que “a religião” (e, por extensão maldosa, os religiosos) não pode(m) ter vez nem voz na vida pública. Ora, quem é católico, é-o nas vinte e quatro horas do seu dia, onde quer que se encontre, o que quer que esteja fazendo: precisa ser assim, sob pena de não se valer a pena ser católico. O sujeito que se diz católico “na vida privada” mas que acha dever (ou mesmo poder!) tomar, na vida pública, decisões contrárias àquilo que a Doutrina Católica manda e prescreve, esse sujeito é, na melhor das hipóteses, uma besta — na pior, um hipócrita.

O Catolicismo não fala apenas sobre os católicos: ele importa também uma visão, mais ampla e mais geral, do homem em si mesmo, do homem enquanto homem. Essa antropologia, se é realmente antropologia, precisa se aplicar, é evidente, ao homem sem adjetivos, ao homem, simpliciter, qualquer que seja ele. Se alguém acha que a visão católica acerca do homem não se aplica, e.g., ao homem agnóstico, ou ao homem protestante, então esse alguém, na verdade, acha que a antropologia católica não é verdadeira. Ora, se se acha que o Catolicismo está errado neste particular, qual o sentido de se afirmar católico? Se a Doutrina Cristã está errada quanto ao homem, quem garante que ela não esteja igualmente errada quanto a Deus? É por isso que a Fé não comporta escolhas (em grego, heresias): ou Aquela de quem se recebe a Fé é fiável e, portanto, à Mensagem d’Ela se deve aquiescer, ou então é preciso a tudo pôr sob escrutínio — e, nesse caso, quem é digno de confiança não é mais a Mensageira, e sim o escrutinador da Mensagem. Ainda que ambos os caminhos possam eventualmente levar ao mesmo resultado prático, os fundamentos de um e outro são completamente diferentes — e, por isso, apenas um deles merece ser chamado de “Fé”, daquela Fé sem a qual não é possível agradar a Deus.

Enfim, este blog sempre pugnou para que o católico pudesse, sim, assumir-se como católico em tudo o que faz: nas suas relações para com Deus, mas também, e principalmente, nas suas relações para com o próximo e para com a sociedade. Impedi-lo de agir dessa maneira é, em última instância, impedi-lo simplesmente de ser católico. Afirmar que religião é assunto de foro íntimo é uma estupidez sem medidas; somente é capaz de proferir um absurdo desses quem não faz a menor idéia do que seja uma religião.

Isso é uma coisa. Uma outra coisa, completamente diferente, é se deixar ser tragado pela voragem política dos arranjos partidários de ocasião, exaurindo, nas tomadas de posição contrárias ou favoráveis a tais ou quais políticos ou partidos, a própria atuação pública. E, o que é pior, confundindo isso com vitórias ou derrotas estratégicas no campo social, perdendo completamente de vista a amplidão do cenário onde se precisa atuar de maneira verdadeiramente eficaz.

O exemplo mais recente (?), que é apenas um entre muitos e que trago aqui apenas para ilustrar o que estou dizendo, foi o vai-e-volta do habeas corpus do ex-presidente Lula no último fim de semana. Todos viram a história, que envolveu três desembargadores, um juiz de primeira instância e uma sucessão desenfreada de despachos atrás de despachos, em pleno domingo, cada um dos quais pretendendo portar a mais lídima justiça, todos demandando cumprimento imediato. Não se trata de perquirir as más intenções do desembargador plantonista e nem de dissertar sobre os mecanismos de reforma de decisões judiciais providos por um direito dogmaticamente organizado; o ponto aqui é, tão-somente, apontar para a enorme quantidade de energia e atenção gastas (por este blogueiro inclusive, para o meu embaraço) em tão pouco tempo, com um assunto tão banal.

Porque não se trata de nenhum evento histórico — muito pelo contrário, é mesmo como se fosse um evento anti-histórico. Porque, domingo, as informações se sucediam e contradiziam em um ritmo tão descomedido que (acho até que já usei a imagem alhures) mesmo as últimas notícias já saíam velhas. A situação exigia um acompanhamento constante, real-time, para que não se tivesse uma informação desatualizada. E uma informação com prazo de validade exíguo é, exatamente, o tipo de informação que não entra para a história. É a exata definição de algo desimportante.

Ora, sejamos sensatos: a informação que agora serve mas que pode estar desatualizada daqui a vinte minutos não deve ocupar senão um lugar muito modesto na hierarquia de nossos conhecimentos. E, definitivamente!, não merece consumir os nossos domingos, nossas conversas, nossos pacotes de dados do celular. Se parte considerável daquilo que para nós importa não tem senão um interesse imediato, descartável, como poderemos almejar alguma espécie de permanência? Como poderemos nos elevar acima da bruta correnteza dos fatos, se é majoritariamente por eles que nos interessamos?

Como eu disse, o pandemônio do último domingo é apenas um exemplo. Porque a impressão que eu tenho é que as nossas redes sociais estão inundadas de questões da mesma natureza: as polêmicas versam sobre futilidades efêmeras e são, elas próprias, efêmeras também. É por isso que fazem tanto sucesso a timeline do Facebook ou as stories do Instagram: são, em essência, coisas que a gente vê agora e que daqui a cinco minutos podem não estar mais lá, e ninguém se importa.

A internet é uma coisa maravilhosa. Há uns anos, poucos anos!, desempenhou inestimável papel civilizacional ao franquear a palavra àquelas vozes que estavam excluídas dos meios de comunicação oficiais; hoje, no entanto, corre grande risco de dissipar esforços ao invés de os fazer convergir. Evitar essas armadilhas é empresa difícil, mas também necessária: seria um grande retrocesso permitir que a internet, após abrir um mundo de possibilidades aos homens do início do Terceiro Milênio, terminasse reduzida ao éter das redes sociais em que consiste atualmente.

“E para ter uma vida tranquila, mata-se um inocente.”

Nos últimos dias, a mídia anti-clerical parece ter “descoberto”, embasbacada, o catolicismo do Papa Francisco. Foi por ocasião da recente, infame e ilegítima votação da Câmara dos Deputados argentina que, por 129 votos a favor e 125 contra, aprovou um projeto de lei (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) autorizando o crime do aborto até a 14ª semana de gestação. Em meio à escalada da sanha homicida das sociedades degeneradas contemporâneas, ninguém parece ter se levantado contra o enorme absurdo que é admitir que cinco míseros votos parlamentares — verdadeira e evidente maioria de ocasião — tenham o poder de condenar à morte crianças no ventre materno. Veja-se, que o direito de vida e morte sobre outrem fosse submetido a votação, ainda que por maioria qualificada, ou mesmo por unanimidade, já seria um retrocesso, uma barbárie! Que tal “direito” possa ser admitido por uma diferença de cinco votos entre duzentos e setenta e cinco votantes, aí já é um escárnio e uma loucura. Trata-se de 1,8%. É óbvio que nenhuma coisa em favor da qual se possa decidir legitimamente com base em uma diferença tão pequena é levada a sério por quem se sujeita a essas regras. Por cinco votos dentre trezentos é possível decidir sobre a data da festa da colheita da cidade, entre duas datas igualmente boas; ou sobre o nome do próximo presidente do Parlamento, entre dois nomes igualmente legítimos. Decidir, no entanto, entre a vida e a morte por essa margem, é coisa que deveria fazer corar de vergonha até mesmo os abortistas que guardam algum apreço pelos processos democráticos.

Mas o que isso tem a ver com o catolicismo do Papa? É que, no final de semana seguinte, Sua Santidade fez um discurso improvisado — no qual, aliás, nem mencionava a Argentina — onde disse o óbvio: que é um absurdo matar crianças para que se tenha uma vida tranquila, que isso é uma regressão ao paganismo mais abjeto, que hoje fazemos o mesmo que os nazistas faziam, só que «com luvas brancas». Foi o suficiente para que a mídia, que passou os últimos anos enaltecendo com tanto afinco a figura deste Papa progressista, que estaria empenhado em modernizar a Igreja, que seria o perfeito oposto do seu antecessor alemão, foi o suficiente, eu dizia, para que essa mesma mídia transformasse o Papa em inimigo público número 1 e passasse a exigir, aos berros, a sua renúncia.

Não é figura de linguagem. A Carta Capital estampou uma manchete onde pedia “Deixe o trono, Francisco”, e onde fazia questão de reafirmar a sua «dissidência com esta Igreja que se recusa a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias». Oras, agora ser contra o assassínio frio e deliberado de crianças no ventre de suas mães passou a ser recusar-se a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias! O que tem uma coisa a ver com a outra? Estivéssemos em pleno regime escravocrata, essa revista censuraria os abolicionistas por negarem aos senhores de engenho o serem sujeitos de suas próprias histórias? É evidente que a questão escravagista não era mera implicância contra os donos de escravos, mas sim uma questão básica de humanidade para com os seres humanos escravizados; como, do mesmíssimo modo, é óbvio que a questão pró-vida não é displicência para com mulher gestante, mas sim defesa do ser humano em risco de ser abortado.

Menos inflamada, mas ainda assim bastante reveladora, foi a coluna da Cora Rónai para O Globo (excertos aqui). Sem esconder o seu descontentamento e a sua insatisfação, a autora afirma que «[o] Papa Francisco é um perigo» porque — ó novidade! — «é tão aferrado aos dogmas medievais da Igreja quanto o papa Ratzinger». E expõe assim a sua preocupação:

A palavra de um líder religioso aparentemente aberto e antenado ao seu tempo tem um peso muito maior do que a palavra de um homem que cultiva ostensivamente a tradição, e não faz a menor questão de ser popular.

O papa Francisco pode causar estragos muito maiores do que o papa Ratzinger jamais sonhou.

Ora, que os Papas sejam (necessariamente) católicos é um pressuposto que não se deveria sequer pôr em discussão. Com o Papa Francisco até essa obviedade foi posta em causa; defendeu-se, dizendo que era católico e filho da Igreja. Quanto a isso, jamais pode ser acusado de haver querido enganar ninguém. No entanto, vemos, agora, os não-católicos virem à mídia carpir as suas alegadas decepções e se insinuarem traídos por uma Papa que — coisa incrível! — se recusa a abraçar as doenças do Terceiro Milênio.

Os doentes e os pecadores sempre receberam uma atenção especial do Papa Francisco. Porque é esta a verdadeira missão revolucionária da Igreja, desde sempre, desde as mais singelas páginas do Evangelho onde Nosso Senhor afirma ter vindo não para os sãos mas sim para os doentes, não para os justos, mas para os pecadores. No entanto, ao contrário do mundo, não se verá jamais a Igreja ou o Papa abraçando a doença ou o pecado — e essa é a diferença essencial entre quem realmente se preocupa com a humanidade e quem mancomuna-se com Satanás para espalhar dor sobre o mundo.

Entre o Papa que ama os doentes e o mundo que espalha doenças, não deve ser difícil escolher quem merece ser ouvido. A Igreja acolhe os pecadores enquanto o mundo exalta o pecado: é por isso que a Igreja permanece enquanto o mundo cai de degeneração em degeneração. No fundo, a histeria dos anti-clericais, como tudo o que fazem, não tem verdadeira razão-de-ser: é somente outra tentativa vil e desonesta (igual em seus objetivos, aliás, à que procura apresentar o Papa como um Che Guevara de branco) de afastar as pessoas do Vigário de Cristo e da verdadeira Igreja de Nosso Senhor — único lugar onde o homem pode encontrar realmente a felicidade e a paz.

Ó Beleza tão antiga e tão jovem

Foi divulgada hoje a lista dos prelados brasileiros que participarão, no próximo mês de outubro, do Sínodo dos Bispos que ocorre em Roma. O tema do Sínodo é a juventude. Foi divulgado também o Instrumentum Laboris da Assembléia, sobre o qual parece que a única coisa que a mídia foi capaz de falar foi que tinha sido a primeira vez que o termo “LGBT” era empregado em um documento oficial da Igreja.

Neste quesito o progressismo tem bem pouca coisa para comemorar. Acontece que um instrumentum laboris é aquilo que o próprio nome diz: um instrumento de trabalho. Trata-se de um documento, por assim dizer, descritivo e não prescritivo: o que nele se contém não é a doutrina nem a praxis da Igreja (nunca foi), mas sim um relato de alguma situação do mundo sobre a qual a Igreja é instada a se pronunciar. É aliás exatamente para isso que periodicamente se reúne a Assembléia do Sínodo dos Bispos.

Por exemplo, o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2001 dizia o seguinte: «a mentalidade secularizada de grande parte da sociedade, bem como a ênfase exagerada sobre a autonomia do pensamento e a cultura relativista, levam as pessoas a considerarem as intervenções do Bispo, e também do Papa, sobretudo em matéria de moral sexual e familiar, como opiniões entre outras opiniões, sem influência na vida» (n. 107). Trata-se, como é evidente, de uma descrição do problema. Ninguém em sã consciência poderia ler esse texto e acreditar que a Igreja estivesse abrindo as Suas portas para o relativismo.

Ainda outro exemplo: o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2010, sobre o Oriente Médio, dizia que a “islamização penetra nas famílias também através dos meios de comunicação em massa e das escolas, modificando assim as mentalidades que, sem o saber, vão-se islamizando” (n. 34). Mais uma vez, isso não se trata de capitulação da Igreja perante o Islã, mas tão-somente da apresentação — tão exata quanto possível — da situação que a assembléia sinodal era chamada a apreciar. É essa a forma de trabalho deste organismo eclesial desde há muito tempo.

E com isso chegamos ao documento atual, cujo teor é o seguinte:

Alguns jovens LGBT, mediante várias contribuições feitas à Secretaria do Sínodo, manifestaram o desejo de «se beneficiar de uma maior proximidade» da Igreja e experimentar um maior cuidado por parte d’Ela, ao passo que algumas Conferências Episcopais se perguntam sobre o que propôr «aos jovens que, ao invés de formarem casais heterossexuais [sic — coppie eterosessuali], decidem constituir pares homossexuais [coppie omosessuali] e, sobretudo, desejam permanecer próximos da Igreja». (n. 197)

A esta redação é possível fazer dois reparos. O primeiro deles é que “LGBT” não é propriamente uma identidade (a rigor, ninguém “é” LGBT), a não ser como uma espécie de identidade tribal: trata-se de um fenômeno gregário da juventude atual, da mesma forma que, há alguns anos, os jovens se reuniam sob a subcultura punk. E o segundo é que seria muito conveniente evitar o emprego da mesma palavra — no italiano, coppie — para se referir a duas coisas tão gritantemente distintas como os casais e as duplas homossexuais: afinal de contas, para citar outro Instrumentum Laboris do mesmo Sínodo dos Bispos, de há apenas três anos, «[n]ão existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família» (Instrumentum Laboris da XIV Assembléia Ordinária do Sínodo dos Bispos, n. 130).

Mas o que é verdadeiramente impressionante é o dado social que estas linhas revelam. Ora, o pecado é, por definição, uma revolta contra Deus. É possível até compreender como uma fraqueza o pecado eventual, o pecado irrefletido: mas o pecado que é conscientemente defendido, o pecado que é erigido a um estilo de vida, este é a coisa mais anticatólica que pode haver. É possível amar verdadeiramente a Deus e, ainda assim, cair ao longo da vida em muitos pecados, mesmo graves. Mas defender racionalmente aquilo mesmo que Deus abomina, isso só é possível dando-se orgulhosamente as costas ao Criador.

A Cidade dos Homens é oposta a Cidade de Deus; a subcultura gay é oposta à Cultura Católica. No entanto, para horror dos revolucionários, mesmo os jovens iludidos com o canto-de-sereia da tribo LGBT não conseguem dar totalmente as costas ao chamado que lhes faz a Igreja de Nosso Senhor! Ora, isso significa que a cultura tribal não lhes é o suficiente. Os anticlericais quiseram libertar os homens do peso da Igreja; hoje, livres, distantes d’Ela, os homens A contemplam de longe e sentem vontade de a Ela retornar. A descristianização foi um fracasso fragoroso; os livre-pensadores de outrora ficariam envergonhados.

O que está escrito neste documento, em curtas palavras, é que a «cultura gay» não é suficiente para a juventude. E nem o poderia ser jamais: criados para as coisas grandiosas, para a glória do Altíssimo, para o heroísmo, é somente no amoroso cumprimento da vontade de Deus que os jovens podem se sentir enfim realizados. Enquanto não abraçarem esta Doutrina libertadora, sentirão sempre que falta alguma coisa e estarão constantemente insatisfeitos. Satanás construiu uma eficiente prisão para manter os homens afastados de Nosso Senhor; no entanto, ele não pode impedir que, por detrás dos seus muros fétidos, as almas enxerguem a cruz que se ergue sobre o campanário da igreja — e experimentem, ainda que inconfessadamente, o desejo furtivo de trocar a decadência da tribo pela riqueza da grande família dos filhos de Deus.

Feliz Páscoa!

É Páscoa! Nosso Senhor ressurgiu Glorioso do túmulo para nos infundir coragem. E se antes estávamos fracos e acabrunhados, se agonizávamos sob o peso das nossas culpas, se vagávamos a esmo, sem destino, agora todas essas coisas passaram, agora o mundo é novo e o futuro nos chama a coisas grandiosas.

Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais — é, assim, segura a nossa esperança, certa a nossa vitória. Se o nosso Deus deixou atrás de Si o sepulcro, que haveremos de temer? Que são os nossos pecados, nossas fraquezas, nossos medos, perto da glória da Ressurreição? Se o nosso Deus chegou a morrer por nós, que coisa haverá que Ele não faça em nosso favor?

Que Cemitério é este de onde brota tanta vida? Que Tumba é essa que exala o doce odor do Paraíso? Que Homem é esse que caminha à nossa frente, altivo, garboso, sob o estandarte da Cruz? Sigamo-Lo!

A manhã do domingo de Páscoa, junto com as trevas da noite, dissipa as trevas dos últimos dias, dos últimos séculos, da história da humanidade inteira desde Adão. Cristo ressuscitou! Deixemos as coisas antigas para trás. Vivamos a vida que o Salvador nos mereceu.

Feliz Páscoa!

Tempus tacendi

Estando Cristo morto e sepultado, cabe indagar qual é ou deveria ser o comportamento dos discípulos. Porque não parece que lhes restassem muitas opções além da tristeza e da prostração que presumivelmente se abateram sobre eles. Não foi justamente o Salvador quem disse: “sem Mim, nada podeis fazer” (Jo XV, 5)? Ele é a Videira e nós não somos senão os ramos; se a videira está morta, poder-se-ia acaso esperar que os ramos estivessem vicejantes?

O Sábado Santo radicaliza aquela passagem do Eclesiastes segundo a qual para tudo há um tempo debaixo dos céus (cf. Ecl 3, 1-8). É-nos por vezes muito difícil imaginar que possa haver um «tempo para calar» (v. 7b) em meio à sempre premente necessidade de anunciar “oportuna e inoportunamente” (cf. IITm 4, 2) o Evangelho da Salvação. Ora, como podemos ficar calados se o Templo Santo de Deus encontra-se tomado por vendilhões? Como ficar calados se as ovelhas, dispersas, vagam a esmo, sujeitas às feras selvagens, à chuva e ao frio, aos espinhos e às ribanceiras? Como ficar calados se o povo de Deus definha e falece, sedento da Sã Doutrina da Salvação? Como ficar calados sem que as próprias pedras, para nossa vergonha, ponham-se a clamar em nosso lugar?

Mas, no entanto, há tempus tacendi, e quem no-lo diz é o próprio Deus através das Escrituras Sagradas, tanto por palavras quanto por exemplos. Por palavras, na já referida passagem do Eclesiastes, onde a sentença se profere insofismável: de fato, há “tempo para calar, e tempo para falar” (Ecl 3, 7). Mas Deus o atesta também através de exemplos, o mais eloquente dos quais nós podemos encontrar no dia de hoje, no Sábado Santo, no grande Silêncio que caiu sobre a terra enquanto Nosso Senhor jazia no sepulcro.

O Verbo de Deus jaz silente no túmulo. E, considerando os acontecimentos dramáticos que vivenciámos nos últimos dias, isso parece um verdadeiro anti-clímax. Em menos de vinte e quatro horas, entre a noite da Quinta-Feira Santa e a tarde da Sexta-Feira da Paixão, assistimos à sucessão vertiginosa de acontecimentos intensos: a Ceia, a agonia no Horto das Oliveiras, a traição de Judas, a prisão, os sucessivos julgamentos — em casa de Anás e de Caifás, perante Pilatos, perante Herodes –, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário, a Crucificação, a morte, a sepultura. Todas essas coisas se sucederam umas às outras tão depressa que mal tivemos tempo de respirar; e agora já faz uma noite inteira e um dia inteiro que nada acontece, e este silêncio contrasta pesadamente com a loquacidade dos dois primeiros dias do Tríduo Santo.

E o mais perturbador é isto: as coisas aparentemente nunca estiveram tão fora de controle quanto depois da Morte do Salvador. O Messias foi crucificado, o grupo que Ele passara os últimos três anos formando se encontra agora desacreditado, disperso e perdido, e todas as promessas com as quais Ele conquistou os corações dos Seus discípulos afiguram-se, agora, incumpridas e incumpríveis. Se formos olhar pelo aspecto teológico a coisa é ainda mais desoladora, porque com o Deicídio parece que o Pecado Original encontra a sua última e definitiva realização: os pecadores que um dia foram expulsos por Deus do Paraíso agora reafirmam e aprofundam a ruptura primeva expulsando a Ele do mundo dos vivos.

E, no entanto, para nossa perplexidade, é justamente nesta hora dramática, neste momento decisivo, que o Altíssimo decide não fazer nada: Deus permanece morto no Túmulo enquanto o mundo desmorona, Cristo simplesmente Se retira da terra justamente no momento em que d’Ele mais precisamos.

E não se diga que o Salvador estava ocupado obrando milagres no mundo dos mortos. Sim, é fato que Nosso Senhor morto desceu aos infernos para resgatar os justos do Antigo Testamento aos quais o Pecado Original até ontem fechava as portas do Paraíso; para tal, no entanto, não haveria necessidade dos três dias que separam a Cruz da Ressurreição. Na verdade, ao descer aos infernos Cristo quebrou-lhes imediatamente as trancas, como ensina o Aquinate (Summa, IIIa, q. 52, a. 2. ad. 2); se se demorou por lá foi por conveniência e vontade livre, não por necessidade. E se houve um dia em que aprouve a Deus quedar-se silente enquanto as ovelhas se dispersavam, talvez devêssemos levar isso em consideração nos nossos apostolados e na nossa vida particular.

Porque sem Deus não há nada que possamos fazer; e se Ele se cala, talvez não seja a nós que compita gritar. Ora, Cristo é Senhor da História e é Cabeça da Igreja; e, portanto, o que o Corpo Místico de Cristo obra na História não escapa aos misteriosos desígnios da Providência que rege o mundo.

Se a Igreja permanece em silêncio, se Ela parece dormir, talvez não seja a nossa vocação substituir-nos à Hierarquia Sagrada — ou pelo menos não na condenação in concreto dos erros que grassam no mundo. Ainda que as ovelhas saiam em debandada, ainda que a obra do Divino Redentor pareça fracassar — não pareceu assim no Sábado Santo? –, ainda que o mundo pareça ruir: há momentos em que Deus silencia e, por absurdo que nos pareça, por difícil que nos seja, pede-nos o silêncio também.

Mas não qualquer silêncio: o «tempo de calar» não se confunde com a acomodação nem com a covardia. O silêncio que devemos a Deus é um silêncio obsequioso e confiante, um silêncio que guarde a palavra de Deus e anime a Fé dos que estiverem conosco: um silêncio como o dos Apóstolos reunidos em torno da Santíssima Virgem durante o tempo em que Jesus permaneceu no Sepulcro.

Talvez a Igreja esteja vivendo um grande Sábado Santo, e talvez devamos olhar com mais cuidado para este último dia do Tríduo a fim de discernir aquilo que Deus espera de nós nos dias de hoje. Porque, enquanto o Senhor jazia nas profundezas da terra, não parece que o debate público com os fariseus fosse aquilo que os discípulos de Cristo devessem fazer. O apologeta é uma vocação necessária na Igreja, sem a menor sombra de dúvidas, mas o apologeta que não suporta o sofrimento, a dor, a humilhação, o silêncio, não é um apologeta e sim um polemista. Há momentos em que um silêncio esperançoso é mais útil e edificante do que um falatório desesperado.

O Senhor jaz no Túmulo, mas não nos deixará para sempre. É noite na Igreja, mas a Aurora do Domingo já vem. Que a Virgem do Silêncio, Nossa Senhora da Soledade, sustente-nos nestes dias difíceis — como sustentou a Igreja nascente durante o tempo em que o Seu Filho esteve morto. Os assaltos do Inferno não prevaleceram naquele tempo; também hoje não haverão de prevalecer. A Vigília Pascal já começa. Um dia haveremos de chamar gloriosa a esta noite.

Oxalá tivéssemos as mãos vazias

Muitas pessoas têm muitas visões sobre Nosso Senhor: para uns Ele é um taumaturgo, para outros, um sábio divulgador da regra áurea, uns O vêem ainda como um Rei generoso e providente, e ainda outros O querem um defensor das liberdades individuais. Já eu penso que nada resume tão bem o Cristianismo como a Sexta-Feira Santa, e os homens errariam bem menos acerca de Cristo se se acostumassem a encará-Lo como a Liturgia de hoje O apresenta ao mundo.

Porque a história do dia de hoje nos mostra duras verdades. A primeira e mais óbvia delas é a realidade da nossa maldade, entregando à morte um Homem inocente, preferindo, a Ele, um bandido conhecido e condenado. Naquela turba que pediu a Pilatos a Crucifixão de Cristo todos nós estamos vergonhosamente representados, e isso se trata de um dos pontos mais básicos do Catecismo: Cristo morreu por nós. Dito assim, em palavras curtas, em uma sentença já gasta pelos séculos, a frase parece perder muito de sua verdadeira força de expressão, e é por isso que precisamos ler e reler incontáveis vezes as quatro narrativas da Paixão de Cristo, e é por isso que a Igreja precisa repetir, a cada ano, todo o ritual da Semana Santa: quando se diz que Cristo morreu por nós, o que se quer realmente dizer é que cada um de nós pode e aliás deve se reconhecer naqueles judeus que, hoje, exigiram que o Sangue d’Ele fosse derramado.

Não fosse o suficiente, a nossa ira destrutiva não foi dirigida contra um nosso semelhante: foi contra o Deus Todo-Poderoso, o Criador do Céu e da Terra, Aquele de Quem viemos e sem o Qual nada podemos fazer. Trata-se, assim, de verdadeiro instinto auto-destrutivo: querer matar o Criador é o mesmo que desdenhar da própria Criação, e as Trevas que envolveram o mundo enquanto Cristo agonizava na Cruz somente por muito pouco não tragaram definitivamente todo o Universo. Nunca o mundo esteve tão periclitante quanto naquelas horas terríveis em que Nosso Senhor sufocava no alto do madeiro! Nós morríamos enquanto O matávamos. Aceitávamos lançar sob trevas a terra inteira, contanto que O lançássemos à escuridão do Sepulcro. Trata-se de uma inversão perversa da ética humana: a nossa razão nos manda fazer aos outros o bem que gostaríamos que nos fizessem, mas no Gólgota nos regozijávamos em sofrer o mal que nos satisfazia infligir ao Filho de Deus. Dir-se-ia que de bom grado aceitaríamos até padecer na cruz, contanto que pudéssemos também crucificar a Nosso Senhor inocente.

E essa lógica perversa é o retrato da história humana: nós somos, no fundo, uns animais cujo instinto destrutivo supera até mesmo o de autopreservação. “Chorai por vós mesmas”, disse Cristo enquanto subia o Calvário, “porque, se eles fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco?” (Lc 23, 31).

Essa maldade não costuma ser suficientemente compreendida. Não é simplesmente que não valêssemos nada: nós já nada valíamos antes, na época dos Profetas, durante a vida pública de Jesus, até o Domingo de Ramos, vá lá. Com a Paixão de Cristo, no entanto, a nossa situação sofre uma piora inimaginável, porque acrescentamos, ao nada que já somos, a culpa infinita do deicídio. Oxalá estivéssemos de mãos vazias! Hoje elas estão cheias de sangue — e o sangue dos justos clama aos Céus vingança e atrai a ira de Deus.

Mas ao lado da nossa perversidade está o amor incondicional de Deus — amor usque ad mortem, até a Cruz. É um paradoxo notável. É precisamente quando temos mais culpa que somos enfim perdoados. O ato que é o maior dos nossos crimes é também, ele próprio, a fonte da nossa Redenção, e isso é assombroso e, passados vinte séculos, até hoje nos assombra.

E diante da Cruz de Cristo todos os demais aspectos da Sua vida são colocados em sua correta perspectiva. De todos os milagres que Ele se realizou, nenhum se compara a essa prodigiosa transmutação de crime em perdão, de morte em vida. Os ensinamentos que Ele nos transmitiu, somente após resgatados pelo sangue do Cordeiro nos os podemos cumprir. A maior das riquezas que Ele tem para nos dar é a Vida Eterna que nos foi alcançada do alto da Cruz. E tudo o que podíamos ser e fazer até o dia de hoje, tudo é palha e cinza e nada agora que temos a santa liberdade dos filhos de Deus.

A suprema doação da Cruz é prova do amor de Deus por nós; e diante desse amor é impossível não se comover. Quando o véu do Templo rasgou-se ao meio, também alguma coisa precisa se ter rasgado dentro de nós. Quando a lança perfurou o coração de Cristo, também o nosso coração precisa haver sido traspassado. O mal que entrara em nós lá no Éden foi finalmente, após séculos, extirpado. Nosso Senhor morto desce ao sepulcro; e agora também nós podemos, enfim, morrer em paz.

A Última Ceia já foi

E os Quarenta Dias já se escoaram e já chegamos ao Tríduo Santo, ao cerne do drama da nossa Redenção. Ressoam nos nossos ouvidos aqueles versos duros, embaraçosos, da alma surpreendida pelo retorno inesperado do seu Senhor: “mas como dar, sem tempo, tanta conta, / eu, que gastei sem conta tanto tempo…?”.

Tanto tempo…! Onde foi parar a Quaresma? Como assim já é Quinta-Feira Santa, já é a Última Ceia? O roxo da Liturgia das últimas semanas não se impregnou o suficiente em nossas almas; esse branco de hoje — que surge, assim, de repente, sem pedir licença, sem nos dar tempo de nos preparar — tem um aspecto assustador. E toda a penitência que deixamos de fazer? E as mortificações que planejamos e ficaram sem se realizar? E as orações todas que os nossos lábios não remeteram a Deus? E a nossa conversão…?

Queremos, ainda, a nossa Quaresma! Mas a Páscoa urge e não nos espera, o Cordeiro tem pressa de ser imolado.

Infelizes de nós, que atravessamos as últimas semanas sem lhes prestar a devida atenção. Os paramentos eram roxos e nós, olhando-os, não os víamos; o Gloria cessava em nossas igrejas e nossos ouvidos, acostumados ao burburinho do mundo, não percebiam aquele silêncio. Enquanto tudo na Quaresma apontava e conduzia para estes dias de hoje, nós continuávamos seguindo com as nossas vidas como se tudo fosse sempre o mesmo. Como se a espera pudesse se estender para sempre, como se a Semana Santa não nos fosse chegar enquanto não nos dignássemos a fazer a nossa Preparação.

Mas ela chega. Ainda ontem gritávamos Hosanna!, ramos na mão, e nem nos apercebíamos de que a lua, silenciosa, crescia. Hoje é a mesma Lua Cheia que iluminou o rosto ensanguentado de Cristo naquela noite de primavera no Horto — e por pouco também isso nos passava batido. Os céus de nossas cidades escondem a Lua Pascal, como as nossas ocupações ocultam a Semana Santa. O Tríduo estava às portas e quase não o notamos. A Última Ceia já foi; o Gólgota já se prepara.

Os porcos, em campo aberto, vivem com a cabeça voltada para o solo — e por isso nunca vêem o céu de onde lhes vêm o sol e a chuva. E nós, piores que eles, chafurdando em meio às distrações da vida, frequentamos as nossas igrejas, assistimos às nossas missas, sem no entanto elevar os olhos ao Calvário e sem ver o Cordeiro que o sobe, cruz sobre os ombros, para morrer em nosso lugar. Já é praticamente Sexta-Feira da Paixão e quase não o percebíamos!

Mas bendito seja Deus pelo Tríduo Santo! Porque a celebração de hoje — enfim, graças a Deus — nos perturba e nos liberta de nosso torpor. Se não pelo sacrário aberto e vazio, se não pelo lava-pés, se não pelo estrépito das matracas, se não pela procissão ao som do Tantum Ergo, se não pelo cantochão que acompanha o monótono desnudamento do altar, se não pela Missa que termina sem ter um fim, se não por nada disso, ao menos por aqueles paramentos brancos, luminosos, terríveis!, que nos dizem que a Quaresma já acabou, que o tempo favorável se encontra encerrado e que é chegada, enfim, a nossa Páscoa. Quem se converteu, se converteu; quem não se converteu, que cuide de derramar, depressa!, as suas melhores lágrimas, suplicando misericórdia. Cristo já nos foi tirado.

E eis que estamos na Capela da Reposição, com a igreja à meia-luz, de joelhos diante de Nosso Senhor Sacramentado. Ficamos um pouco; já em breve voltaremos para nossas casas, tomaremos um banho refrescante e uma boa refeição, conversaremos um pouco com nossas famílias, deitar-nos-emos em lençóis confortáveis para dormir, diz-se, o sono dos justos. Mas o único Justo está sozinho e ferido, sujo, agrilhoado, tem fome, tem sede e não vai dormir esta Noite. E de repente percebemos que se toda a nossa existência pudesse ser consumida em uma eterna vigília de Quinta-Feira Santa aos pés de Cristo encarcerado, ainda assim seria pouco, seria nada, ainda seríamos eternos devedores ingratos da Vítima Pascal que nos mereceu a Salvação.

Tudo o que podemos fazer não vale uma gota do Sangue derramado neste dias santos, no Horto, na casa de Anás, na prisão, no pretório, no Calvário. Só nos resta contemplar esses mistérios. Rogando a Deus que Se digne nos fazer de algum modo participar da Sua Paixão.

Calendário Quaresmal 2018

Às vésperas do Carnaval — da Quaresma portanto –, com os Evangelhos da Septuagésima e da Sexagésima ainda ecoando em nossos ouvidos, em muito boa hora encontramos o calendário quaresmal que o pessoal do Regnum Christi preparou para este ano de 2018.

É mais uma Quaresma com a qual a Divina Providência nos agracia, mais quarenta dias — uma vez mais! — para lamentarmos todo o tempo perdido até então. É tempo, e tempo por excelência, de nos voltarmos para Deus; e para alcançá-Lo não é sempre necessário fazermos grandes coisas ou darmos grandes passos. A misericórdia de Deus é tão grande que Ele Se deixa alcançar mesmo por nossos passos humildes e vacilantes, pelas pequenas coisas que realizamos por Ele e para Ele.

A Quaresma está às portas e podemos torná-la profícua por meio de pequenas atitudes, de pequenos propósitos, de coisas simples e despretensiosas. Ninguém é incapaz de viver a Quaresma, porque ela é feita não somente dos rompantes dos santos mas também das obscuras penitências do homem comum. Talvez não possamos — não por enquanto, não este ano… — transformar o mundo; mas podemos transformar, um pouco que seja!, estes nossos dias em honra de Nosso Senhor. Oxalá isso nos salve as almas.

Aqui estão algumas (graças a Deus já tradicionais) sugestões para viver estes dias. O calendário pode ser baixado nos seguintes formatos:

Que o roxo penitencial que reveste as nossas igrejas possa recobrir também o nosso coração ao longo deste tempo santo. Que o jejum, a oração e a esmola elevem a nossa alma das coisas terrestres para as celestiais. Que os nossos pecados encontrem arrependimento e reparação nestes dias que antecedem o Calvário. Que a Virgem Santíssima nos conduza com paciência ao longo desta Santa Quaresma.