A Câmara dos Deputados aprovou na última quarta-feira a concordata entre a Santa Sé e o Estado do Brasil. O texto segue agora para apreciação no Senado e, depois, para ratificação presidencial.
Quando da assinatura do acordo, ainda em novembro do ano passado, eu publiquei aqui no Deus lo Vult! algumas ligeiras considerações sobre ele. Não tenho muito mais coisas a acrescentar, porque o texto não mudou; o frisson atual é decorrente da proximidade das votações que irão decidir pela aprovação ou rejeição do texto, e não dele em si.
É fundamental lê-lo na íntegra (vejam aqui no site do Ministério das Relações Exteriores), para evitar que se pensem (ou, pior ainda, se escrevam…) besteiras: isso resolveria a maior parte dos (falsos) problemas que os laicínicos de todos os naipes estão alardeando histericamente. Contudo, tem gente que lê o texto e, mesmo assim, insiste em ver chifre em cabeça de cavalo, como p.ex. o Hélio Schwartzman (em texto publicado na Folha de São Paulo para assinantes, republicado pelo blog Filosofia Social e Positivismo).
Apesar do articulista reconhecer que “o texto não faz muito mais do que reafirmar direitos que a Constituição e a legislação ordinária já concedem não só à Igreja Católica mas a todas as instituições religiosas” e que “[o] problema está menos no conteúdo do texto (…) e mais na oportunidade do acordo”, mesmo assim, segundo ele, a “concordata pode gerar problema institucional” – como diz no título do artigo. O único “problema” realmente é a própria existência do acordo, que o Hélio parece, a todo custo, não querer admitir. No entanto, ele se aventura a uma alfinetada:
Por fim, há que desconfiar das declarações diplomáticas da CNBB de que a Concordata não ameaça o Estado laico, que seria um “valor”. Os bispos brasileiros podem pensar assim, mas a posição oficial de Roma é menos tolerante. A encíclica que trata do tema, a “Vehementer nos”, baixada por Pio 10º em 1906, qualifica a separação entre Estado e igreja como “tese absolutamente falsa” e “erro perniciosíssimo”. Tal carta nunca foi atualizada. Aqui não é preciso ser paranoico para pôr as barbas de molho, conselho que Lula poderia seguir.
Sim, é preciso ser paranóico para trazer à baila uma carta encíclica de São Pio X que fala sobre outra coisa. Para usar um ad hominem e encerrar esta discussão boba, bastaria lembrar ao articulista que a Gaudium et Spes, em 1965, diz textualmente: “No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas” (Gaudium et Spes, 76). No entanto, é mister falar ainda sobre duas coisas.
Primeiro, que as relações entre a Igreja e o Estado são um assunto muito complexo para se tratar em duas ou três palavras. Sendo muito mais lacônico do que o tema permitiria, arrisco-me a dizer que falar em justas relações entre Estado e Igreja não é a mesma coisa que falar em confessionalidade do Estado. Contrapôr, ao “Estado Laico” moderno, um “Estado Teocrático” antigo concebido aos moldes de um regime dos Aiatolás do Irã, é um erro histórico grotesco.
Segundo, que a própria problemática das relações entre Igreja e Estado passa ao largo da presente concordata: esta se presta meramente a regulamentar alguns aspectos pontuais do estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. Apesar de especialistas criticarem o acordo e das Católicas pelo Direito de Decidir terem divulgado “anteontem [25/08] uma pesquisa feita pelo Ibobe segundo a qual 75% dos católicos seriam contrários ou teriam restrições ao acordo” sem, no entanto, deixarem claro “se a pesquisa também avaliou o nível de conhecimento dos entrevistados sobre o teor da concordata”, tudo isso é fogo de palha. O cerne do problema do Estado Laico não tem nada a ver com este acordo, e sim com as palavras que Bento XVI dirigiu aos juristas católicos italianos em 2006, que – mesmo sendo extensas – peço licença para reproduzir:
Na realidade, hoje a laicidade é geralmente entendida como exclusão da religião dos vários contextos da sociedade e como sua relegação para o âmbito individual. A laicidade expressar-se-ia na total separação entre o Estado e a Igreja, não tendo esta última qualquer título para intervir a propósito de temáticas relativas à vida e ao comportamento dos cidadãos; a laicidade comportaria até mesmo a exclusão dos símbolos religiosos dos lugares públicos, destinados ao desenvolvimento das funções próprias da comunidade política: dos escritórios, escolas, tribunais, hospitais, prisões, etc. Com base nestes múltiplos modos de conceber a laicidade, hoje fala-se de pensamento laico, de moral laica, de ciência laica e de política laica. Com efeito, no fundamento de tal concepção há uma visão arreligiosa da vida, do pensamento e da moral: ou seja, uma visão em que não há lugar para Deus, para um Mistério que transcenda a razão pura, para uma lei moral de valor absoluto, em vigor em todos os tempos e em cada situação. Somente se nos dermos conta disto, poderemos medir o peso dos problemas subjacentes a um termo como laicidade, que parece ter-se tornado como que o emblema qualificador da pós-modernidade, de modo particular da democracia moderna.
Então, compete a todos os fiéis, de forma especial aos crentes em Cristo, contribuir para elaborar um conceito de laicidade que, por um lado, reconheça a Deus e à sua lei moral, a Cristo e à sua Igreja o lugar que lhes cabe na vida humana individual e social e, por outro, afirme e respeite a “legítima autonomia das realidades terrestres”, significando com esta expressão como confirma o Concílio Vaticano II que “as coisas criadas e as próprias sociedades têm as suas próprias leis e valores, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar” (Gaudium et spes, 36).
Esta autonomia é uma “exigência… legítima: não só é reivindicada pelos homens do nosso tempo, mas corresponde à vontade do Criador. Com efeito, é pela virtude da própria criação que todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade e bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar e reconhecer os métodos próprios de cada uma das ciências e técnicas” (Ibidem). Se, ao contrário, com a expressão “autonomia das realidades temporais” se quisesse dizer que “as coisas criadas não dependem de Deus, e que o homem pode usá-las de tal maneira que não as refira ao Criador”, então a falsidade desta opinião não poderia passar despercebida a quem quer que acredite em Deus, nem à sua presença transcendente no mundo criado (cf. ibid.).
Estas são as questões fundamentais que não podem ser negligenciadas, esta é a diferença entre as autonomias legítimas e a Fé Irreligiosa institucionalizada que, hoje em dia, querem a todo custo impôr.