O Cân. 838 antes e depois do Magnum Principium

O motu proprio do Papa Francisco sobre Liturgia — Magnum Principium, até o presente momento apenas com versões em italiano e em latim no site da Santa Sé — é uma incógnita. Aquilo a que ele se presta é, basicamente, modificar o Cân. 838 do Código de Direito Canônico para (supostamente) descentralizar o processo de tradução dos livros litúrgicos para as línguas dos diversos países, conferindo maior autonomia às Conferências Episcopais locais. A tabela abaixo compara redação atual do Código, ainda vigente até o final de setembro, com as alterações propostas pelo Motu Proprio:

Versão Atual (PT) Versão Atual (IT) Nova Versão
Cân. 838 — § 1. O ordenamento da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja, a qual se encontra na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no Bispo diocesano. Can. 838 – §1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano. Can. 838 – § 1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano.
§ 2. Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal, editar os livros litúrgicos e rever as versões dos mesmos nas línguas vernáculas, e ainda vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas litúrgicas. §2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici e autorizzarne le versioni nelle lingue correnti, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate fedelmente ovunque. § 2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici, rivedere gli adattamenti approvati a norma del diritto dalla Conferenza Episcopale, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate ovunque fedelmente.
§ 3. Compete às Conferências episcopais preparar as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados nos próprios livros litúrgicos, e editá-las, depois da revisão prévia da Santa Sé. §3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, dopo averle adattate convenientemente entro i limiti definiti negli stessi libri liturgici, e pubblicarle, previa autorizzazione della Santa Sede. § 3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare fedelmente le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, adattate convenientemente entro i limiti definiti, approvarle e pubblicare i libri liturgici, per le regioni di loro pertinenza, dopo la conferma della Sede Apostolica.
§ 4. Ao Bispo diocesano, na Igreja que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar. §4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti. § 4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti.

 

As alterações são mínimas, e estão grafadas em negrito acima.

Os parágrafos primeiro e quarto permanecem iguais. No parágrafo segundo, a diferença entre os verbos «autorizzarne» (redação antiga) e «rivedere» (nova redação) não importa diminuição das competências da Santa Sé — como se antes ela precisasse autorizar as mudanças e, agora, passasse-as simplesmente a rever. Primeiro porque o verbo latino da versão nova é idêntico ao da redação atual — «(…) eorumque versiones in linguas vernaculas recognoscere (…)» — e, segundo, porque (e sobre isso há uma nota explicativa no Motu Proprio) o Pontifício Conselho para a interpretação dos textos canônicos e legislativos já esclareceu, em 2006, que a recognitio «não é uma aprovação genérica e sumária nem muito menos uma simples “autorização”, tratando-se, ao contrário, de um exame ou de uma revisão atenta e detalhada». Tanto é assim que outras traduções (como a portuguesa) já grafam, na versão atual, «rever as versões» em vez de «autorizar as versões».

Assim, a meu ver, a diferença é que antes a Santa Sé revia as próprias traduções feitas pelas Conferências (le versioni nelle lingue correnti) e, agora, passa a precisar rever somente as adaptações (gli adattamenti) eventualmente aprovadas pelas Conferências Episcopais.

O que muda no parágrafo terceiro — afora a (oportuna) ênfase na necessidade de que as traduções sejam feitas fielmente — é que as Conferências passam a poder «aprovar» as traduções dos livros litúrgicos, após a “confirmação” da Santa Sé («post confirmationem Apostolicae Sedis»). Ou seja, para a publicação (e consequente entrada em vigor) dos livros litúrgicos traduzidos, antes, exigia-se a recognitio da Santa Sé, hoje, é preciso a confirmatio da Sé Apostólica.

As diferenças são, assim, entre as traduções e entre as adaptações, e entre a revisão e a confirmação:

Antes do MP Após o MP
Traduções para o vernáculo Exigiam revisão da Santa Sé Exigem confirmação da Santa Sé
Adaptações litúrgicas Não eram mencionadas no Código Exigem revisão da Santa Sé
Revisão Era devida para as traduções dos livros litúrgicos É devida para as adaptações litúrgicas
Confirmação Não era mencionada no Código É devida para as traduções dos livros litúrgicos

 

Na teoria a diferença entre essas coisas está bem clara, como mostrou o Mons. Arthur Roche, o secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que apresentou um comentário sobre o motu proprio. A recognitio é uma atividade ativa e criteriosa, em cujo seio é permitido à Santa Sé inclusive modificar o trabalho das Conferências Episcopais; a confirmatio é mera ratificação do trabalho levado a cabo pelos bispos, que «pressupõe uma avaliação positiva da fidelidade e da congruência dos textos elaborados em relação à Edição Típica» dos livros litúrgicos. Na prática, contudo, podem surgir dificuldades.

Imagine-se a hipótese de a tradução de uma determinada Conferência não guardar congruência ou fidelidade para com a Editio Typica — ou seja, faltar um pressuposto da confirmatio como exigido pelo Magnum Principium. Neste caso, não podendo mais a Santa Sé intervir diretamente na tradução (hipótese só admitida para a recognitio), o motu proprio parece tornar todo o processo mais lento e burocrático: o texto deveria então voltar para a Conferência, que deveria proceder por conta própria às correções devidas, para depois enviá-lo novamente a Roma e aguardar a chancela dicasterial — que pode inclusive não vir mais uma vez, se não houverem sido sanados os vícios que levaram a Sé Apostólica a negar a confirmação da primeira vez. Não se vislumbra, destarte, o benefício que a mudança do Cân. 838 pode trazer.

Sobre as adaptações litúrgicas — inclusive profundiores aptationes, como consta no documento… –, tendo em conta os horrores dos abusos litúrgicos com os quais os fiéis católicos foram desgraçadamente forçados a conviver nas últimas décadas, não é possível sequer imaginar que bem aos fiéis possa delas advir. No entanto, como o procedimento para a aprovação delas permanece mais rigoroso (sendo inclusive, s.m.j., o mesmo já em vigor há mais de duas décadas por força da Varietatis Legitimae), parece não haver nenhuma mudança nesta matéria por conta do Magnum Principium.

Justificativas descabidas para a comunhão dos divorciados

O artigo de D. Víctor Manuel Fernández sobre o Capítulo VIII da Amoris Laetitia publicado na última edição da revista Medellín — a despeito do que alguém poderia pensar por conta da nome da revista — está, em linhas gerais, bastante sensato: não autoriza de nenhuma maneira a sanha sacrílega de se admitir os divorciados recasados à comunhão eucarística que vem tomando conta de certos setores eclesiásticos. Haveria no entanto alguns apontamentos necessários, que passo a fazer abaixo.

Em primeiro lugar (medellín 168, p. 453), não há diferença rigorosamente nenhuma entre assumir o compromisso de viver em plena continência (São João Paulo II na Familiaris Consortio, 84) e esforçar-se por viver como amigos (Bento XVI na Sacramentum Caritatis, 29b): uma expressão implica na outra sem solução de continuidade. Afinal de contas, o único compromisso exigível ao cristão é o de se esforçar para fazer a vontade de Deus, uma vez que ninguém pode garantir a priori que nunca mais vai tornar a pecar; e viver como amigos significa, exatamente, viver em plena continência, uma vez que aos amigos não é facultada a prática de atos conjugais próprios dos esposos. Não há nenhuma evolução entre os dois documentos, como se a Igreja estivesse ensaiando “um passo à frente” nessa matéria; por sua vez, a proposta dos liberais de se conferir a Sagrada Eucaristia para quem vive em relações adulterinas não guarda nenhuma compatibilidade ou gradação com os documentos apresentados.

O artigo dá a entender que, anteriormente, os que viviam em segundas núpcias não podiam receber os Sacramentos nem mesmo se estivessem vivendo em plena continência (medellín 168, p. 452), sendo a autorização para comungar nesta última hipótese uma novidade trazida por São João Paulo II. Não sei se isso é exato mas, em qualquer caso, vem ao encontro de tanto quanto já falei aqui sobre o assunto: para mim é claro que o sentido da norma é evitar por um lado que as pessoas em pecado mortal comam e bebam a própria condenação (cf. CCE §1385) e, por outro lado, afastar mesmo qualquer aparência de confusão acerca da Doutrina Católica sobre o Matrimônio e a Eucaristia. A contrario sensu, portanto, se (note-se bem, SE) não há responsabilidade subjetiva apta a configurar pecado mortal e não se produzem escândalos nem se induz a erro acerca da Doutrina, então a participação discreta nos Sacramentos é lícita. Isso vale desde sempre, mesmo antes da AL ou da FC. Isso é a própria lógica interna da Liturgia (enquanto culto público) e dos Sacramentos (enquanto canais da Graça).

Infelizmente, contudo, a situação atual é a de escândalo institucionalizado, praticamente inexistindo alguma hipótese onde a tal “novidade” do Cap. VIII da Amoris Laetitia possa ser licitamente aplicada. A situação atual, ao contrário, talvez exigisse mesmo um recrudescimento da disciplina, impondo maiores obstáculos mesmo à comunhão eucarística (pelo menos à pública) dos que vivem em segundas núpcias praticando a plena continência. A confusão é generalizada e, para não correr o risco de menoscabar os Santos Sacramentos, talvez fosse mais pastoral, em certas circunstâncias, negar a Sagrada Comunhão a quem, conquanto interiormente em estado de Graça, não estivesse em condições exteriores de A receber.

Voltando ao artigo de D. Fernandéz, as comparações feitas com o Quinto e o Sétimo Mandamentos (medellín 168, p. 454-455) não têm pé nem cabeça. Matar alguém em legítima defesa não viola o mandamento de “não matar”, nem se apropriar da comida alheia em estado de necessidade viola o de “não furtar”. Isso é arquiconhecido de todo mundo e nunca esteve em discussão, consta em qualquer catecismo ou manual de teologia moral. Em contrapartida, ninguém jamais cogitou que a convivência more uxorio com alguém que não o cônjuge legítimo pudesse ser coisa diferente de adultério ou fornicação!

E o motivo do descabimento da comparação é muito fácil de se ver. É lícito ao agredido tirar a vida do agressor injusto porque, se ele não o fizesse, seria morto: a legítima defesa se justifica porque é conditio sine qua non para a preservação da própria vida. Do mesmo modo o furto famélico é lícito porque, se a pessoa não comesse, iria morrer de fome, e a vida é um bem maior do que a propriedade; além do quê, no estado de necessidade que justifica o furto famélico há uma violação objetiva da destinação universal dos bens, há um uso desordenado da propriedade.

Ou seja, tanto um caso quanto o outro se justificam, por um lado, porque se está diante de uma injustiça em ato (uma agressão, no caso da legítima defesa; uma desordem na destinação universal dos bens, no caso do estado de necessidade) mantida por um ser humano concreto (o agressor ou o mau proprietário); e, por outro lado, porque quem repele com força a violência sofrida ou quem se apropria daquilo que não lhe pertence o fazem legitimamente apenas porque não lhes resta mais nada a fazer, porque esta é a ultima ratio, sem a qual morreriam.

Coisa completamente diferente ocorre no caso dos divorciados recasados: nem estão diante de um agressor injusto, uma vez que os fautores do adultério são eles próprios; nem estão ausentes as outras opções, uma vez que tanto a continência quanto até mesmo a própria separação permanecem como alternativas; nem, tampouco, se encontram diante de uma situação objetiva de injustiça, uma vez que a indissolubilidade é um mandamento de Deus e não uma desordem introduzida pelo homem. É claro, portanto, de uma clareza meridiana, que as diferentes situações nada guardam em comum uma com as outras. Não é possível, em absoluto, procurar uma justificativa para o adultério raciocinando a partir do estado de necessidade ou da legítima defesa!

No artigo de D. Fernandéz há, por fim, uma outra comparação, para dizer o mínimo, forçada. As “mudanças” da posição da Igreja a respeito da escravidão ou da salvação dos não-católicos (medellín 168, p. 460-461) não são, em absoluto, “mudanças de disciplina” (!) e nem se prestam a justificar a alegada permissão para que casais adulterinos possam receber a Comunhão Eucarística. Quanto à salvação dos não-católicos diga-se, simplesmente, que o Batismo de Desejo sempre foi reconhecido pela Igreja, recebendo inclusive consagração expressa em Trento. Mas a referência à escravidão é que faz o nonsense atingir níveis inimagináveis.

Ora, a escravidão jamais foi “ensinada”, sendo tão-somente tolerada quer como pena (no caso de Nicolau V e as guerras ibéricas), quer como mal menor (no caso do tráfico negreiro): o que mudou de lá para cá não foi o ensino da Igreja (nem “a compreensão da Igreja a respeito da Doutrina” nem nada do tipo), mas tão-somente as circunstâncias externas. O que acontece é que, hoje, por força da própria pregação do Cristianismo séculos afora, não há mais espaço — graças a Deus! — para a prática daquilo que a Doutrina Cristã sempre apontou como um mal. Isso é exatamente o oposto do que historicamente aconteceu com o divórcio, cuja maldade intrínseca a Igreja sempre sustentou com intransigência mesmo perante os poderosos do mundo. Na abolição da escravatura foi a Igreja que venceu e se impôs perante o mundo; admitir a comunhão dos divorciados recasados, ao contrário, seria a derrota da Doutrina Cristã, seria o mundo se impondo à Igreja. É evidente que semelhante interpretação não pode prosperar; contra ela é mister combater com todas as forças.

O homem e a mulher que se amam: esta é a obra-prima!

A história de que o Papa Francisco teria chamado uma dupla gay de “família” foi explorada ad nauseam nos últimos dias pela militância LGBT. Aconteceu que o sr. Toni Reis, conhecido militante homossexual, enviou uma carta para o Papa dando notícia, segundo ele, da sua satisfação por ter logrado batizar na Igreja os seus filhos adotivos — coisa que lhe foi muito difícil conseguir por conta da união homossexual em que ele vive publicamente. O Vaticano enviou uma resposta educada à carta. Por conta disso os meios de comunicação se apressaram a alardear que o Papa Francisco teria afirmado que o “casal gay” é também uma forma de família.

Ora, a notícia se trata, à toda evidência, de uma falsa matéria, sem absolutamente nenhum fundamento. Afinal de contas, a carta recebida pela dupla curitibana

a) não é assinada pelo Papa Francisco pessoalmente, mas sim por um secretário do Vaticano;

b) não traz o nome do destinatário, muito menos do seu “companheiro”, nem nenhuma outra informação que permita concluir, ainda que indiretamente, ter sido enviada especificamente para uma dupla gay; e

c) é um modelo-padrão que o Vaticano utiliza para responder às cartas recebidas — certamente às centenas ou mesmo milhares — pelo Santo Padre todos os dias.

Ou seja, de nenhuma maneira é possível inferir que o Papa tenha querido, nem mesmo indiretamente, estabelecer qualquer relação de similaridade entre a família — a sagrada união entre o homem e a mulher — e as uniões homossexuais — o pecado da sodomia institucionalizado em uma caricatura matrimonial. Neste caso não se trata nem mesmo de uma frase descontextualizada ou uma declaração mal-interpretada, nada disso: foi apenas uma lamentável falta de cuidado do setor vaticano responsável por cuidar da correspondência do Santo Padre. Não chega sequer a ser uma notícia distorcida; é uma não-notícia.

O assunto ganhou tanta repercussão que recebeu importantes desmentidos. O próprio Arcebispo de Curitiba — que, segundo a matéria do Congresso em Foco, foi precisamente quem providenciou o batizado das crianças — publicou uma nota no site da Arquidiocese onde desautoriza a forma como o assunto vem sendo explorado:

Não se trata (…) de uma aprovação à união estável do casal (rectius, dupla) em causa. Tampouco se tratou de permissão. Trata-se de uma simples resposta cordial a um gesto também cordial. Deve ser interpretada, portanto, com o tamanho e a importância que realmente tem.

E até mesmo a Sala de Imprensa da Santa Sé sentiu necessidade de prestar esclarecimentos:

“Em relação à carta assinada pelo Monsenhor Assessor da Secretaria de Estado, reitero que a afirmação do senhor Toni Reis de que se trata de uma resposta ao casal é falso. A carta estava dirigida apenas a ele (‘Prezado Senhor’)”, indica García Ovejero.

Vivemos em tempos estranhos, nos quais as pessoas pensam poder colocar um Papa contra outro Papa e atribuir, ao Soberano Pontífice reinante, posições em assuntos de Fé e Moral que contrariem aquilo que a Igreja sempre ensinou e o mundo moderno escolheu rejeitar. É por isso que divulgam coisas como essa: incapazes de vencer no campo doutrinário, porfiam por enganar os incautos no campo das narrativas. Mas o caso atual é particularmente esquizofrênico porque o Papa Francisco já se posicionou, por diversas vezes, e inclusive solenemente, contra o movimento homossexual.

Durante o ano de 2015 o Papa reservou a maior parte das Audiências Gerais das quartas-feiras para tratar do tema da família, de janeiro até setembro.

Desde o dia de Santa Inês:

Reevocando a figura de são José, que protegeu a vida do «Santo Niño», tão venerado naquele país, recordei que é preciso proteger as famílias, que enfrentam diversas ameaças, para que possam testemunhar a beleza da família no projecto de Deus.

É preciso também defender as famílias das novas colonizações ideológicas, que ameaçam a sua identidade e a sua missão.

Até a festa de São Cornélio, Papa:

Caminhemos juntos com esta bênção e com esta finalidade de Deus, de nos tornarmos todos irmãos na vida, num mundo que caminha em frente e que nasce precisamente da família, da união entre o homem e a mulher.

O Papa Francisco sempre falou da família nos seus elementos constituintes: o homem, a mulher e, consequentemente, os filhos. Ora, insistindo na diversidade dos sexos e na fecundidade conjugal, não há espaço absolutamente nenhum para afirmar que o Papa não tenha sempre diante dos olhos a figura sagrada da união entre o homem e a mulher; ou que não entenda a importância fundamental, insubstituível, dessa união; ou que não a queira promover e defender em face do mundo moderno! Veja-se, por todas, esta elegia rasgada da complementaridade dos sexos para a formação da família:

Isto faz-nos recordar o livro do Génesis, quando Deus conclui a obra de criação e faz a sua obra-prima; a sua obra-prima é o homem e a mulher. E aqui Jesus começa os seus milagres, precisamente com esta obra-prima, num casamento, numa festa de núpcias: um homem e uma mulher. Assim, ensina que a obra-prima da sociedade é a família: o homem e a mulher que se amam. Esta é a obra-prima!

Contra esta tríplice afirmação acerca do «desígnio originário de Deus sobre o casal homem-mulher», de que valem divulgações maliciosas de mensagens vaticanas mal-encaminhadas por estafetas atrapalhados?

Mais ainda. Como se isso não fosse o bastante, o assunto foi especificamente tratado na Amoris Laetitia (aquela mesma que acusam de progressista):

251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».

Repise-se: para o Papa Francisco, em um documento oficial sobre o amor na família, não é possível estabelecer analogias, sequer remotas!, entre as uniões homossexuais e o matrimônio e a família. Como seria possível, então, que Sua Santidade se desdissesse de repente? Teria acaso se comovido — até à apostasia — com a carta de Toni Reis? A história dos gays de Curitiba teria provocado tanto impacto sobre o Papa a ponto de ele decidir — sem fazer alarde, sem se explicar, sem nada, em uma carta, igual a mil outras, assinada por um secretário desconhecido — mudar a posição que vem consistentemente sustentando durante todo o seu pontificado?

É isso? Ou é que a história da mídia gay não tem pé nem cabeça?

Canonização sem martírio nem heroísmo: os altares ficam mais próximos?

Com o motu proprio Maiorem hac dilectionem, publicado no último dia 11 de julho, o Papa Francisco estabeleceu um novo critério para a canonização dos santos: a oferta da vida (vitae oblatio), que agora passa a ser uma nova causa para o processo de beatificação e canonização. Até então o caminho para os altares era aberto pelas hipóteses do martírio (super martyrio) e do heroísmo das virtudes (super heroicitatem virtutum).

Na prática, o que acontece é que a Congregação para a Causa dos Santos vai passar a admitir processos de canonização baseados na oferta da própria vida, ainda que a morte não se dê in odium Fidei (hipótese tradicional de martírio) e ainda que a pessoa não tenha levado uma vida extraordinária na prática das virtudes cristãs (hipótese tradicional de heroísmo das virtudes). Ou seja, será possível postular a canonização de uma pessoa que, ainda não tendo exercido durante a vida as virtudes em grau heróico, ofereça propter caritatem a própria vida e aceite uma morte prematura mesmo em situações distintas do martírio propriamente dito.

As condições, segundo o documento (Art. 2), são as seguintes:

a) oferta livre e voluntária da vida e aceitação heroica propter caritatem de uma morte certa e a curto prazo;
b) nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até à morte;
d) existência da fama de santidade e de sinais, pelo menos depois da morte;
e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão.

A ideia (ventilada, por exemplo, aqui) de que o Papa Francisco esteja querendo canonizar cristãos não-católicos não se sustenta. Se ele quisesse fazê-lo, seria muito mais fácil utilizar-se da hipótese (desde sempre vigente!) do martírio, uma vez que não-católicos são, ainda hoje, perseguidos e mortos mundo afora por conta de sua fé. A perseguição movida contra cristãos, por exemplo, pelos muçulmanos, naturalmente não conhece barreiras denominacionais — para os sarracenos, um herege é tão infiel quanto um católico, e um e outro são igualmente assassinados por não aceitarem se prostrar diante do Allah de Maomé.

Ora, todos sabemos «que aqueles que sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível, não são eles ante os olhos do Senhor réus por isso de culpa alguma» (Pio IX, Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort) e, a princípio, uma pessoa que prefere morrer a negar suas convicções transmite um atestado bastante credível da própria boa-fé (conquanto matar por aquilo em que se acredita, e eventualmente morrer no processo — caso, por exemplo, dos fautores de todas as revoluções do mundo –, seja coisa banal e bastante condizente com os instintos desordenados humanos, naturalmente não é disso que se trata quando, por exemplo, cristãos coptas morrem em uma Igreja explodida por terroristas islâmicos). Aqui a virtude (mesmo que meramente humana) é inegável e, em muitos aspectos, verdadeiramente admirável.

Se o objetivo fosse canonizar não-católicos, então, não seria necessário alterar os critérios vigentes de canonização. Seria perfeitamente possível lançar mão dos mártires não-católicos que os muçulmanos, inadvertidamente, costumam mandar para o Paraíso.

No entanto, elevar aos altares essas pessoas não é possível. Primeiro porque fora da Igreja nenhuma salvação é certa, nem mesmo a do martírio: o Concílio de Florença atesta que fora da comunhão da Igreja não se pode salvar nem mesmo vertendo o sangue em nome de Cristo, e diante de uma sentença assim peremptória não é possível abrir brecha para nenhuma espécie de irenismo. No mesmo sentido, embora de maneira mais comedida, o Papa Pio IX ensina a mesma coisa: é um erro esperar bem da salvação dos que vivem fora da verdadeira Igreja de Nosso Senhor (Syllabus, erro 17).

Em segundo (e mais importante) lugar porque declarar alguém santo — “santo de altar” — não é meramente ter fundada esperança de que o sujeito se encontra na Bem-Aventurança Eterna, não é apenas encontrar na vida da pessoa aspectos admiráveis: é mais que isso. Canonizar é insculpir uma vida humana no frontispício da Igreja de Cristo, para louvor público de Deus e edificação dos fiéis. É abrir uns rasgos na Eternidade e trazer para as feridas da Igreja Militante uns lampejos da glória da Igreja Triunfante. Qualquer um pode salvar-se mediante um ato de contrição sincero in articulo mortis (e nós esperamos que sejam muitos os que ingressam nas Moradas Eternas por esta via!), mas não é disso que se trata quando estamos falando em eternizar histórias humanas nos altares imorredouros da indefectível Igreja de Nosso Senhor.

A virtude é virtude onde quer que se encontre — e isso não foi jamais negado –, mas a canonização não é um mero atestado de que alguém foi “uma pessoa boa”. Sem dúvidas é justo, em princípio, reconhecer que há um grande valor (talvez até mesmo — permita-o Deus! — sobrenatural) nestas mortes provocadas não por um ódio específico às heresias, mas sim pela imagem de Cristo que, nelas, conquanto deformada, ainda bruxuleia. Isso, no entanto, não autoriza jamais cogitar de apresentar um herege como modelo de santidade à imitação dos fiéis católicos. Evidentemente não é possível ornamentar a face visível da Igreja (Seu culto público) com almas que em vida A rejeitaram externamente — ainda que possam, na glória, fazer enfim parte d’Ela. São duas coisas completamente diferentes.

E se não é possível canonizar indistintamente os que são mortos por ódio a Deus, tampouco se pode conceder altares sem mais critérios aos que entregam a vida por amor ao próximo. Inclusive parece até mais fácil encontrar não-católicos martirizados do que não-católicos dispostos a realizar a oferta da própria vida propter caritatem. A situação atual não é, portanto, mais laxa do que a anterior. E se não era anteriormente possível canonizar entre os não-católicos nem mesmo as almas simples que derramaram o próprio sangue por causa de Nosso Senhor, pela exata mesma razão não é possível, agora, canonizar aquelas que, fora da Igreja, abrem mão de sua vida por amor ao próximo. A mera idéia não faz nem sentido.

O que muda então com o documento? O Padre Z. arriscou alguns comentários, e lembrou alguns santos que facilmente se encaixariam nesta hipótese de vitae oblatio — como S. Maximiliano Kolbe, que se ofereceu em lugar de um prisioneiro em um campo nazista, ou Santa Gianna Beretta Molla, que mesmo diagnosticada com um câncer de útero manteve a gravidez até que sua filha nascesse. São exemplos que revelam uma coisa que convém não esquecer: abrir mão da própria vida em favor de outrem já é uma atitude que apresenta rasgos de heroísmo! Não ficou mais fácil ser canonizado. Os altares não são para os medianos.

O Papa Francisco não está tornando mais fácil chegar ao Céu (afinal de contas, quem em sã consciência diria que é fácil morrer por alguém?): os altares continuam tão altos quanto sempre estiveram. Não é possível ao homem elevar-se aos altares: o que ele pode — e deve! — fazer é se deixar ser elevado até eles por Deus. Porque pode até haver canonização sem milagre, sem martírio, mesmo sem virtudes extraordinárias: o que não pode haver, jamais, é canonização sem santidade. Esta é a que não pode nunca faltar. Esta é a que somente Deus pode conceder.

As vitórias de Charlie Gard

Thanatos é uma divindade menor no panteão grego. Quando queremos invocar o deus da morte nós geralmente pensamos em Hades, senhor do mundo dos mortos; Thanatos, no entanto, personificando a Morte, é digno de algumas passagens clássicas. Por exemplo, na Ilíada é ele, junto com o seu irmão Hypnos (o Sono), quem é encarregado de levar o corpo do herói Sarpedon, morto no campo de batalha de Tróia, para os funerais em sua terra natal.

É curioso que estejamos relativamente familiarizados com o pós-morte (os infernos de Hades, por exemplo, guardados pelo Estige e por Cerberus), mas o próprio ato da morte (Thanatos) nos seja estranho. Da subdivindade temos hoje talvez apenas algumas menções obscuras nas músicas de Renato Russo; ironicamente, no entanto, é ela quem dá nome a três importantes conceitos de bioética hoje particularmente importantes: eutanásia, distanásia e ortotanásia.

Eles se encontram (embora não sob esta nomenclatura) no parágrafo 65 da Evangelium Vitae de São João Paulo II. Eutanásia é «uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento» (id. ibid.). Do conceito tiramos algumas importantes conclusões. A primeira delas é que eutanásia, ao contrário do que comumente se pensa, não necessariamente é um ato comissivo — i.e., nem sempre ela se caracteriza por um fazer algo. Eutanásia pode ser uma omissão — um deixar de fazer algo que, nas circunstâncias, seria moralmente exigido. Eutanásia não é somente aplicar veneno no doente para que ele venha a morrer; pode-se praticar eutanásia também quando se negam determinados cuidados médicos sem os quais sabe-se que o doente virá a óbito. O exemplo talvez mais conhecido é o da americana Terri Schiavo, que em 2005, após uma longa agonia, morreu de fome e de sede após o marido conseguir na Justiça uma ordem para que o hospital interrompesse a hidratação e a nutrição artificiais. Terri estava em Estado Vegetativo Permanente; a Terri não foi dada, que se saiba, nenhuma substância para lhe produzir a morte; não obstante, Terri sofreu eutanásia.

A segunda importante conclusão é que a eutanásia se caracteriza não apenas pela forma (comissiva ou omissiva) como ela se manifesta, mas também por suas intenções. O que formalmente caracteriza a eutanásia é a intenção de «provoca[r] a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento» (EV 56). Se o sujeito quer provocar a morte para eliminar o sofrimento, estamos falando em eutanásia; se ele quer provocar a morte por outra razão (digamos, para se desvencilhar de um familiar incômodo, ou para antecipar alguma herança), então se trata de assassinato puro e simples; e se o sujeito se preocupa com o sofrimento do doente mas não lhe quer provocar a morte, ou seja, se a morte não é de nenhuma maneira desejada mas simplesmente aceita, então estamos diante daquilo que se convencionou chamar ortotanásia.

A ortotanásia é a recusa à distanásia (esta última também chamada “obstinação terapêutica”, ou “excesso terapêutico”, na terminologia empregada pela Igreja desde pelo menos a década de 90), e um conceito se compreende em face do outro. Querer manter um paciente vivo a qualquer custo, utilizando-se de meios desproporcionados ao resultado que deles se espera, é obstinação terapêutica, é distanásia. Já não o fazer, negar-se à prática de intervenções médicas demasiado onerosas e cujos benefícios esperados não sejam proporcionalmente benéficos ao paciente, em suma, aceitar o estado terminal do paciente e reconhecer que o engenho humano não é capaz de fazer frente à iminência da morte, é ortotanásia.

Dessas definições infere-se que a distanásia é em regra comissiva (i.e., ela se caracteriza sempre por fazer alguma coisa, por tentar uma nova intervenção, um novo medicamento, uma nova cirurgia etc.) e, a ortotanásia, omissiva (o que significa dizer que ela, em essência, é a aceitação da morte natural, sem que se faça nada para a impedir): é muito difícil imaginar exemplos que fujam a esta classificação. Tanto a distanásia (recusar-se a aceitar a morte) como a eutanásia (provocar a morte) são pecados: a atitude moralmente exigível do ser humano é que aceite a morte quando ela se apresenta inevitável, sem a procurar mas também sem lutar desproporcionadamente contra ela.

Por fim, a terceira importante conclusão que se pode tirar do parágrafo 56 da Evangelium Vitae é que a eutanásia (ao contrário, por exemplo, do homicídio) se justifica pelo alegado bem do paciente.

Claro que tudo isso tem a ver com Charlie Gard, o bebê britânico cujos pais perderam recentemente uma batalha judicial para que ele fosse levado aos Estados Unidos tentar um tratamento experimental. Charlie tem uma doença rara, fatal e incurável (uma miopatia mitocondrial) que se agrava rapidamente; os médicos do Great Ormond Street Hospital de Londres — onde a criança está internada — estão convencidos de que não há mais nada a ser feito e querem desligar os aparelhos de respiração, nutrição e hidratação artificiais que mantêm o bebê vivo. Os pais conseguiram arrecadar cerca de um milhão e trezentas mil libras via crowdfunding para custear o tratamento nos EUA, mas o hospital não quer liberar a criança. Os médicos entendem que, no atual estado de Charlie, ulteriores intervenções terapêuticas são desproporcionadas. Já os pais querem tentar o tratamento americano. O impasse foi levado ao judiciário, e um juiz decidiu que o hospital deveria desligar os aparelhos. Os recursos judiciais dos pais ao Tribunal (Court of Appeal), à Suprema Corte britânica e à Corte Européia de Direitos Humanos foram sucessivamente recusados. Até onde vi, os aparelhos podem ser desligados a qualquer momento.

O que dizer? A própria judicialização do caso é já um absurdo. Não se trata de um pai querendo forçar os médicos a realizarem algum procedimento do qual eles discordem, mas sim do hospital querendo impedir os pais de buscarem, por sua própria conta, um tratamento alternativo para uma criança já desenganada. Como bem apontou o Matt Walsh, há uma diferença muito grande entre um médico que não quer, ele próprio, realizar um tratamento que julgue desproporcionado, e um médico que não quer deixar que ninguém mais realize uma terapia com a qual ele não concorda.

Além disso, nos casos em que haja dúvida legítima sobre a moralidade de um procedimento (ou da supressão de um procedimento) é preciso fazer o juízo pender em favor da vida do paciente e da vontade dos pais. Se houvesse algum conflito entre esses dois vetores (digamos, se os médicos quisessem manter os cuidados artificiais mas os pais os quisessem dispensar) então se poderia cogitar levar o assunto aos Tribunais; contudo, no caso, é a própria vontade dos pais que a vida da criança seja sustentada ainda mais um pouco — de modo que não há razão para se falar em “impasse”. Impasse nós temos diante de duas posições igualmente razoáveis. Entre um hospital querendo deixar uma criança morrer e os pais querendo levá-la para ser tratada não há impasse: há violência e crime. Não faz nenhum sentido fazer prevalecer a posição do hospital que quer a morte da criança sobre a dos pais que querem que ela viva.

Também não é possível dizer que a vontade dos pais deva ser posta de lado porque é desproporcionada. Pode até ser que seja, mas o Estado não pode se imiscuir aqui. Afinal de contas, embora tanto a eutanásia quanto a distanásia sejam pecados, a primeira é mais grave porque agir contra a vida é em si mesmo mais grave do que não aceitar a morte; e se seria necessário que o Estado se levantasse contra os familiares que quisessem praticar eutanásia em alguém, não lhe é lícito impedir os familiares de se obstinarem na distanásia. Para impedir a morte dos indivíduos os Poderes Públicos são legítimos; para aceitá-la contra a vontade expressa dos familiares, aí não.

A linha entre a eutanásia omissiva e a ortotanásia é por vezes tênue. Nestas áreas cinzentas, no entanto, a decisão tem que caber às pessoas mais próximas, à família, jamais aos burocratas do Estado. Isso significa que, no caso, não interessa saber se levar a criança aos Estados Unidos é excesso terapêutico ou não: o que importa é que essa decisão seja tomada por quem de direito, pelos pais. O Estado em tese até poderia intervir em uma ortotanásia que considerasse eutanásia omissiva, porque o papel dele é preservar a vida; mas nunca poderia intervir em uma terapia que julgasse ser distanásia, porque não compete a ele aceitar a morte.

Havendo dúvida legítima entre duas atitudes é possível optar por qualquer uma delas, não se podendo impôr nem uma, nem outra. E no caso de Charlie a legitimidade da dúvida parece evidente — afinal de contas, há um tratamento alternativo disponível. Ora, falando exatamente sobre este assunto, a Congregação para a Doutrina da Fé cita, explicitamente, entre os meios terapêuticos proporcionados (legítimos portanto), o recurso às terapias experimentais quando não haja outros meios conhecidos de se obter a cura:

— Se não há outros remédios, é lícito com o acordo do doente, recorrer aos meios de que dispõe a medicina mais avançada, mesmo que eles estejam ainda em fase experimental e não seja isenta de alguns riscos a sua aplicação. Aceitando-os, o doente poderá dar também provas de generosidade ao serviço da humanidade.

(Congregação para a Doutrina da Fé, “Declaração sobre a eutanásia”, Cap. IV — O uso proporcionado dos meios terapêuticos)

A decisão judicial, assim, é duplamente ilegítima: porque não cabe ao Estado impedir os particulares de praticarem a distanásia e porque, no caso concreto, há verdadeira dúvida sobre se a manutenção dos aparelhos de Charlie configura ou não distanásia.

Dos últimos dias para cá a repercussão do caso foi grande: um abaixo-assinado dirigido à Família Real britânica está atualmente com 170.000 assinaturas, o Papa interveio para dizer que a vontade dos pais deveria ser respeitada e o próprio presidente Donald Trump se ofereceu para ajudar o bebê. Independente do que ocorra, Charlie Gard já é um herói, tendo já feito mais em sua curta vida do que muitos de nós que há anos estamos aqui fora tentando fazer do mundo um lugar melhor. Estamos convencidos de que um mundo melhor é aquele onde a vida humana é tida como sagrada — onde os pais têm direito de lutar pela vida de seus filhos mesmo contra as cortes do mundo inteiro e onde hospitais são lugares em que se busca o restabelecimento do corpo e não uma morte alegadamente “digna”. E sob essa bandeira o pequeno Charlie mobilizou exércitos inteiros, pelo que merece — ele e sua família — o nosso agradecimento, o nosso apoio e as nossas orações. Força! Ao redor do mundo multidões de almas estão unidas ao bebê e aos seus pais.

Melhor ser ateu sincero que católico hipócrita?

A rapidez e a veemência com as quais se espalhou o boato (surgido há algumas semanas) de que o Papa teria dito que é “melhor ser ateu do que católico hipócrita” revela algo de muito perturbador a respeito do nosso senso moral. Aparentemente as pessoas consideram mais importante a coerência entre as idéias que alguém professa e o estilo de vida que ele leva do que o valor inerente àquelas idéias. É como se o criminoso hipócrita fosse de algum modo pior do que o criminoso altivo e convencido da justeza dos seus crimes — possivelmente porque, sendo ambos criminosos, a este último ao menos não se acrescenta o defeito da hipocrisia.

Tal concepção, conquanto pareça estar subjacente ao senso comum contemporâneo, não faz o menor sentido. Primeiro porque o valor das idéias repousa na sua coerência interna, na sua verdade intrínseca e não na capacidade de o seu propalador viver de acordo com elas. Afinal de contas a mesma idéia pode ser apresentada de maneiras diversas e por pessoas diferentes, e é perfeitamente possível que algumas dessas pessoas vivam-na com mais sinceridade do que outras. Isso só nos permite fazer (e no máximo!) um juízo de valor sobre estas pessoas, sobre o grau de sua convicção a respeito daquilo que falam; jamais no entanto sobre o conteúdo da sua mensagem.

Isso quer dizer, por exemplo, que o valor da mensagem cristã (para ficar naquilo que é talvez o maior pretexto dos ímpios para não darem crédito ao Cristianismo) não pode ser buscado nos eventuais defeitos de caráter dos pregadores do Evangelho. Os mensageiros podem eventualmente ser muito hipócritas e muito cretinos, sem que isso no entanto macule minimamente o valor da mensagem que eles portam. Se alguém me diz, por exemplo, que é errado mentir, este conselho será tão mais valioso quanto maiores forem os proveitos que eu possa obter pondo-o em prática (na obtenção da confiança dos outros, na paz de consciência e na amizade com Deus, por exemplo). O fato de alguém seguir ou deixar de seguir um conselho que dá é totalmente irrelevante para se saber se se trata de um bom ou mau conselho.

E isso sempre foi muito óbvio para todas as pessoas. Sempre se soube que a hipocrisia era um defeito da pessoa que era hipócrita, e não da idéia que ela comunicava. A rigor, o que existem são pessoas hipócritas e não idéias hipócritas. Aquela história de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” nos diz que a pessoa que assim nos interpela está errada — não que o que ela nos diz esteja errado. Da eventual incoerência do mensageiro não nos é permitido inferir a incoerência da mensagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Mas existe ainda um segundo motivo pelo qual esta confusão entre a (aparente) falta de sinceridade do pregador e a inveracidade da doutrina pregada não faz sentido. É que os seres humanos são essencialmente limitados e, portanto, o que parece hipocrisia pode ser simplesmente uma etapa provisória de um processo de crescimento pessoal.

Afinal de contas, somente duas pessoas são capazes de uma coerência radical e absoluta entre aquilo em que acreditam e o que fazem: os santos perfeitos e os completamente degenerados. Para todos os outros seres humanos o que existe é uma espécie de ambivalência moral, onde às vezes agimos em desarmonia com as nossas convicções e onde o domínio de nossa vontade (ainda) não atingiu o mesmo patamar da iluminação de nossa inteligência. Afinal — desgraçados de nós! –, podemos perfeitamente saber o que é correto sem no entanto conseguir agir corretamente em todos os instantes de nossas vidas.

Mais até: essa ambivalência, além de perfeitamente normal, é necessária a qualquer processo de crescimento. Afinal de contas, para que alguém possa melhorar é preciso que primeiramente saiba em quê precisa ser melhor: o conhecimento dos próprios defeitos e o reconhecimento do valor das virtudes que lhe faltam geralmente precede a obtenção dessas virtudes — que só se dá ao longo do tempo e via de regra ao dispêndio de muito sangue, suor e lágrimas. Ou seja: antes de fazer o certo (e até mesmo para que se possa fazer o certo, ou ao menos fazê-lo melhor do que já se faz) as pessoas precisam saber o que é certo mesmo que (ainda) não o vivam.

Tal é porventura hipocrisia, fingimento, insinceridade? Ao observador externo pode ser que assim se apresente, uma vez que os dilemas morais interiores só são do conhecimento daquele que os padece. Isso, no entanto, não deveria importar, por conta do que já se disse: primeiro porque as idéias têm valor a despeito dos hipócritas que as defendam, e segundo porque aquilo que parece hipocrisia em outrem pode ser apenas uma sua limitação sincera.

De volta à frase sobre o ateu e o católico, é preciso dizer que ela, do jeito que foi divulgada, é completamente falsa e irracional. Só existe uma maneira de encontrar lógica nela: se entendermos que é melhor (talvez se devesse até dizer é menos ruim) ser ateu sincero, por ignorância, que católico hipócrita por malícia. Quando menos porque se forem ambos para o Inferno o católico malicioso vai sofrer maiores penas que o ateu ignorante — aliás o Inferno é via de regra mais severo para os que possuem a Fé Verdadeira mesmo. O que o católico hipócrita tem de errado é a sua hipocrisia e não o seu catolicismo; do mesmo modo, o que talvez se possa louvar no ateu sincero é a sua sinceridade, jamais a sua descrença.

Os elogios que esta “declaração do Papa” recebeu nos dizem uma coisa muito séria: que as pessoas parecem achar melhor ter idéias erradas e medíocres, desde que se viva em conformidade com elas, do que as ter corretas e exigentes e não ser capaz de se portar integralmente à sua altura. Na inevitável ambivalência humana entre o que se é e o que se deve ser, entre o real e o ideal, as pessoas parecem mais dispostas a diminuir as exigências morais que a sair da própria zona de conforto e mudar de vida; mais propensas a envilecer os ideais que a converter a própria realidade. Com uma tomada de posição assim medíocre e mesquinha não é de espantar que vivamos imersos em males que tanto ultrapassam as nossas forças. Não ter coragem de lutar para se fazer melhor e, por conta disso, optar deliberadamente por ser um degenerado é uma das coisas mais ignóbeis de que a pusilanimidade humana é capaz.

Quatro anos de um dos Papas mais odiados da história

Hoje é um dia importante. Quatro anos atrás, numa quarta-feira, celebrávamos a fumata bianca expelida pela chaminé da Capela Sistina e pouco tempo depois, ansiosos, ouvíamos pela TV secular o secular anúncio do Habemus Papam. Era o (então desconhecido) cardeal Jorge Maria Bergoglio, qui sibi nomen imposuit Franciscum.

Quatro anos após o fato, olhando em retrospectiva, creio que se pode dizer — ao contrário do que parece à primeira vista — que estamos diante de um dos Papas mais odiados da história da Igreja. Sim, é certo que a mídia anticatólica, os católicos progressistas e os não-católicos enaltecem [aquilo que acreditam ser] o Papa Francisco; no entanto, só o enaltecem naquilo que não é católico. A condescendência com o homossexualismo. A ordenação de mulheres. A comunhão dos adúlteros. O louvor ao socialismo. O indiferentismo religioso. Et cetera, et cetera. Ora, não se pode dizer que seja realmente movido por amor quem tanto se esmera para divulgar uma imagem tão desabonadora assim de outrem!

Os inimigos da Igreja falam muito do Papa Francisco, é verdade, e falam dele em tom laudatório, é verdade também; mas o que elogiam no Papa são qualidades que envergonham e ofendem qualquer fiel. O Papa não é amado por ser católico, mas precisamente o contrário: quem diz amar o Papa — ao menos quem o diz com espalhafato, nas redes sociais e na mídia anticlerical, quem diz amar Francisco quando até ontem odiava Bento XVI — só o faz por acreditar ver no Papa características que contradizem certos aspectos, digamos, pouco populares da Fé Católica. Por que “amam” o Papa Francisco? Porque ele não acha que todo mundo precise ser católico, porque ele acredita que baste a cada um fazer o que acredita ser certo, porque ele acha que a Igreja não deve se meter no casamento gay, e porque aliás ele acredita que os gays devem ser incluídos na Igreja, porque é a favor dos padres casados e da ordenação de mulheres, porque quer acolher os divorciados recasados, porque é contra a cúria vaticana, contra Temer, contra Trump… Em suma, por que “amam” o Papa Franciso? Por tudo e qualquer coisa, exceto aquilo que faz um papa — qualquer Papa — ser o líder máximo da religião católica.

Estas pessoas não amam realmente o Papa Francisco. E não o amam por uma razão dupla: primeiro que não se afeiçoam ao Papa de verdade, senão a uma sua caricatura grotesca; segundo porque atribuem a ele características que são desabonadoras e difamatórias para qualquer católico. Não é portanto verdade que os anticlericais tenham passado a amar o Papa: os anticlericais continuam odiando o Papa. Apenas o fazem agora por outro meio.

Em contrapartida, muitos dos católicos — o resquício de católicos de verdade, conscientes do que significa o Catolicismo e da crise pela qual atravessa a Igreja — debandaram tristemente para o ódio escancarado e a perseguição aberta ao Soberano Pontífice. Engolem da maneira mais acrítica possível as maiores barbaridades que os inimigos da Igreja dizem a respeito do Papa: dão mais crédito ao burburinho do mundo que à oração de Nosso Senhor para que a Fé de Pedro não desfalecesse. Acreditam em tudo o que se diz de depreciativo sobre o Papa Francisco, e o divulgam e alardeiam, contribuindo assim para o fortalecimento da má fama de Sua Santidade. Eis porque o atual Pontífice é um dos mais odiados de todos os tempos: porque aos odiadores tradicionais — que o continuam odiando — somaram-se multidões de católicos que, fazendo coro aos anticlericais, vêem no Papa mais o Anticristo que o Cristo-na-Terra.

Bento XVI era odiado pelo mundo, mas amado por parte significativa dos católicos tradicionais. Francisco continua odiado pelo mundo e é também odiado por grande parte destes católicos que — com toda a razão — opõem-se à mundanização do Catolicismo mas enxergam no Papa mais um inimigo que um aliado. No final das contas, quem é que ama o Papa Francisco pelo que ele é, e não pelo que [acredita que] ele representa? Quase ninguém. É o mais solitário e abandonado dos Papas!

E não se justifique o próprio ódio sob a alegação de que o Papa não ajuda a desfazer a imagem errada que têm dele. São Valentino também é um dos santos menos amados do mundo, apesar de milhões de pessoas celebrarem alegremente o Valentine’s Day a cada 14 de fevereiro. São Francisco de Assis também é um dos santos mais impopulares da história, a despeito de a “Oração de São Francisco” ser mais conhecida que o Hino Nacional. Não é privilégio do Papa Francisco ter uma imagem pública destoante da que se espera de um católico de verdade.

Além disso, o esforço exigido para desfazer o senso comum é hercúleo e não pode ser exigido de ninguém — muito menos de um Papa, aliás, a quem absolutamente ninguém pode ditar a melhor forma de governar a Igreja. Se Sua Santidade poderia ser mais claro e não o é, disto ele haverá de prestar contas ao Altíssimo e não aos leigos católicos da internet sedizente tradicionalista. Eventuais defeitos dos superiores não elidem o dever de submissão dos subordinados, e nem muitíssimo menos justificam a falta de respeito cada vez mais generalizada que se tem tristemente observado nos últimos quatro anos.

Finalmente, para vender a sua imagem do Papa-que-não-é-católico, os inimigos da Igreja praticam o cherry-picking mais descarado. Jamais divulgam aquilo que o Papa diz e faz de católico, mas conferem grande alarde a tudo que se possa mal interpretar. Um exemplo entre muitos, os que defendem a comunhão dos adúlteros dizem que isto é um ato de «misericórdia» pastoral, com o qual a Igreja deve temperar a «justiça» inflexível das normas canônicas. Mas o Papa Francisco, há menos de um mês, comentando o Evangelho de S. Mateus, deu-nos esta belíssima lição:

“Jesus não responde se é lícito [para um marido repudiar a própria mulher] ou não; não entra na lógica casuística deles. Porque eles pensavam na fé somente em termos de ‘pode’ ou ‘não pode’, até onde se pode, até onde não se pode. É a lógica da casuística: Jesus não entra nisso. E faz uma pergunta: ‘Mas o que Moisés vos ordenou? O que está na vossa lei?’. E eles explicam a permissão que Moisés deu de repudiar a mulher, e são eles a cair na própria armadilha. Porque Jesus os qualifica como ‘duros de coração’: ‘Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento’, e diz a verdade. Sem casuística. Sem permissões. A verdade.”

[…]

“(…)Depois, uma pessoa de mentalidade casuística pode se perguntar: ‘Mas o que é mais importante em Deus? Justiça ou misericórdia?’. Este também é um pensamento doente… o que é mais importante? Não são duas: é somente uma, uma só coisa. Em Deus, justiça é misericórdia e misericórdia é justiça. Que o Senhor nos ajude a entender esta estrada, que não é fácil, mas nos fará felizes, a nós, e fará felizes muitas pessoas”.

Tradução: Canção Nova

Não existe oposição entre misericórdia e justiça! A misericórdia verdadeira não pode senão ser justa, e a justiça verdadeira é ela própria misericordiosa. A idéia de conferir sacramentos de vivos a pecadores formais sob a justificativa da misericórdia, portanto, é uma falsa idéia, é «um pensamento doente». Que duro golpe nos divorcistas! Quem, no entanto, dos “admiradores” do Papa Francisco, prestou atenção a esta homilia, preocupou-se em divulgar este ensinamento…?

Faz quatro anos que o nome «Francisco» ecoou a partir da sacada da Basílica de São Pedro. E, infelizmente, parece que temos bem pouco a comemorar na efeméride. Hoje, mais até do que naquele (já longínquo) ano de 2005, «[a] Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados» (Via-Sacra no Coliseu, IX Estação). Que o Altíssimo Se compadeça de nós e, volvendo o olhar para o nosso sofrimento, levante-Se — o quanto antes! — para pôr fim às nossas tribulações.

V. Oremus pro Pontifice nostro Francisco.

R. Dominus conservet eum, et vivificet eum, et beatum faciat eum in terra, et non tradat eum in animam inimicorum eius.

Oremus. Deus, omnium fidelium pastor et rector,famulum tuum Franciscum, quem pastorem Ecclesiae tuae praeesse voluisti, propitius respice: da ei, quaesumus, verbo et exemplo, quibus praeest, proficere: ut ad vitam, una cum grege sibi credito, perveniat sempiternam.

Per Christum, Dominum nostrum.
Amen.

Calendário Quaresmal 2017

O pessoal daqui da Seção Recife do Regnum Christi preparou e disponibilizou um pequeno calendário com sugestões de práticas tradicionaisjejum, oração e esmola — para bem viver a Quaresma. Saiu inclusive na Aleteia Brasil. Disponibilizo abaixo: cliquem para aumentar.

À semelhança do que já fiz em outros anos, vale mais uma vez lembrar que se trata de sugestões — cada um pode e, na medida de suas particularidades, até deve preencher estes seus dias quaresmais com aquelas práticas que melhor lhe aprazam e de modo mais salutar o ajudem. Não se trata aqui de regra canônica estrita, mas de exercício de espiritualidade: como disse o (a dar crédito ao Facebook…) Venerável Fulton Sheen, os propósitos de nos abstermos de alguns prazeres na Quaresma nos ajudam a perceber que o propósito da vida não é o prazer. É este o sentido deste tempo litúrgico.

Aproveitando o ensejo para algumas generalidades:

– A Quaresma compreende exatamente quarenta dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Sábado Santo inclusive, excetuando-se os domingos. São os cinco domingos da Quaresma mais o domingo de Ramos — seis semanas. Seis vezes sete dias, 42, menos seis domingos, 36 — restam portanto quatro dias, que são justamente a quarta-feira de Cinzas, a quinta, a sexta e o sábado após as Cinzas. Com estes, totalizam-se 40 dias antes da Páscoa. Esta é a informação que consta, por exemplo, nos antigos Missais dos fiéis (Rito Romano Tradicional).

– A informação mais recente — p. ex., Paulo VI, ou a Paschalis Solemnitatis de 1988 –, ao contrário, sustenta que o tempo da Quaresma termina na Quinta-Feira Santa, com a Missa in coena Domini iniciando o Tríduo Santo. Julgo que a aparente discrepância não passa de tecnicismo: os últimos três dias da Quaresma (= dos quarenta dias de preparação para a Páscoa) coincidem com os do Tríduo Santo, que por suas particularidades litúrgicas perfazem um Tempo próprio “entre” a Quaresma e Páscoa. Em resumo, a Quaresma enquanto preparação para a Páscoa se estende até o Sábado Santo, mas a Quaresma enquanto conjunto de rubricas vai até a Missa da Quinta-Feira Santa exclusive — porque a partir daí o Tríduo tem rubricas próprias.

– As alegadas mensagens do Papa Francisco “proibindo a Quarentena” (sic) não têm pé nem cabeça e são evidentemente falsas. Lógico que, por exemplo, «estar atento a quem precisa de você» é um dever cristão básico de que ninguém pode descuidar, mas justamente por isso não tem sentido colocá-lo como um substituto para as práticas quaresmais. Nestes dias de preparação para a Páscoa nós somos chamados a fazer mais do que aquilo a que sempre estamos estritamente obrigados; é isso que caracteriza o tempo como favorável à santificação. A vida cristã como um todo é uma vida de penitência, mas a penitência quaresmal é uma penitência qualificada. Fazer tábula rasa dos tempos litúrgicos (e dizer que não adianta largar o chocolate quem ainda não largou o hábito de falar mal do próximo) é não entender nem a antropologia cristã e nem a liturgia católica.

– Ao contrário, a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2017 diz textualmente logo no início: «[a] Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida espiritual através dos meios santos que a Igreja nos propõe: o jejum, a oração e a esmola». Mais tradicional impossível.

– A Campanha da Fraternidade de 2017 — Biomas brasileiros e defesa da vida (!) — é tão ruim quanto tem sido nos últimos anos. Antigamente eu fazia aqui no Deus lo Vult! uma análise dos textos-bases (acho que o último foi em 2011), mas depois perdi a disposição: não muda nunca, é o mesmo lenga-lenga materialista e horizontal sempre. Claro que tudo isso é completamente diferente da Quaresma Católica, na qual nos aproximamos de Deus através das práticas da oração, do jejum e da esmola. Claro que é dever de todo cristão ignorar o quanto for possível os obstáculos diabólicos que a nossa Conferência dos Bispos desgraçadamente põe no caminho de preparação para a Páscoa. Não é pecado nem desobediência, senão bom senso. Sim, o Papa Francisco manda participar das campanhas de Quaresma (Bento XVI também mandava), mas acontece que o que a CNBB produz aqui, embora aconteça na Quaresma, não pode, sem grave abuso terminológico, ser chamado de campanha de Quaresma.

– É agora o tempo de conversão, é hoje o tempo favorável. Não desperdicemos a Quaresma que Nosso Senhor nos concede viver; esforcemo-nos, nela, por nossa cada vez maior santificação. Iniciamos ontem o nosso caminho de penitência com as cinzas impostas sobre nossas cabeças; que o sacramental nos ajude a perceber que não somos senão pó, e que ainda temos um longo caminho a percorrer para sermos menos indignos do que Cristo vai fazer por nós na Sexta-Feira Santa que se avizinha.

Desde quando a perfeição não é para todos?

Divulgou-se ontem que o Papa Francisco enfim responderia formalmente às questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia, e que o faria através de um livreto escrito pelo cardeal Francesco Coccopalmerio — prefeito do Pontifício Conselho para a interpretação dos textos canônicos. O Rorate Caeli, onde vi a nota ontem, atualizou hoje a postagem informando que o cardeal não compareceu à apresentação da obra; e mais importante, durante o evento foi informado que o livro não é uma resposta [formal] às dubia, mas compõe-se tão-somente de reflexões pastorais privadas da lavra do cardeal.

Ainda bem, porque o trecho do livro divulgado pela mídia tradicionalista simplesmente não é católico. Em curtas palavras, fala que os Sacramentos da Penitência e da Eucaristia devem ser conferidos àqueles que os pedirem, ainda que vivam em situação grave de pecado, independente de qualquer outra coisa a não ser o “desejo sincero de se aproximar dos sacramentos após um apropriado período de discernimento”. Não há nenhuma referência às condições excepcionais da Amoris Laetitia (verdadeira ausência de pecado formal, sacramentos como meio para a superação da situação objetiva de pecado, cuidado pastoral para que não haja escândalos e nenhuma margem para que se julguem diminuídas as exigências do Evangelho); ao contrário, quem lê o trecho fica com a sensação de que a Doutrina Católica foi substituída pelo subjetivismo mais esquizofrênico — como se fosse a coisa mais prosaica e ordinária do mundo alguém ter, ao mesmo tempo, um “desejo sincero” pelos Sacramentos e uma vontade irredutível de continuar vivendo em contradição com a Graça significada e atualizada por estes mesmos Sacramentos que com sinceridade se deseja receber.

Em situações normais, é de todo evidente que quem rejeita as exigências do Evangelho não tem (e nem pode ter) sinceridade no seu desejo pelos Sacramentos, e do mesmo modo o querer sinceramente a graça de Deus necessariamente inclui o querer viver de maneira reta e agradável aos olhos d’Ele. Em situações normais, quem quer de verdade os Sacramentos instituídos por Cristo quer também as condições estabelecidas pelo mesmo Cristo para se ter acesso a estes Sacramentos: afinal, quem quer o fim, quer os meios. Não há (e aliás nem pode haver) nenhuma revolução na Doutrina Católica e nem muito menos nos pressupostos metafísicos básicos da realidade. A coerência ainda é um valor que se deve sempre ter em conta em qualquer faceta da vida humana.

Mas o pior é a parte final do parágrafo. De acordo com o opúsculo, a Eucaristia deveria ser conferida para os adúlteros porque “a perfeição absoluta é um dom precioso, mas que não está ao alcance de todo mundo” (no original italiano, la perfezione assoluta è un dono prezioso ma che non può arrivare a tutti). A sentença é tão absurda que não chega nem a ser crível, e é legítimo indagar se o cardeal escreveu mesmo esse disparate ou, tendo de fato escrito, se acredita realmente no que escreveu.

Em primeiro lugar, e mais grave, reservar a prática dos atos conjugais para o interior do Matrimônio sacramental não é, sob nenhuma circunstância, “a perfeição absoluta”! Ao contrário, é o básico do início de qualquer vida moral minimamente digna deste nome. É um dos Mandamentos, é um ditame da Lei Natural que está ao alcance até mesmo dos pagãos! Quando foi que o mero cumprimento dos preceitos negativos diretos do Decálogo se transformou na “perfeição absoluta”? Desde quando a observância dos Mandamentos não é para todo mundo? Afinal de contas, somos católicos ou hereges cátaros?

Os Mandamentos são para todos sim, mesmo para o índio politeísta e canibal no meio do mato, ainda para o sarraceno crescido entre os explosivos do ISIS, mesmo para o católico que tenha «grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma» católica» ou que se encontre «em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa»! Ninguém é positivamente chamado a adorar demônios, assassinar inocentes ou adulterar. Se certos condicionamentos são capazes de mitigar a imputabilidade subjetiva por semelhantes práticas, não é menos verdade que elas não deixam jamais de ser um mal — e o homem é sempre capaz do bem. Não existe ninguém a cujo alcance o bem não esteja! A observância dos Mandamentos pode chegar a todos sim, é lógico e evidente que pode. Somos todos seres humanos criados para Deus — para o bem portanto.

Mas há ainda uma outra questão que torna infelicíssima a colocação do cardeal Coccopalmerio: será mesmo que se pode dizer que a «perfeição absoluta» não está ao alcance de todos? E quanto àquele «estote vos perfecti sicut et Pater vester cælestis perfectus est» de Nosso Senhor no Sermão da Montanha (cf. Mt V, 48)? Porventura Cristo não falou para todos?

Dizer que a perfeição não está ao alcance de todos contraria também a doutrina do Concílio Vaticano II. De fato, o capítulo V da Constituição Dogmática sobre a Igreja abre-se assim:

A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito ao único Santo», amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela, para a santificar (cfr. Ef. 5, 25-26) e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de. Deus. Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (1 Tess. 4,3; cfr. Ef. 1,4). Esta santidade da Igreja incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis; exprime-se de muitas maneiras em cada um daqueles que, no seu estado de vida, tendem à perfeição da caridade, com edificação do próximo; aparece dum modo especial na prática dos conselhos chamados evangélicos. A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade.

Lumen Gentium, 39. Grifos meus.

Por fim, a idéia de que a santidade possa não estar ao alcance de alguém é estranha também ao Papa Francisco: «a santidade não é uma prerrogativa só de alguns: é um dom oferecido a todos, sem excluir ninguém, e por isso constitui o cunho distintivo de cada cristão» (Audiência Geral de 19 de novembro de 2014).

Em conclusão: não existem pessoas que não sejam chamadas às exigências do Evangelho, não há hipótese em que uma situação objetiva de pecado seja a realização da vontade de Deus, não há ninguém para quem a prática das virtudes seja uma perfeição absoluta que esteja fora do seu alcance. De tudo o que se tem escrito no bojo da Amoris Laetitia, o obscurecimento desta verdade básica (talvez um dos pontos centrais do Cristianismo) é provavelmente o mais de se lamentar.

A misericórdia transforma e muda a vida

Apenas três ligeiros comentários sobre a Misericordia et Misera, carta apostólica hoje publicada e com a qual o Papa Francisco encerra o Ano Santo da Misericórdia.

1. A provisão para que qualquer sacerdote possa suspender a excomunhão do aborto foi estendida por tempo indeterminado. O aborto é um pecado gravíssimo que é punido, no Direito Canônico, com a excomunhão latae sententiae (CIC Cân. 1398). Ocorre que essa excomunhão só podia ser remitida pelo Bispo Diocesano ou por aqueles sacerdotes a quem o Bispo conferisse explicitamente esta permissão; na abertura do Jubileu da Misericórdia, no ano passado, o Papa Francisco concedeu a todos os sacerdotes esta faculdade. Aquilo que valia no decurso do Jubileu passa, desde hoje, a valer indefinidamente, «não obstante qualquer disposição em contrário».

Ou seja, i) continua valendo sobre essa matéria tudo que até ontem valia: por força do Jubileu da Misericórdia todo sacerdote estava autorizado a absolver quem houvesse praticado aborto e, a partir de hoje, encerrado o ano jubilar, todo sacerdote continua autorizado a conferir esta absolvição por força da Misericordia et Misera; não obstante, ii) a pena de excomunhão não foi abolida, i.e., continua plenamente vigente o cânon 1398 do Código de Direito Canônico dizendo que «[q]uem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae»; por fim — e a isso voltaremos mais à frente –, iii) o arrependimento continua sendo pré-requisito para se aproximar da Confissão Sacramental, como é evidente.

2. Do mesmo modo foi alargada no tempo a faculdade que fora conferida aos sacerdotes da FSSPX para que administrem validamente o Sacramento da Penitência. A Confissão, assim como o Matrimônio, é um sacramento cuja validade — e não apenas a licitude — depende de jurisdição; ora, como os prelados da FSSPX — inobstante a suspensão da excomunhão em 2009 — permanecem bispos de lugar-nenhum, não possuem jurisdição alguma e, portanto, não podem praticar os atos que dela dependam (e.g. ouvir confissões e assistir Matrimônios).

A situação canônica dos padres da FSSPX continua irregular; as suas Missas continuam ilícitas e a validade dos seus Matrimônios permanece precária, condicionada à incidência do §2º do Cân. 144 do CIC. No entanto, esta determinação do Papa Francisco é alvissareira e nos autoriza a entrever, em um futuro que cada vez mais desejamos próximo, a tão esperada reconciliação da Fraternidade com a Igreja de Cristo fora da qual não há salvação.

3. A passagem bíblica da qual o Papa Francisco se vale para estruturar a sua Carta Apostólica é a da mulher adúltera (Jo VIII, 1-11). Trata-se de um trecho do Evangelho bastante caro a tantos quanto se preocupam com a tendência moderna de separar o perdão do arrependimento — como se “caridade” fosse condescendência com o erro, ou como se a “misericórdia” pudesse se manifestar na atitude displicente de manter o pecador em sua vida de pecado. Como se o perdão não fosse por si só um convite — ou, antes, uma exigência — à mudança de vida, ou ao menos à sincera disposição de mudar de vida.

E aquele «vade et amplius jam noli peccare» perpassa todo o documento pontifício, graças a Deus. São diversas as passagens (os grifos são meus):

  • «Depois que se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e viver de maneira diferente» (MM 1).
  • «Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do seu perdão» (MM 2).
  • «No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida a experimentar de novo a sua proximidade» (MM 8).
  • «A sua ação pastoral [dos Missionários da Misericórdia] pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de todos como um Pai» (MM 9).
  • «Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo» (MM 11).
  • «O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai» (MM 11).
  • «[P]osso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai» (MM 12).

Em uma palavra, a verdadeira misericórdia é e não pode deixar de ser transformadora: «A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida» (MM 3)! O perdão cura e transforma — e o filho pródigo só retorna à casa paterna porque, antes, «caiu em si» e percebeu haver pecado contra o Céu, e a mulher adúltera só escapa da morte para ouvir de Cristo aquele «vai e não tornes a pecar» que perpassa os séculos e ainda hoje ressoa na Igreja: para continuar comendo a lavagem dos porcos não valia a pena o filho pródigo ter empreendido a jornada de volta pra casa, e se fosse para continuar na prostituição melhor seria à adúltera ter sido apedrejada.

O perdão conduz e não pode não conduzir a uma vida nova. Se não fosse assim seria apenas engano e ilusão; se não fosse assim, de nada valeria ser perdoado.